Opinião
A constante evolução do “Estado de Coisas Inconstitucional” no Brasil, temática esta já reconhecida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347 pelo Supremo Tribunal Federal, demonstra a necessidade de mudança de mentalidade dos juízes titulares das Varas de Execuções Penais, as conhecidas VEPs.
Divulgação/CIDH
As normas de Direito Internacional Público, sendo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) verdadeiras pedras de toque a serem aplicadas pelo profissional do Direito, precisam ter efetividade no cumprimento da pena e na praxe forense.
O Observatório Nacional dos Direitos Humanos informou, no mês de fevereiro deste ano, que o Brasil possui uma população prisional de mais de 850 mil pessoas, sendo a terceira maior do mundo [1]. O Plano Pena Justa, que está em fase de implementação nos estados, tem por objetivo o enfrentamento da calamidade nas prisões brasileiras tanto no que diz respeito à superlotação quanto para trazer condições mais dignas ao cumprimento da reprimenda extrema.
Em 28 de maio de 2025, durante o 2º Congresso Tourinho Filho de Processo Penal, que aconteceu na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), o vice-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), juiz Rodrigo Mudrovitsch [2], alertou sobre a responsabilidade dos tribunais domésticos aplicarem a jurisprudência da Corte.
Citando o professor emérito da UnB e ex-juiz da CIDH e da Corte Internacional de Justiça em Haia, professor Antônio Augusto Cançado Trindade [3], relembrou que a função primária da garantia dos direitos humanos postos na Convenção Americana é dos tribunais domésticos, via controle difuso.
Após adotar um papel declarativo, no qual apenas elencava violação cometida e fixava os deveres e obrigações dos Estados, reservando-lhes a decisão de reparar, a CIDH passou a pronunciar mais taxativamente temas penais, ordenando especificamente que os casos de graves violações fossem investigados e castigados penalmente [4].
A dogmática vazia não funciona, daí a dita urgência para que os juízes das varas de execuções penais apliquem a jurisprudência da CIDH como medida de um cumprimento de pena mais justa. Muito embora as penas sejam aplicadas pelo juiz da instrução criminal, e eventualmente reformadas pelos Tribunais, é na execução penal que os inúmeros desafios ao cumprimento de pena mais humanitário estão presentes.
A instalação de programas de remições de pena pelo trabalho, estudo ou leitura é uma atribuição das VEPs. Por óbvio, vinculado aos limites legais, destaca-se a necessidade de que os magistrados atuantes nas VEPs sejam criativos. A concessão de progressões de regime sem atraso, respeitando a duração razoável do cumprimento da pena também na Lei nº 7.210/84, é um controle a ser realizado com bastante rigor. Qualquer circunstância que vai contra aos direitos básicos e consagrados na Lei Constitucional e federal devem ser rechaçados. Em matéria de direito conquistado não há que existir retrocesso.
Spacca
Uma reflexão que apresenta-se pertinente à temática: do que adianta um processo penal que respeita as regras do jogo, a cadeia de custódia da prova, e, justamente no momento da execução da pena, o Estado é o principal violador de direitos, jogando-os na masmorra?
No caso Álvarez vs. Argentina [5], ora sentenciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no ano de 2023, foi discutido e houve condenação do Estado Argentino em decorrência das diversas violações de direitos humanos no curso de um processo penal. Ainda, se sustentou o caráter desproporcional e contrário ao fim ressocializador da pena, pontuando um tratamento diferenciado injustificado em comparação à outras pessoas que haviam cometido o mesmo delito.
A Recomendação nº 123 do CNJ, de 7/01/2022, “recomenda aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”.
Caso Muniz da Silva
No dia 14 de novembro de 2024 foi julgado pela CIDH o Caso Muniz da Silva e outros vs. Brasil [6], constando nos pontos resolutivos da sentença a condenação da República Federativa do Brasil por violação ao artigo 25.1 da CIDH, que diz:
“Artigo 25. Proteção judicial
Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.”
Ainda sobre o Caso Muniz da Silva e outros vs. Brasil, citou-se na sentença o direito à liberdade como um direito humano básico, próprio das características da pessoa. Em brilhante construção de raciocínio, foi disposto que “o projeto de vida será impactado por atos que violam direitos humanos que, de maneira irreparável ou muito dificilmente reparável, alterem abruptamente as circunstâncias e as condições de sua existência”.
Nessa linha de ideias, as violações mencionadas no parágrafo anterior, de acordo com a CIDH, podem materializar-se “seja negando-lhe possibilidades de realização pessoal ou atribuindo-lhe responsabilidades não previstas que alterem de forma nociva as expectativas ou opções de vida concebidas à luz de condições e circunstâncias que poderiam ser qualificadas como normais, isto é, não alteradas de maneira arbitrária e intempestiva pela intervenção de terceiros”.
