Marlon Brendon Coelho Couto da Silva, o MC Poze do Rodo, foi preso semana passada em um condomínio no Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste do Rio de Janeiro. No mesmo dia, em audiência de custódia, decidiu-se pela prisão temporária por 30 dias, que poderia ser prorrogada a critério da Justiça. Mas, nesta semana, houve a concessão do Habeas Corpus pela Justiça em pedido formulado pelo defensor pelo cantor de funk.
Reprodução/TV Globo
O cantor é suspeito de apologia ao tráfico (artigo 287 do Código Penal) e envolvimento com facção criminosa (artigo 1°, §1°, da Lei n° 12.850/13), mais especificamente, com o Comando Vermelho. Além de ser investigado por tortura e cárcere privado. As autoridades cariocas fundamentam que as letras de suas músicas são uma ode ao crime e ao Comando Vermelho. Ademais, circulam vídeos de shows com muitas pessoas na plateia portando e empunhando fuzis.
E, para ratificar as informações, foi veiculado que no prontuário preenchido pelo MC, documento esse usado para definir onde o suspeito permanecerá preso, em conformidade com sua ideologia prisional, assim, houve a necessidade de declarar, dentre as opções: neutro, ADA, TCP, Milícia ou CV e a opção escolhida por Marlon foi a última: Comando Vermelho.
Aos olhos do leigo há uma clara associação criminosa. Não é bem assim. De início é importante notar que Marlon é “cria da comunidade”, isto é, sua origem e crescimento se deu dentro de uma comunidade na qual o crime organizado está presente e o predomínio era do Comando Vermelho. Isso significa que todos os moradores são vinculados ao crime ou à facção? A resposta é negativa. Porém, como se nota em suas letras, o MC tem afinidade com a facção.
Isso se traduz em ser um membro? Não necessariamente. Há no Brasil a liberdade de expressão (artigo 5°, IV da Constituição) e a defesa de uma organização criminosa não significa ser membro da mesma. Em São Paulo, uma banda muito conhecida tem em suas letras sabida e conhecida luta contra a polícia, as dificuldades dos criminosos, muitos relatos de crimes, além do enfrentamento contra o Estado, nem por isso seus membros são tidos como criminosos.
De tal sorte que declarar uma ideologia pode fazer com que a pessoa esteja “protegida” pela facção dentro do sistema prisional ou, mais do que isso, que não fique exposto e seja agredido psicologicamente ou fisicamente por uma outra facção rival, justamente, em decorrência das letras de suas músicas. Enaltecer uma facção não é igual a ser membro da mesma. Mas, dentro do presídio, se declarar como parte de uma ideologia pode significar a diferença entre sobreviver ou não. O que não se traduz ser um membro efetivo dessa ou daquela organização criminosa.
Não por acaso, a suspeita que recai sobre Marlon é de apologia ao crime e não incitação, pois, a primeira é tida como uma homenagem a atos criminosos, já a incitação consiste em incentivar de maneira direta a prática de crimes. De início a reflexão é: dentro dos limites da liberdade de expressão é crime em suas letras uma pessoa render homenagem a uma facção? A resposta não é simples, afinal, o artista pode retratar uma realidade, um fato social sem, necessariamente, dizer se tal conduta é boa ou ruim ou se a mesma pode ou deve ser reproduzida. A linha entre a apologia e a liberdade de expressão é tênue.
Da mesma maneira temos a participação em organização criminosa. Cabe às autoridades, efetivamente, provarem que o suspeito tem relações com a facção em questão e que executa serviços ou faz parte da organização. Outras provas e elementos devem instruir o inquérito a fim de elucidar potenciais acusações e formar um processo.
Violação abre possibilidade concreta de nulidade
Assim, o que irá determinar se Marlon é ou não culpado, se será indiciado e julgado pela Justiça é o devido processo legal. Exatamente o mesmo que fora desrespeitado no ato de sua prisão. Não se pode considerar ninguém culpado antes de julgamento e, principalmente, do trânsito em julgado da sentença. Até esse momento vigora no Brasil a presunção de inocência.
O artigo 8° do Pacto de San José de Costa Rica, ao qual o Brasil é signatário, através do Decreto n° 678, de 6 de novembro de 1992, garante o direito à presunção de inocência, a defesa, o direito de ser julgado por um tribunal competente, entre outras garantias. Todavia, não foi o comportamento da polícia, afinal, o suspeito (note que nem indiciado ainda o foi) foi preso sem camisa, algemado e conduzido à delegacia em um camburão com outros presos. E qual o problema?
Spacca
A Constituição de 1988 garante no artigo 5°, LVII a presunção de inocência, como mencionamos. Logo, não pode um suspeito ser tratado como culpado, um criminoso, sem o devido processo legal. Além disso, a mesma Constituição prevê em seu artigo 1°, III, a defesa da dignidade da pessoa humana, isto é, conduzir uma pessoa sem camisa e descalço não é compatível com a conduta que as autoridades policiais devem ter para com um suspeito.
Algumas pessoas podem alegar que Marlon sempre está sem camisa. Pode até ser, porém, as autoridades devem garantir, para sua própria segurança e lisura de comportamento, que o mesmo fosse minimamente trajado, ainda mais quando era sabido que permaneceria recolhido no sistema prisional. Zelo esse que tiveram em garantir que ele não usaria seus adereços (cordões de ouro e similares), porém, a questão da dignidade ficou em segundo plano.
No tocante às algemas, o Supremo Tribunal Federal tem uma súmula vinculante sobre o tema. Isso significa que há um entendimento constitucional com força de apensamento à decisão para todo o Judiciário e a Administração Pública, isto é, se trata de um entendimento que deve ser obedecido por todos os tribunais e órgãos administrativos.
A Súmula 11 prevê que somente é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia. Não houve nenhum elemento que justificasse a necessidade das mesmas na condução do suspeito à delegacia, ao contrário, pois, coincidentemente ou não, havia uma equipe de reportagem no local e Marlon se manifestou de forma calma e tranquila, incompatível com alguém que oferece resistência ou representa perigo a si ou a terceiros.
Quando há violação do devido processo legal há a mácula com consequências para os envolvidos e a possibilidade concreta de nulidade dos atos processuais, porque é obrigação do Estado democrático de Direito assegurar que nenhuma pessoa seja privada de seus direitos fundamentais e que os ritos processuais sejam cumpridos de maneira justa.
Você pode até não gostar do MC Poze do Rodo, suas letras, melodias ou músicas. Nem do seu estilo extravagante, seus cordões exagerados ou a forma como se porta e fala, mas nada disso faz dele um criminoso. O que separa o criminoso de um cidadão comum é justamente o devido processo legal e a apuração das provas do cometimento de crimes que o façam ser julgado e condenado pela Justiça.