

Em abril de 2025, o ministro Gilmar Mendes tomou a decisão polêmica de suspender nacionalmente [1] todos os processos que versam sobre o Tema 1.389 da repercussão geral, descrito pelo Supremo Tribunal Federal como sendo:
“Recurso extraordinário que discute, à luz do entendimento consolidado na ADPF 324, a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, bem como o ônus da prova relacionado à alegação de fraude na contratação civil. Preliminarmente, será analisada a competência da Justiça do Trabalho para julgar as causas que tratam da existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços” [2].
Assim, o julgamento desse tema detém o potencial de trazer modificações paradigmáticas. Isso porque o STF determinará em que medida as contratações civis e comerciais poderão, legitimamente, substituir a relação empregatícia, bem como a esfera de competência da Justiça do Trabalho para dirimir eventuais fraudes.
Em primeiro lugar, tanto a decisão que reconheceu a repercussão geral quanto a decisão suspensiva já possibilitam antever o direcionamento do ministro relator Gilmar Mendes. Nesta última, o ministro manifestou tom de descontentamento com a Justiça do Trabalho, destacando que o grande número de reclamações constitucionais ajuizadas perante o STF decorre da renitência das instâncias justrabalhistas de se adequar ao posicionamento da Corte Suprema [3]. Mas, afinal, qual é o posicionamento que vem sendo supostamente contrariado?
Em julgados recentes, o STF está reiteradamente admitindo a pejotização como uma modalidade lícita de terceirização. Chama atenção que, mesmo após a decisão de suspensão nacional dos processos, o ministro Cristiano Zanin derrubou o reconhecimento de vínculo empregatício de advogada contratada para prestar serviços através de pessoa jurídica de sua titularidade [4].
Embaralhamento
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Apesar de o tribunal reclamado ter considerado que as provas dos autos demonstram a existência de subordinação jurídica típica da relação empregatícia, o ministro Zanin seguiu a ratio decidendi que enquadra a pejotização como terceirização, mencionando expressamente que a decisão reclamada afronta a ADPF 324 e o Tema 725 do STF.
Percebe-se, então, que o Supremo Tribunal mistura dois conceitos distintos, uma vez que a terceirização e a pejotização não se confundem. O embaralhamento deriva da errônea aplicação da tese firmada no julgamento do Tema 725 [5]: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
Ou seja, passou-se a permitir a terceirização da atividade-fim da empresa. Assim, é lícito que a empresa contrate, através de um contrato de prestação de serviços, outra empresa (terceirizada), utilizando-se do quadro de empregados terceirizados para exercício de sua atividade empresarial principal. Nota-se que, nesse cenário, a relação de emprego existe entre o empregado e a empresa terceirizada, responsável pela anotação da carteira de trabalho e consequentes deveres daí advindos, a exemplo do recolhimento de contribuições previdenciárias, FGTS, etc. Vale salientar que, no julgamento da ADPF 324, o STF manteve a responsabilidade subsidiária da empresa contratante pelo descumprimento de normas trabalhistas e previdenciárias [6].
Por outro lado, a pejotização se apresenta como a constituição de uma pessoa jurídica na qual o trabalhador consta no quadro societário (agora, a SLU permite, inclusive, que seja o único sócio). Na verdade, a sociedade empresária constituída não exerce atividade empresarial, mas apenas funciona como uma estrutura que possibilita a celebração de um contrato civil de prestação de serviços ao invés da formalização do vínculo empregatício. Dessa forma, mesmo estando presentes os requisitos da relação de emprego, o empregador tenta se furtar de suas obrigações trabalhistas e previdenciárias alegando que se trata de um contrato celebrado entre empresas. Fica evidente, portanto, o intuito fraudulento da pejotização.