Trechos da decisão no caso Álvarez
A sentença no caso Álvarez Vs. Argentina foi publicada em março de 2023, sendo que o Estado da Argentina foi condenado a uma série de obrigações, inclusive, de natureza pecuniária em razão das evidentes violações. Utilizando o referido caso como paradigma, mostra-se importante destacar alguns trechos da sentença no presente artigo:
“Este Tribunal ha considerado que el derecho a la defensa obliga al Estado a tratar al individuo en todo momento como un verdadero sujeto del proceso, en el más amplio sentido del concepto, y no simplemente como objeto de este. También la Corte há indicado que el derecho a la defensa se proyecta en dos facetas dentro del processo penal: por un lado, el derecho a la defensa material a través de los propios actos de la persona inculpada, siendo su exponente central la posibilidad de participar de forma activa en las audiencias y diligencias, y de rendir una declaración libre sobre los hechos que se le atribuyen y, por el otro, por medio de la defensa técnica, ejercida por um profesional del Derecho, quien cumple la función de asesorar a la persona sometida al proceso sobre sus deberes y derechos, y ejecuta, inter alia, un control crítico y de legalidad en la producción de pruebas.”
Mais adiante, consta na sentença a seguinte afirmativa:
“Asimismo, en atención al reconocimiento de responsabilidad del Estado, Argentina también es responsable por la violación del derecho a la presunción de inocencia, reconocido en el artículo 8.2 de la Convención, en relación con el artículo 1.1 del mismo instrumento, en perjuicio del señor Guillermo Antonio Álvarez.”
O artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe:
“2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete, se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.
g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e
h) direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.”
O chamamento à atenção quanto a presunção de inocência nos processos de execução pode parecer estranho, pois a demanda é instaurada, via de regra, após a certificação do trânsito em julgado e expedição da guia de execução definitiva.
Sem adentrar nas diretrizes que permitem a execução provisória da pena, é bom lembrar que existem alguns percalços que podem ser enfrentados pelo prisioneiro durante o cumprimento da pena, como por exemplo, a instauração de Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD).
É plausível refletir algo que ocorre rotineiramente nas VEPs: tendo o preso alcançado o requisito objetivo para fins de progressão de regime, deve o juízo titular aguardar a conclusão do PAD pela administração penitenciária antes de proferir decisão definitiva acerca da concessão do benefício legal? Parte da jurisprudência brasileira [7] tem entendido que é desarrazoada essa espera, especialmente, porque viola o devido processo legal, contraditório, ampla defesa e presunção de inocência.
Estabelecer como condição para análise do requisito subjetivo a conclusão de PAD, especialmente quando instaurado após o apenado atingir o requisito objetivo para a obtenção de benefício insculpido na Lei de Execuções Penais funciona como pena materialmente perpétua, tornando-se a pena para além do razoável e amoldável ao Pacto de São José da Costa Rica. Há penas que pela complexidade no seu cumprimento tornam-se inesgotáveis.
Por fim, verifica-se que não adianta mudar as regras do jogo sem a mudança de mentalidade quando aplica-se o texto legal. Relembrando Ruy Barbosa: “Justiça tardia é injustiça institucionalizada”. É imprescindível o olhar para todo o caminho no sistema de Justiça Criminal. A aplicação da jurisprudência da CIDH em matéria de execução penal, com as devidas ressalvas pertinentes via controle de convencionalidade, apresenta-se como uma política criminal adequada para que o Brasil não venha ser mais uma vez responsabilizado internacionalmente em questões em que há possibilidade de prevenção.
[4] PIOVESAN, Flavia. SOARES, Inês Virgínia Prado. Impacto das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Jurisprudência do STF / Coordenadoras: Flávia Piovesan, Inês Virgínia Prado Soares – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p.414.
[7] Acórdão 1059886, 20170020208383RAG, Relator(a): SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, 2ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 9/11/2017, publicado no DJE: 20/11/2017. Pág.: 305/320.
AGRAVO DE EXECUÇÃO PENAL, Processo nº 0800293-45.2023.822 .0000, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, 2ª Câmara Criminal, Relator (a) do Acórdão: Des. Francisco Borges Ferreira Neto, Data de julgamento: 26/04/2023 (TJ-RO – EP: 08002934520238220000, Relator.: Des. Francisco Borges Ferreira Neto, Data de Julgamento: 26/04/2023.
TJ-CE – Agravo de Execução Penal: 0024577-75.2015.8.06 .0001 Fortaleza, Relator.: FRANCISCO CARNEIRO LIMA, Data de Julgamento: 30/01/2024, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 31/01/2024.