

Opinião
O Supremo Tribunal Federal se prepara para julgar um tema que afeta diretamente a vida de milhares de brasileiros que financiam seus veículos e, ao mesmo tempo, o equilíbrio da arrecadação tributária dos Estados. Trata-se do Tema 1.153 com repercussão geral, que discute se é legítimo cobrar o IPVA do credor fiduciário — geralmente um banco ou financeira — em vez do devedor que realmente usa o veículo.
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A discussão é técnica, mas tem implicações práticas e econômicas profundas. Nos contratos de financiamento com alienação fiduciária, a instituição financeira fica com a propriedade formal do automóvel até que o cliente quite o valor total. No entanto, é o comprador quem detém a posse, o uso e o gozo do bem. E é justamente aí que nasce a dúvida: quem deve pagar o imposto sobre a propriedade de veículos — o dono no papel ou quem efetivamente usa o carro?
Cobrança no registro do veículo
Os Fiscos estaduais defendem que a cobrança do IPVA deve ser feita com base no registro do veículo no Detran. Para eles, o credor fiduciário é o proprietário legal, e essa formalidade é suficiente para embasar a cobrança e até a inclusão do banco no polo passivo da execução fiscal. Trata-se, para os estados, de uma questão de eficiência: rastrear quem usa o automóvel pode ser difícil e custoso. Cobrar do titular no documento é mais prático, mais barato e garante maior arrecadação.
No entanto, essa linha de raciocínio ignora a essência da alienação fiduciária. A propriedade do credor é apenas uma garantia, que inclusive não pode se dispor do bem, exceto em casos de inadimplência. Ainda, é possível fazer uma analogia com um julgado do STJ (Tema 1.158), que fixou a tese de que “o credor fiduciário, antes da consolidação da propriedade e da imissão na posse do imóvel objeto da alienação fiduciária, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU. O banco não usa o automóvel, não se beneficia dele e, muitas vezes, nem sabe onde o bem está. Responsabilizá-lo pelo pagamento do IPVA, nessas circunstâncias, parece distorcer o conceito de propriedade e, pior, sobrecarregar o sistema de crédito com mais um ônus injusto.
Impacto em crédito e vendas
Se o Supremo decidir que as instituições financeiras são responsáveis pelo imposto, mesmo sem uso ou posse, podem ocorrer desafios estruturais quase intransponíveis, como aumento da inadimplência, redução da oferta de crédito e consequente queda na venda dos veículos, impactando a cadeia industrial e reduzindo a possibilidade de arrecadação estadual.
Além disso, o julgamento do Tema 1153 vai exigir uma decisão cuidadosa sobre a chamada modulação dos efeitos. Isso significa definir a partir de quando o novo entendimento será aplicado. Caso o STF conclua que o credor fiduciário não é responsável pelo IPVA, será preciso decidir se a decisão valerá apenas daqui em diante ou também para situações passadas. Essa escolha pode ter impacto bilionário, tanto para os cofres públicos quanto para as instituições financeiras.
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Se a decisão tiver efeitos retroativos, milhares de execuções fiscais já ajuizadas poderão ser anuladas, com risco de perda de arrecadação e insegurança jurídica. Se os efeitos forem somente futuros, instituições que já vêm sendo cobradas poderão ter que arcar com um imposto que, sob a nova interpretação, não lhes compete.
Justiça fiscal e segurança jurídica
Esse é, portanto, mais do que um julgamento técnico. É um momento em que o Supremo deve equilibrar a justiça fiscal, a capacidade contributiva e a segurança jurídica. O bom senso aponta que quem deve pagar o imposto é quem se beneficia do bem — ou seja, o devedor fiduciante. Cobrar da instituição, que nada tem a ver com o uso do veículo, apenas porque seu nome aparece no registro, é uma simplificação que gera distorções e injustiças.
É compreensível a preocupação dos estados com a arrecadação. Mas essa preocupação não pode justificar a manutenção de uma lógica tributária que se apoia na forma, e não na substância. O IPVA deve recair sobre quem de fato possui, utiliza e usufrui do veículo, até porque, geralmente a receita arrecadada com o IPVA acaba sendo usada para o financiamento de obras e custeio de atividades das áreas da saúde, segurança pública e educação, e a quem mais se beneficia de tais serviços são as pessoas como os devedores fiduciários não as instituições financeiras. É isso que respeita o espírito da Constituição, que exige justiça na tributação.
Cabe ao STF dar uma resposta clara, técnica e coerente — e, se necessário, modular os efeitos com responsabilidade, para evitar efeitos colaterais indesejados. A decisão poderá definir os rumos da tributação de bens com propriedade dividida entre registro e uso e demonstrar, mais uma vez, que justiça fiscal exige mais do que burocracia. Exige sensibilidade, técnica e respeito à realidade.