porta fechada para devassa informal


No último dia 14 de maio, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os RHCs 196.150, 174.173 e o REsp 2.150.571, pôs fim à controvérsia sobre o alcance dos relatórios de inteligência financeira (RIFs). Por maioria de seis votos a três, fixou-se tese vinculante segundo a qual é inviável que o Ministério Público ou a Polícia Judiciária requisitem, sem ordem judicial, a remessa de RIFs pelo Coaf.

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A decisão do STJ não apenas confirma essa tese: reafirma que, como sustentei em outra passagem nesta ConJur, o combate ao crime não pode sacrificar garantias fundamentais como o sigilo bancário, a intimidade e a ampla defesa. Práticas como a solicitação de RIFs sem autorização judicial, a ampliação indevida de escopos investigativos e a adoção de fishing expeditions colidem com os alicerces do Estado democrático de Direito, pois subvertem a presunção de inocência, vulneram a ampla defesa e contaminam de ilicitude as provas produzidas.

Ao afastar a leitura ampliativa do Tema 990 do STF — que legitima apenas o compartilhamento espontâneo —, o STJ recolocou a reserva de jurisdição no centro do controle das devassas patrimoniais e financeiras, impondo um freio jurídico à prática que, sob o rótulo de “eficiência investigativa”, vinha autorizando pescarias probatórias sem contraditório.

A corte deixou claro que o compartilhamento admitido pelo Supremo não autoriza o movimento inverso, ou seja, a requisição ativa por parte do Ministério Público ou da Polícia Judiciária. Prevaleceu a compreensão de que a eficácia estatal na repressão penal não dispensa a mediação judicial, sendo inaceitável a coleta de dados sensíveis à margem das garantias fundamentais.

Como sustentado no voto do ministro Messod Azulay, não se trata de impedir a produção da prova, mas de reafirmar que sua obtenção há de respeitar os limites constitucionais que distinguem um processo penal civilizado de experimentos inquisitoriais travestidos de modernidade.

Spacca

A tese assentada é direta e enfática: “A solicitação direta de relatório de inteligência financeira pelo Ministério Público ao Coaf, sem autorização judicial, é inviável. O Tema 990 da repercussão geral não autoriza a requisição direta dos dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial”.

O efeito é imediato e de largo alcance: a partir de agora, ambas as turmas criminais do STJ — que desde 2021 divergiam sobre a validade das requisições proativas — devem submeter-se à diretriz da 3ª Seção, reconhecendo como nulo todo RIF obtido sem prévia autorização judicial, ainda que requerido após a formalização de inquérito policial ou PIC. A decisão encerra a era dos “RIFs por encomenda” e exige, doravante, o indispensável crivo jurisdicional como condição de existência da prova.

Entre a pressão investigativa e o limite constitucional

Durante a sessão de julgamento, os representantes ministeriais defenderam que o enfrentamento ao crime organizado exige mecanismos céleres de investigação patrimonial. Invocaram, como pano de fundo, o colapso da segurança pública no Rio de Janeiro, a ocupação territorial por facções e o fenômeno da “exportação” de lideranças criminosas para outras unidades da federação. A defesa, por sua vez, evidenciou a gravidade do desvio funcional a que os RIFs vinham sendo submetidos.

Demonstrou-se que milhares de CPFs e CNPJs – até 10 mil em um único caso – foram objeto de requisição direta, sem inquérito formal, sem individualização prévia e sem qualquer controle judicial. O caso relatado de um escritório de advocacia alvo de devassa patrimonial por meio de VPI, sem sequer citação do nome em denúncia anônima, expôs o uso dos RIFs como dossiês secretos mantidos em “gavetas investigativas”. Ocultados por mais de um ano da defesa e até do próprio Ministério Público revisor, tais relatórios sustentavam investigações posteriormente legitimadas sob o pretexto de “encontro fortuito”.

A técnica foi denunciada como fraude processual sistêmica, contrariando frontalmente os postulados do devido processo legal e da paridade de armas.

Distinção entre compartilhamento e requisição

Relator da posição vencedora, o ministro Messod Azulay Neto enfatizou, com precisão didática, que o Tema 990 jamais autorizou a via inversa. O precedente do Supremo Tribunal Federal referia-se ao envio espontâneo de informações pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF), condicionado a indícios prévios de ilicitude, à existência de procedimento formal e ao controle jurisdicional posterior. Segundo o voto condutor, não há na ordem jurídica qualquer respaldo – legal ou jurisprudencial – à requisição ativa de RIFs por órgãos de persecução penal.

