Opinião
O recente caso envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro trouxe à tona uma questão relevante no Direito: a diferença entre pesca probatória e o encontro fortuito de provas. A defesa do ex-presidente alegou que a investigação feita pela Polícia Federal configurava uma “pesca probatória”, ou seja, uma busca indiscriminada por provas, sem um alvo específico, o que violaria o princípio da legalidade e da ampla defesa. A questão foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal, com o ministro Alexandre de Moraes rejeitando a tese de pesca probatória.
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A atividade probatória no Direito Processual Penal deve ser conduzida em estrita observância aos princípios fundamentais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório. Nesse contexto, a distinção entre pesca probatória e encontro fortuito de provas assume um papel central na discussão acerca da legitimidade da obtenção de elementos de prova no curso da persecução penal.
A pesca probatória, também denominada fishing expedition, caracteriza-se pela investigação indiscriminada, sem um objeto determinado, buscando elementos incriminadores aleatoriamente. Essa prática é vedada no ordenamento jurídico brasileiro, pois fere garantias fundamentais ao permitir a utilização abusiva do poder estatal para constranger indivíduos sem justa causa. O STF tem reiteradamente rechaçado a admissibilidade de provas obtidas por meio dessa tática, por entender que viola o princípio da proporcionalidade e compromete a imparcialidade da persecução penal.
Por outro lado, o encontro fortuito de provas ocorre quando, no curso de uma investigação regularmente instaurada e devidamente autorizada, emergem indícios de infrações penais diversas daquelas que motivaram a diligência inicial. Essa situação é aceita pela jurisprudência brasileira, desde que a obtenção da prova tenha respeitado os ditames constitucionais e legais. O STF, em diversas oportunidades, tem admitido a utilização de elementos colhidos fortuitamente, desde que não decorram de devassas indiscriminadas.
Um exemplo literário que pode ilustrar encontro fortuito de provas é a obra O Processo, de Franz Kafka. No romance, o protagonista é preso sem saber o motivo, e durante o processo judicial, ele acaba tendo acesso a documentos e informações que, embora não tenham sido solicitadas por ele, acabam revelando falhas e inconsistências nas acusações que pesam contra ele. Assim, a obtenção dessas provas ocorre de forma incidental, sem que tenham sido buscadas diretamente no início da investigação, caracterizando o “encontro fortuito” de provas.
Por outro lado, numa interpretação válida, o conceito de “pesca probatória” pode ser observado na obra Crime e Castigo, de Dostoiévski. Embora o livro não trate explicitamente sobre o tema, o processo investigativo em torno do protagonista envolve uma tentativa das autoridades de descobrir pistas sem um foco claro, tentando conectar informações dispersas e muitas vezes sem fundamento concreto, em busca por elementos probatórios de forma indiscriminada.
Spacca
O ministro Alexandre de Moraes, no julgamento, reafirmou essa distinção ao refutar a tese da defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, que alegava que as provas reunidas pelo Ministério Público configuravam pesca probatória. Afirmou o ministro que no caso concreto, a investigação sobre a tentativa de golpe de Estado derivou de provas colhidas de forma lícita em fases anteriores do inquérito, incluindo delações premiadas e apreensões de dispositivos eletrônicos de aliados do ex-presidente.
A literatura nacional também fornece uma analogia ilustrativa para essa problemática, como se observa em Dom Casmurro, de Machado de Assis. Bentinho, ao buscar indícios da suposta traição de Capitu, conduz uma investigação subjetiva e destituída de elementos objetivos, transformando qualquer gesto ou olhar da esposa em prova da infidelidade. Trata-se de um claro exemplo de pesca probatória, em que a conclusão é pré-determinada e as provas são artificialmente construídas para corroborar a hipótese preestabelecida.
Em contrapartida, se Bentinho, ao longo de uma investigação objetiva e neutra, encontrasse fortuitamente uma carta comprometedora ou um testemunho espontâneo confirmando a traição, este fato se aproximaria do conceito de encontro fortuito de provas.
O conceito de “quadros mentais paranoicos”, também chamado de “Síndrome de Dom Casmurro”, surge no campo do direito processual penal como crítica ao comportamento de magistrados que, ao assumirem funções instrutórias, primeiro formulam uma hipótese incriminatória e depois buscam elementos probatórios que a sustentem. Segundo a doutrina, tal postura compromete a imparcialidade do julgamento e desvirtua a função jurisdicional, aproximando-se da dinâmica da pesca probatória.
Aury Lopes Jr. adverte que:
“Atribuir poderes instrutórios a um juiz — em qualquer fase — é um grave erro, que acarreta a destruição completa do processo penal democrático. Ensina Cordero que tal atribuição (de poderes instrutórios) conduz ao primato dell’ipotesi sui fatti, gerador de quadri mentali paranoidi. Isso significa que se opera um primado (prevalência) das hipóteses sobre os fatos, porque o juiz que vai atrás da prova primeiro decide (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos (prova) que justificam a decisão (que na verdade já foi tomada). O juiz, nesse cenário, passa a fazer quadros mentais paranoicos.” (Lopes JR., 2014, p. 111-112)
Lições de Cleber Masson e Vinícius Marçal
Exatamente em razão do sistema processual acusatório — que cuidou de separar de maneira bem nítida as funções de acusar, defender e julgar —, não deve o magistrado ter uma participação ativa na primeira fase da persecutio criminis, de maneira a indicar pelo caminho pelo qual a investigação deve seguir. Nesse cenário, poderia o juiz começar a realizar os chamados quadros mentais paranoicos (Síndrome de Dom Casmurro), em franco prejuízo do investigado (Marçal; Masson, 2015, p. 94).
O conceito de “quadros mentais paranoicos”, como discutido por Aury Lopes Jr. e Cleber Masson, sublinha o problema da busca de provas que sustentem uma hipótese previamente formulada, distorcendo a função imparcial do juiz. O caso do protagonista de Dom Casmurro ilustra uma busca por provas em um processo cheio de desconfiança, é uma analogia ao comportamento dos que formam uma hipótese de culpabilidade e, então, buscam provas que confirmem essa visão, criando um cenário em que o julgamento já é dado antes da obtenção dos fatos.
A separação clara das funções no processo acusatório, de acordo com o sistema processual penal brasileiro, é fundamental para garantir um julgamento justo.
Diante desse panorama, a distinção entre pesca probatória e encontro fortuito de provas assume papel crucial para a preservação das garantias individuais no direito processual penal. O primeiro conceito representa uma afronta ao Estado Democrático de Direito, ao passo que o segundo constitui uma extensão legítima da atividade investigativa estatal.
A jurisprudência do STF tem reforçado essas distinções, assegurando que o processo penal seja conduzido dentro dos limites da legalidade e da constituição, garantindo que a busca por provas seja legítima e respeite as garantias individuais. A preservação do Estado Democrático de Direito depende, em grande parte, de uma fiscalização rigorosa para que a atividade probatória não ultrapasse os limites que comprometem os direitos fundamentais dos investigados.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. Crime organizado. São Paulo: Método, 2015.