O setor portuário brasileiro é densamente regulado. Essa afirmação pode ser aceita por todos os agentes do setor com a justíssima ressalva de que a densidade regulatória faz acepção de pessoas: os agentes regulados nos portos públicos carregam um fardo regulatório que nem de longe pesa sobre os ombros dos portos privados. Mas também há acepção dentro dos próprios portos públicos.
Há razões e razões que se pode descascar de uma cebola interminável para justificar essa e aquela e mais aquela outra assimetria. Mas não deixa de provocar alguma lacrimação o fato de que, muitas vezes, regulamos por regular, afinal de contas, o que faz o regulador?
Brincadeiras e lágrimas à parte. Esforços contínuos têm sido empreendidos pela agência, pelo Ministério de Portos e Aeroportos e por outras instâncias institucionais para simplificar a regulação portuária. Há profissionais muito compenetrados nisso que, com a experiência acumulada do setor, são capazes de tirar boas ideias quase como quem é capaz de extrair leite de pedras. Eu francamente fiquei surpreso e feliz com algumas delas apresentadas no Navegue Simples [1].
A par disso, a Antaq recém inaugurou um novo arcabouço normativo para a exploração de áreas localizadas dentro dos portos organizados. Falo da Resolução 127/2025, que, na minha modesta opinião, trouxe avanços muito interessantes.
Pois bem, este artigo é sobre o novo contrato de uso de espelho d’água, que veio encartado na Resolução 127. A partir daqui, irei apelidá-lo simplesmente de Contrato de Espelho D’Água.
O que é e para que serve?
Esse contrato entra na categoria dos regulados, cujo objeto só pode ser explorado dentro dos contornos e em observância das regras definidas na regulação. Trata-se, em princípio, de um contrato celebrado entre um privado e a estatal que ocupa a função de Autoridade Portuária. Nem me venha dizer que é contrato administrativo [2].
As aplicações podem ser as mais diversas. O requisito essencial é que envolvam a utilização exclusiva da superfície aquática dentro de um porto organizado. Portanto, o contrato serve para berços offshore, operações ship-to-ship (STS) das mais diversas como operação de embarcações estacionárias como FSRU, FSU, FBTO (Floating Bulk Transshipment Operation) flutuantes ou outras estruturas de apoio para embarque de cargas ou passageiros etc.
No âmbito das operações portuárias, o contrato permite a utilização para armazenagem. Também pode ser usado para atividades não afetas às operações portuárias, p.ex. estações de monitoramento ambiental, laboratorial, atividades de segurança ou de reparos navais etc.
Por que esse contrato existe? De onde veio a ideia?
Em idos de 2019, a Antaq se autodeterminou a promover estudos sobre a possibilidade de cobrança pela Autoridade Portuária de espelho d’água localizado nas poligonais dos portos organizados, pois volta-e-meia surgia alguma dúvida ou conflito sobre como e em que termos deveria se dar exploração da superfície molhada nos portos públicos [3].
Spacca

Para os terminais privados, fora dos portos organizados, a regra já era mais clara: esforçar-se heroicamente na virtude da paciência para celebrar contrato de cessão de uso de espelho d’água com a SPU [4]. Mais ou menos… Em outubro de 2024, transitou em julgado o acórdão do TRF-1 que atribuiu à Antaq a competência para disciplinar a exploração do espelho d’água e entendeu que a outorga dessa exploração já vai embutida no título autorizativo do TUP, isto é, o contrato de adesão [5]. Mas a Antaq continua defendendo que cabe à SPU — só quando é fora do porto organizado. A gente fica meio esquizofrênico com essas coisas, mas vamos lá, otimismo.
Enfim, voltando aos portos organizados, o problema regulatório foi muito bem enquadrado: a insegurança jurídica existente para exploração desses espaços com possível subutilização, perda de receitas e limitação de oferta justamente pelo desconhecimento dessa modalidade de exploração de área e seus contornos [6].
Assim, foi proferido o Acórdão 103/2022-ANTAQ, relator Dir. Adalberto Tokarski, que, em linhas gerais reconheceu a necessidade de regular a matéria, mas, desde já, abriu gentilmente um sandbox regulatório: enquanto não fosse editado o regulamento definitivo, a Antaq poderia apreciar e aprovar casos concretos, com base nas regras dos contratos de uso temporário, mas sem restrição quanto ao tipo de carga, observando prazos e exigências ambientais e náuticas.
Como funciona esse contrato na prática?
As áreas de espelho d’água disponíveis para exploração devem ser previamente divulgadas no sítio da Autoridade Portuária e deverão ser definidas de acordo com análises de viabilidade locacional e projeção de demanda, além de estarem compatíveis com o PDZ. Portanto, para que o novo contrato seja utilizado, a Autoridade Portuária deverá adequar o zoneamento atualizando o PDZ.