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Nessa conjuntura, a categorização errônea da pejotização como uma modalidade de terceirização vem acompanhada de um discurso, expressamente veiculado pelo STF, de liberdade econômica, da valorização da livre iniciativa e autonomia privada. Tal linha de raciocínio é corroborada, quando se verifica que a “empresa contratada” é titularizada por empregado hiperssuficiente (CLT, artigo 444, parágrafo único), que, supostamente, não está em condição de vulnerabilidade para ser alvo da proteção do Judiciário trabalhista [7]. O argumento faz parecer que a própria relação de emprego se tornou disponível e, por conseguinte, livre das normas cogentes que tipificam o vínculo empregatício [8].
Competência
Essa situação ainda se agrava ao se analisar que o STF se inclina à tese de que a Justiça do Trabalho não seria competente para reconhecer a existência de fraude em contratação civil, quando o autor pleiteia a decretação de nulidade do contrato em razão da incidência dos requisitos próprios da relação de emprego. Ora, se a causa de pedir consiste na existência de uma relação de emprego simulada através de um contrato civil, trata-se de ação oriunda de relação de trabalho nos termos do artigo 114, I da Constituição .
É interessante atentar para o fato de que, no julgamento da Reclamação 73.467/SP, o ministro Gilmar Mendes reconheceu a competência da Justiça Comum para anular contratos civis e comerciais com pedido de reconhecimento de vínculo de emprego [9]. Na fundamentação da decisão, curiosamente, o ministro Gilmar Mendes citou o RE 606.003/RS (Tema 550 do STF), julgado em 2020, no qual foi fixada a tese de que: “Preenchidos os requisitos dispostos na Lei 4.886/65, compete à Justiça Comum o julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que não há relação de trabalho entre as partes”.
Há uma contradição, na medida em que a ratio do Tema 550 definiu que, caso a causa de pedir tenha natureza trabalhista (a exemplo da parte autora alegar os elementos fáticos e fundamentos jurídicos caracterizadores da relação de emprego), a competência para processar o feito é da Justiça do Trabalho. No julgamento, o ministro Gilmar Mendes seguiu esse entendimento, veiculado no voto vencedor do ministro Luís Roberto Barroso. O caso concreto, por trás do Tema 550, discutia apenas o pagamento das comissões devidas ao representante comercial [10]. Logo, a tese vinculante, cunhada em sede Repercussão Geral, foi mal enquadrada na Reclamação 73.467/SP, demonstrando o caráter errático da jurisprudência.
Frente ao exposto, desponta o seguinte questionamento: se o STF decidir pela licitude da contratação pejotizada, quando ficará caracterizada a fraude? Parece que a mera formalização de uma roupagem de relação civil está se sobrepondo à verdadeira análise da presença dos caracteres da relação empregatícia. Uma possível saída para essa questão (ainda que indevida) será o estabelecimento de um recorte, feito pelo STF, que liberalize as formas de contratação para um determinado nicho, a exemplo dos empregados hiperssuficientes. Essa linha argumentativa teria grande repercussão sobre os profissionais liberais que ganham igual ou acima do dobro do teto do RGPS. Ou seja, na prática, grande parte da classe média seria impactada pelo retrocesso de não mais usufruir de direitos constitucionais trabalhistas, como férias, décimo terceiro, licença-maternidade remunerada, horas extras, etc.
O impacto da pejotização também é muito sério no sistema de Previdência Social. Em nota técnica acerca dos impactos desse fenômeno sobre a arrecadação tributária, Nelson Marconi e Marco Brancher apresentam o dado de que, se metade dos trabalhadores deixassem de ser empregados CLT para serem contratados como pessoas jurídicas, a perda de arrecadação atingiria, em um único ano, mais de R$ 384 bilhões [11].
Por fim, caso não seja reconhecida a competência da Justiça do Trabalho para identificação de fraudes, haverá o esvaziamento do artigo 114, I da Constituição. Afinal, o empregador não assumiria os ônus de um vínculo empregatício, quando existe ampla liberdade para pactuar contrato civil. A restrição da competência, associada à expansão da pejotização, torna difícil fazer com que a Justiça do Trabalho não caia na irrelevância.
