Opinião
A cláusula de barreira, enquanto mecanismo de limitação do número de candidatos aptos a prosseguir nas fases subsequentes dos concursos públicos, sempre figurou como instrumento de gestão da eficiência administrativa. Contudo, esse instrumento vem sofrendo relevante inflexão no estado do Rio de Janeiro desde a promulgação da Lei Estadual nº 9.650/2022, que proibiu expressamente tal prática. Este artigo propõe uma análise crítica da constitucionalidade e aplicabilidade da referida norma, bem como da virada jurisprudencial ocorrida no âmbito do TJ-RJ, com especial atenção à sua abrangência material e subjetiva.
A cláusula de barreira e o paradigma anterior: Tema 376 do STF
O Supremo Tribunal Federal fixou, no julgamento do RE 635.739/MG (Tema 376), a tese de que é constitucional a cláusula de barreira prevista em edital de concurso público. A decisão fundamentou-se nos princípios da eficiência e da razoabilidade administrativa, conferindo aos entes federativos autonomia para regulamentar seus concursos dentro desses parâmetros. Esse entendimento consolidou-se nacionalmente como base jurídica para a eliminação de candidatos em diversas fases seletivas, ainda que estes tivessem obtido notas mínimas exigidas.
A Lei Estadual nº 9.650/2022: conteúdo e alcance
A edição da Lei Estadual nº 9.650/2022 representa uma inflexão normativa no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Seu texto proíbe a utilização de cláusulas de barreira em concursos públicos estaduais, inclusive na Administração indireta e nos municípios do Estado, com expressa previsão de aplicabilidade imediata a concursos em andamento ou ainda em validade, salvo os já homologados.
Trata-se de norma de caráter geral, com fundamento na competência estadual para legislar sobre o regime jurídico de seus servidores públicos, nos termos do artigo 39 da Constituição. A norma alcança, portanto, tanto os concursos da administração direta quanto os da administração indireta estadual e municipal, excetuando-se aqueles submetidos a regras constitucionais ou infraconstitucionais próprias.
A virada jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Inicialmente, o TJ-RJ resistiu à aplicação retroativa da nova norma, como se observa no julgamento do MS nº 0049491-05.2022.8.19.0000, de 30/1/2023, relatado pelo desembargador Maurício Caldas Lopes. Naquela ocasião, prevaleceu o entendimento de que o edital do concurso do TCE-RJ, anterior à promulgação da Lei nº 9.650/2022, deveria ser respeitado sob o manto da segurança jurídica e da legalidade do ato administrativo perfeito, com base no Tema 376 do STF e nos Temas 367 e 784, que tratam da expectativa de direito à nomeação.
Contudo, em 10/7/2023, o mesmo mandado de segurança foi julgado novamente pelo Órgão Especial do TJ-RJ, agora com resultado diverso. O tribunal reconheceu a eficácia imediata da Lei nº 9.650/2022, inclusive sobre concursos ainda não homologados, determinando a continuidade do candidato no certame. Entendeu-se que, não havendo provimento nem homologação final, o candidato possui apenas expectativa de direito, passível de conformação à nova legislação. Essa decisão consagrou novo paradigma na jurisprudência fluminense, validando a aplicação da nova norma mesmo a certames em curso.
Os limites de aplicação da Lei nº 9.650/2022: concursos com regime jurídico próprio
Spacca

Apesar de seu amplo alcance, a norma estadual não possui eficácia absoluta. Concursos públicos regidos por legislação especial — notadamente os da magistratura estadual — não estão submetidos à vedação geral da cláusula de barreira. A seleção de juízes estaduais é disciplinada pela Resolução nº 75/2009 do CNJ, com respaldo no artigo 93, I, da Constituição da República, o que impõe um regime jurídico próprio e infenso a normas estaduais.
Nessa linha, mesmo que o concurso para juiz de direito seja promovido pelo Tribunal de Justiça do Estado, sua estruturação é vinculada a comandos normativos de hierarquia superior, o que afasta a incidência da Lei Estadual nº 9.650/2022 por força da reserva de competência e da simetria constitucional.
Considerações finais
A Lei Estadual nº 9.650/2022 inaugurou um novo modelo de seleção pública no estado do Rio de Janeiro e nos municípios que o integram, ao vedar a cláusula de barreira em concursos públicos. O Tribunal de Justiça, após alguma hesitação inicial, passou a reconhecer a constitucionalidade e aplicabilidade da norma, mesmo a certames ainda em andamento, desde que não homologados.
Contudo, a aplicação da norma encontra limites claros: concursos regidos por normas especiais de caráter constitucional ou federal, como os da magistratura, mantêm sua autonomia regulatória. Essa exceção é essencial à preservação da ordem constitucional e à separação de competências entre os entes federativos.
Diante desse cenário, a jurisprudência fluminense consagra a supremacia da lei estadual como vetor de democratização do acesso aos concursos públicos, ao passo que respeita os limites da competência legislativa e a autonomia dos Poderes, compondo, assim, um modelo coerente com o federalismo cooperativo e a legalidade administrativa.
Referências
1. Supremo Tribunal Federal. RE 635.739/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 10.06.2015, DJe 17.08.2015.
2. Lei Estadual nº 9.650/2022, publicada no DOE-RJ em 14.04.2022.
3. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. MS 0049491-05.2022.8.19.0000, Rel. Des. MAURÍCIO CALDAS LOPES, j. 30.01.2023.
4. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. MS 0049491-05.2022.8.19.0000, Rel. Des. MAURÍCIO CALDAS LOPES, j. 10.07.2023.
5. Constituição Federal, art. 93, I; Resolução CNJ nº 75/2009, arts. 1º e 2º.