A partir das áreas disponíveis, o interessado deve requerer o contrato à Autoridade Portuária, devendo apresentar dados como estimativa de investimentos, estudo de demanda, memorial descritivo, tipo de carga, o valor a ser pago e pré-qualificação como operador portuário ou a contrato de com um.
Se houver mais de um interessado na área e inexistir viabilidade locacional, será realizado um processo seletivo simplificado.
Instruído todo o processo, a Autoridade Portuária precisa bater na porta da Antaq e pedir autorização para celebrar o contrato. A Agência, por sua vez, irá analisar a instrução realizada pela Autoridade Portuária com olhar sobre o preenchimento dos requisitos procedimentais.
A remuneração pelo privado se dará de acordo com as modalidades previstas na estrutura tarifária. Isso pode significar uma cobrança fixa por m² e / ou variável por volume de carga movimentada.
O prazo do contrato é de 48 meses prorrogáveis por igual período, mas pode conter prazo distinto no caso de operação de regaseificação fundeada ou atracada, desde que a Antaq assim aprove.
Não há direito a indenização por investimentos não amortizados no período e, caso haja extinção antecipada ou não, o titular deve desmobilizar quaisquer bens ou estruturas às suas expensas, deixando o local como antes. A regra, portanto, é a irreversibilidade dos bens, todavia há uma exceção que não está muito claramente formulada.
Admite-se excepcionalmente que os bens sejam transferidos para o porto, desde que se demonstre ganhos que justifiquem alguma compensação.
Mas eis a questão: há o poder cogente da Autoridade Portuária decidir ficar com os bens ou é algo que deve ser feito de comum acordo? Se não está explícita que a reversibilidade eventual é um ônus suportado pelo privado e a regra geral é a irreversibilidade, sou pela orientação de que deve ser algo de comum acordo, especialmente, no que tange a compensação.
O contrato pode ser rescindido unilateralmente, todavia caberia também a questão: será que, também nessa circunstância, não haveria direito à indenização por investimentos não amortizados? Me parece difícil afirmar que não haveria indenização por perdas e danos, ainda mais quando no processo de contratação foi requerido do interessado um estudo de demanda e o investimento tornou-se uma obrigação contratual.
Antaq pode criar um tipo contratual do nada?
A resposta é afirmativa. Nem precisa recorrer a teorias dos poderes implícitos ou as mais avançadas do Poder Normativo das Agências Reguladoras. Neste caso, após a minirreforma do setor portuário promovida pela Lei nº 14.047/2020, ficou expresso na Lei de Criação da Antaq a competência geral para “regulamentar outras formas de ocupação e exploração de áreas e instalações portuárias” (artigo 27, inciso XXIX).
Grande oportunidade ou ameaça no horizonte
De fato, o uso do espelho d’água através da nova modalidade contratual é amplo, o que permitirá o seu uso para concorrer com terminais arrendados já consolidados, inclusive, em matéria de armazenagem.
No entanto, comparando-se com um arrendamento, as assimetrias são várias. No uso de espelho d’água, a barreira de entrada é menor — não há licitação, no máximo seleção simplificada —, a flexibilidade para responder ao mercado é maior — basta retirar as estruturas e levá-las para outro lugar, talvez até do mundo —, embora não haja, em princípio, indenização por bens reversíveis, também não se corre o risco de deixar o investimento para um futuro concorrente arrematar. Essas são apenas algumas assimetrias.
De revés, poderá o arrendatário pleitear reequilíbrio pelos impactos causados por um contrato de espelho d’água? Essa é uma excelente questão.
[1] BRASIL. Ministério de Portos e Aeroportos. Navegue Simples. Brasília: MPor, 2024. Disponível aqui.
[2] “As empresas estatais, como pessoas jurídicas de direito privado, em princípio celebram apenas contratos de Direito Privado, desprovidos de cláusulas exorbitantes, salvo no que essas consubstanciarem poderes contratuais unilaterais constantes dos próprios contratos de direito privado (ex.: o poder de denúncia vazia – rescisão unilateral – nos contratos de locação).” ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. 1. ed. São Paulo: Forense, 2017, p. 255.
[3] Item 3.6 da Agenda Regulatória 2020/2021.
[4] Dentro do que dispõe a Portaria 7.145/2018-SPU.
[5] AC 0036080-60.2012.4.01.3400, Desembargador Federal José Amilcar Machado, TRF1, Sétima Turma, e-DJF1 04/03/2016).
[6] ANTAQ. Relatório de Análise de Impacto Regulatório AIR nº 21/2020, SEI nº 1203446. Brasília: ANTAQ, 2020.