Opinião
A participação direta do cidadão comum em processos de controle de constitucionalidade ainda é um tema cercado de dúvidas no Brasil. Este artigo discute a possibilidade de pessoas físicas atuarem como amicus curiae — figura que permite a participação de terceiros para enriquecer o debate jurídico — em ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal.
Antonio Augusto/STF
O debate é relevante porque o STF tem se tornado cada vez mais central na definição de direitos fundamentais e políticas públicas. Em um cenário em que decisões judiciais impactam a vida coletiva, garantir canais de participação democrática se torna essencial. O amicus curiae, ao abrir espaço para manifestações externas ao processo, é apontado como um importante instrumento para dar mais pluralidade e legitimidade às decisões. No entanto, persiste a dúvida: o cidadão, enquanto indivíduo, pode ou não atuar nesse papel?
A literatura destaca o amicus curiae como instrumento de pluralismo e democratização do processo constitucional, permitindo que diferentes perspectivas sociais e técnicas sejam consideradas nas decisões judiciais. Seu papel também se revela importante para a efetivação de políticas públicas, ao trazer informações especializadas que auxiliam o tribunal.
Apesar do potencial democratizador, críticas ao funcionamento do instituto são frequentes. Estudos apontam que o STF adota critérios subjetivos na admissão de amici curiae, privilegiando entidades organizadas e restringindo a participação de cidadãos individuais. A falta de transparência e o tratamento desigual dos argumentos apresentados comprometem a abertura efetiva do debate constitucional.
A controvérsia foi reacesa em 2020, com o julgamento do Agravo Regimental na ADI 3396/DF. Na ocasião, o STF reafirmou que apenas entidades representativas, e não pessoas físicas, podem ser admitidas como amici curiae. Para a Corte, o cidadão isoladamente não teria “representatividade adequada” para participar. Mas essa decisão levanta questões inquietantes: será que interpretar e reivindicar a Constituição é um privilégio reservado apenas a organizações formais? Ou seria a cidadania, por si só, suficiente para justificar a participação nos grandes debates constitucionais?
Amicus curiae no Brasil
O amicus curiae, originário do sistema jurídico anglo-saxão, foi incorporado ao direito brasileiro com a função de enriquecer o debate judicial em temas de grande complexidade e relevância social. Embora alguns autores encontrem raízes do instituto no direito romano, sua consolidação ocorreu especialmente no direito inglês e norte-americano, onde até hoje é amplamente utilizado por entidades civis, governos e movimentos sociais. No Brasil, a positivação do amicus curiae aconteceu em 1999, com por intermédio da Lei nº 9.868. O Código de Processo Civil de 2015 ampliou ainda mais seu uso, permitindo a participação em qualquer processo judicial relevante, desde que o interessado demonstre representatividade e a importância do tema tratado.
Embora o artigo 138 do CPC não vede expressamente a participação de indivíduos, a exigência de “representatividade” e “relevância” cria barreiras implícitas. Assim, persiste a necessidade de refletir sobre como tornar o instituto mais acessível e, de fato, inclusivo, fortalecendo a presença da sociedade civil no processo constitucional.
Spacca
A Lei nº 9.868/1999 sugere que apenas órgãos ou entidades podem atuar como amicus curiae. O Supremo adota essa interpretação de forma majoritária, exigindo representatividade institucional para admitir terceiros no processo. Em casos como o RE 659.424/RS e a ADI 4.178, a Corte negou a participação de pessoas físicas, mesmo reconhecendo que o amicus curiae contribui para pluralizar o debate e legitimar socialmente as decisões.
Em geral, o STF distingue a atuação como amicus curiae da participação em audiências públicas, onde a oitiva de indivíduos é possível. Contudo, algumas decisões destoaram dessa rigidez. No MS 32.033, parlamentares foram admitidos como amici curiae, considerando a relevância do tema e a repercussão política envolvida. O ministro Luís Roberto Barroso também permitiu o ingresso do senador Renan Calheiros como amicus na ADI 6.855, ligada às restrições da pandemia, mas, no mesmo processo, recusou pedido de cidadão comum, alegando falta de expertise e representatividade.
O novo Código de Processo Civil (CPC), em vigor desde 2015, inovou ao autorizar expressamente a participação de pessoas naturais como amici curiae (artigo 138, §2º). A mudança busca aproximar o processo judicial das demandas sociais e ampliar a pluralidade de vozes. Mesmo assim, a prática mostra que a aceitação de indivíduos pelo STF ainda é rara e altamente dependente da avaliação subjetiva dos ministros quanto à relevância e qualificação do postulante.
Participação do cidadão no STF: análise do AgRg na ADI 3.396
A ADI 3.396/DF, julgada em agosto de 2020, ilustra com profundidade as tensões existentes no Supremo sobre a participação do cidadão como amicus curiae no processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade. O recurso interposto pelo cidadão Anildo Fabio de Araujo, procurador da Fazenda Nacional, após o indeferimento de seu pedido de intervenção, foi conhecido mas teve seu provimento negado, evidenciando os limites da atuação cidadã em processos constitucionais objetivos.