São muitas preocupações, mas é imprescindível que não se deixe de destacar a mais importante: viveremos em um país de empregados travestidos de pessoas jurídicas?
[1] CPC, art. 1.035, § 5º Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.
[2] Brasil. Supremo Tribunal Federal, ARE 1.532603 (Tema 1.389), Rel. Gilmar Mendes. Disponível aqui
[3] “Conforme evidenciado, o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas.”
[4] Brasil. Supremo Tribunal Federal, Reclamação 78.616/SP, Rel. Cristiano Zanin, julgado em 29/04/2025.
[5] Brasil. Supremo Tribunal Federal, RE 958.252 (Tema 725), Rel. Luiz Fux, julgado em 30/08/2018. Esse recurso foi julgado em conjunto com a ADPF 324.
[6] DELGADO, Maurício. Curso de Direito do Trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 565.
[7] Observemos que, no seguinte precedente, o min. Dias Toffoli afirma que a ausência de vulnerabilidade do contratado legitima a pejotização. Brasil. Supremo Tribunal Federal, Reclamação 64.763/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 19/08/2024: “Há, ainda, precedentes do STF nos quais o julgado na ADPF no 324 e a tese do Tema no 725 RG justificaram a procedência da reclamação para afirmar a licitude do fenômeno da contratação de pessoa jurídica unipessoal para prestação de serviço a empresa tomadora de serviço, destacando-se não apenas a compatibilidade dos valores do trabalho e da livre iniciativa na terceirização do trabalho assentada nos precedentes obrigatórios, como também a ausência de condição de vulnerabilidade na opção pelo contrato firmado na relação jurídica estabelecida a justificar a proteção estatal por meio do Poder Judiciário.”
[8] Brasil. Supremo Tribunal Federal, Reclamação 69.376/RJ, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em 19/08/2024: “Transferindo-se as conclusões da CORTE para o contrato de franquia empresarial, tem-se a mesma lógica para se autorizar a constituição de vínculos distintos da relação de emprego, legitimando-se a escolha pela organização de suas atividades por implantação de franquia, dando concretude ao art. 2º da Lei 8.955/1994 […]”
[9] Brasil. Supremo Tribunal Federal, Reclamação 73.467/SP, rel. min. Gilmar Mendes, julgado em 07/11/2024: “Ressalto que em diversas oportunidades o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a competência da Justiça Comum, e não da Justiça do Trabalho, para analisar a regularidade de contratos civis/comerciais de prestação de serviços, afastando inicialmente a natureza trabalhista da controvérsia. Sem prejuízo de que, se acaso reconhecido algum vício apto a ensejar a anulação do contratos, os autos sejam remetidos à justiça especializada para decidir acerca de eventuais efeitos trabalhistas.”
[10] Brasil. Supremo Tribunal Federal, RE 606.003/RS (Tema 550), Tribunal Pleno, rel. min. Marco Aurélio, redator para o acórdão min. Luís Roberto Barroso, julgado em 28/09/2020: “Ademais, a competência material é definida em função do pedido e da causa de pedir. Conforme decidiu esta Suprema Corte, a definição da competência decorre da ação ajuizada. Tendo como causa de pedir relação jurídica regida pela CLT e pleito de reconhecimento do direito a verbas nela previstas, cabe à Justiça do Trabalho julgá-la; do contrário, a competência é da Justiça comum (CC 7.950, rel. min. Marco Aurélio). Os autos tratam de pedido de indenização decorrente da rescisão do contrato de representação comercial, não estando em discussão qualquer obrigação de índole trabalhista, de vínculo ou remuneração, mas apenas discussão acerca do descumprimento do contrato de representação comercial, com o requerimento do pagamento das comissões atrasadas. O pedido e a causa de pedir, assim, não têm natureza trabalhista, a reforçar a competência do Juízo Comum para a apreciação e o julgamento da demanda.”
[11] Marconi, Nelson; Brancher, Marco. Nota técnica sobre os impactos da pejotização sobre a arrecadação tributária. Fundação Getúlio Vargas, 2024. Disponível aqui