O ministro Celso de Mello, relator, conheceu do agravo regimental com base na jurisprudência consolidada do STF, que admite recurso contra decisão que recusa a intervenção de terceiro como amicus curiae (ADI 3.315-ED/PB, relatora ministra Cármen Lúcia). Justificou a admissão do recurso como necessário para preservar o pluralismo no debate constitucional e a legitimidade democrática das decisões do Tribunal. Contudo, negou provimento por ausência de “representatividade adequada”, requisito previsto no §2º do artigo 7º da Lei 9.868/1999, inaplicável a pessoas físicas.
Celso de Mello destacou o papel do amicus curiae na valorização democrática do processo constitucional, reconhecendo que o controle de constitucionalidade possui efeitos amplos que atingem toda a sociedade (implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais). Apesar disso, reafirmou a natureza objetiva do processo, que, por definição clássica, não abarca interesses individuais, afastando a intervenção de pessoas físicas.
Esse posicionamento revela uma tensão latente: de um lado, o reconhecimento teórico da abertura democrática e pluralista do processo constitucional, inspirado na teoria da sociedade aberta dos intérpretes da Constituição de Peter Häberle, mencionada no voto com base na obra de Mendes. De outro, a prática restritiva que, na ausência de representatividade institucional, inviabiliza a participação do cidadão comum.
Divisão interna no STF
A análise dos votos evidencia uma divisão interna no tribunal. De um lado, ministros como Luiz Fux e Luís Roberto Barroso opuseram-se à admissibilidade do recurso e à participação do cidadão, preocupados com o possível “tumulto processual” e a funcionalidade do Tribunal. Fux argumentou que “o especialista é o próprio tribunal” (iura novit curia) e que admitir recursos de indeferimento abriria espaço para agravos massivos e ineficiência institucional.
De outro, ministros como Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Rosa Weber mostraram maior abertura à reflexão sobre a evolução do papel do amicus curiae. Rosa Weber, por exemplo, reformulou seu voto para reconhecer o recurso, indagando: “Minha condição de pessoa física inibe meu ingresso em ação de controle concentrado? Não se aplica o CPC no caso?”, reconhecendo que o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), ao ampliar a legitimação do amicus curiae, poderia ensejar mudanças futuras no entendimento tradicional.
Gilmar Mendes, ao recordar sua participação na redação da Lei 9.868/99, alertou para a importância de ponderar a utilidade da intervenção, ilustrando com a hipótese de especialistas reconhecidos em saúde pública, como os doutores Pinotti ou Jatene, atuarem em processos constitucionais relevantes, independentemente de sua condição de pessoa física.
Esse debate expôs o caráter discricionário da análise de representatividade adequada, como apontado por Aline Lisboa Naves Guimarães, e o risco de decisões baseadas em critérios subjetivos ou metajurídicos, fenômeno criticado por Marco Aurélio (“argumento metajurídico” sobre tumulto processual).
Importante registrar que, embora vencido em parte, o voto do ministro Edson Fachin salientou a possibilidade de, à luz do novo CPC, o STF reavaliar a vedação de pessoas físicas como amicus curiae, sinalizando uma possível inflexão jurisprudencial.
O julgamento revelou, ainda, uma preocupação pragmática recorrente: a proteção da eficiência e funcionalidade do STF. Barroso e Fux reiteraram que o Tribunal, já assoberbado, não poderia se permitir abarrotar de intervenções que pouco agregariam. Todavia, Marco Aurélio relativizou essa preocupação, observando que “são raríssimos aqueles que se mostram inconformados quando não admitidos”.
Contradição da jurisdição constitucional
No plano teórico, o caso reafirma a contradição intrínseca da jurisdição constitucional: se, por um lado, a função democrática e pluralista é amplamente celebrada, por outro, o rigor na admissibilidade dos amici curiae demonstra o fechamento hermenêutico da Corte. A seletividade excessiva pode, em última análise, reproduzir o déficit democrático que o instituto visava superar.
O desfecho do julgamento, com o conhecimento do recurso por maioria, mas a negativa de provimento por unanimidade, confirma que, embora o acesso ao debate seja formalmente aberto, a efetiva participação do cidadão ainda encontra fortes barreiras na lógica processual da fiscalização abstrata.
A partir desse estudo de caso, evidencia-se que a participação cidadã no controle de constitucionalidade, embora teoricamente prestigiada, permanece condicionada a critérios restritivos de representatividade e utilidade, cujo julgamento é altamente discricionário. A tensão entre a necessidade de pluralismo e a exigência de eficiência continua a moldar, de forma decisiva, a prática do Supremo.
A análise revela que o STF adota uma “amizade seletiva” na admissão dos amici curiae, privilegiando determinados tipos de participantes de forma estratégica e discricionária. A ausência de balizas claras, combinada com o uso de critérios vagos como “conveniência” e “utilidade”, resulta em práticas excludentes e pouco transparentes, que não favorecem a abertura democrática dos debates constitucionais. Essa prática enfraquece a função pluralizadora e de legitimação que o instituto do amicus curiae deveria desempenhar, criando um descompasso entre o discurso jurídico e a realidade da atuação do Tribunal.
Diante desse cenário, impõe-se a necessidade de revisão crítica dos critérios de admissão de terceiros no processo constitucional, bem como a formulação de parâmetros objetivos que favoreçam a participação social. Estudos empíricos futuros poderão investigar mais sistematicamente o impacto da atuação direta de cidadãos no Supremo, bem como avaliar de que modo a maior abertura procedimental pode contribuir para o fortalecimento do pluralismo e da legitimidade democrática da jurisdição constitucional brasileira.