Apenas o compartilhamento espontâneo foi validado pelo STF. Nas palavras do relator o art. 15 da Lei de Lavagem trata apenas do compartilhamento espontâneo. Não há autorização legal nem jurisprudencial para que o Ministério Público ou a polícia, de ofício, exijam o envio de RIFs sem prévia autorização judicial.

Ao contextualizar o cenário normativo e jurisprudencial, o ministro expôs a multiplicidade de entendimentos não apenas no âmbito das turmas do STJ, mas também entre a 1ª e a 2ª Turma do STF — um quadro de instabilidade interpretativa que tornou imperativa a fixação de uma tese unificada. Destacou ainda que, embora a Corte Especial do STJ tenha admitido, por maioria apertada, o acesso extrajudicial a dados cadastrais simples, os relatórios de inteligência financeira guardam conteúdo significativamente mais sensível, por isso submetidos a um regime de proteção qualificado. Para o relator, qualquer devassa em tal esfera exige a intervenção do Poder Judiciário como garantia indeclinável de um processo penal constitucionalmente legítimo.

Barreira contra o abuso institucional

O ministro Sebastião Reis Júnior, ao proferir voto paralelo, destacou com precisão o verdadeiro núcleo do debate: o STJ não está vedando a produção da prova — apenas exigindo que ela passe pelo crivo constitucional da autorização judicial. Em sua análise, os dados constantes nos RIFs não estão sujeitos a perecimento ou volatibilidade que justificasse qualquer alegação de urgência.

Por serem informações estáticas, não há razão legítima para dispensar a intermediação jurisdicional. Sua ponderação desarmou a narrativa fundada no apelo à segurança pública irrestrita, frequentemente usada para justificar mecanismos investigativos informais. “Ninguém está impedindo a produção da prova”, afirmou. “Estamos apenas exigindo que a produção obedeça aos limites legais.”

Ao colocar a exigência de ordem judicial como cláusula de estrutura e não de conveniência, o voto reafirma a centralidade da legalidade estrita no processo penal acusatório, impedindo que o combate ao crime se converta em uma válvula de escape institucional para práticas de exceção. Como assinalou o ministro, o respeito à reserva de jurisdição não enfraquece o Estado investigativo – ao contrário, o fortalece sob a luz do Estado de Direito.

O próprio ministro Reinaldo Soares da Fonseca, ao acompanhar a maioria, reafirmou a coerência de sua posição histórica: a reserva de jurisdição não diminui a legitimidade do Ministério Público, mas a projeta no exato lugar institucional que a Constituição lhe conferiu. Nenhum juiz — asseverou — negará acesso a dados sigilosos quando apresentados elementos mínimos de justa causa. O que se exige, portanto, não é um entrave, mas um filtro civilizatório, próprio de um processo penal que se pretenda democrático.

Em contraponto, os votos vencidos — liderados pelo ministro Og Fernandes e seguidos por Rogério Schietti e Ribeiro Dantas — sustentaram que o Superior Tribunal de Justiça não poderia reinterpretar o alcance do Tema 990, sob pena de afrontar a competência do STF. Ainda que fundamentados em premissas institucionais respeitáveis, esses votos não lograram convencer a maioria, que compreendeu ser inadmissível a omissão diante de um vácuo hermenêutico persistente, agravado por práticas reiteradas de informalidade persecutória.

Em nome da integridade do sistema acusatório, o STJ decidiu não apenas que podia, mas que devia firmar jurisprudência própria até que o STF venha a fixar entendimento definitivo.

Reafirmação do processo penal garantista

A decisão da 3ª Seção atua como verdadeiro antídoto contra a degeneração investigativa que vinha se consolidando nos bastidores da persecução penal. Sustentações orais e manifestações técnicas revelaram, de forma incontornável, que a requisição direta de RIFs havia se convertido em expediente quase automático – sem controle judicial, sem contraditório. Dados trazidos à tribuna apontaram aumento de 1.339% nos pedidos, expondo o uso desenfreado de uma ferramenta concebida para finalidades excepcionais. Transformado em braço informal da repressão estatal, o Coaf passou a alimentar uma arquitetura paralela de vigilância patrimonial, imune a qualquer controle defensivo.

Com a nova tese fixada, a equação jurídica se altera de modo estrutural: RIFs obtidos por requisição direta, mesmo após instauração de inquérito, passam a ser prova ilícita, atraindo a cláusula excludente do artigo 157 do Código de Processo Penal e comprometendo, por derivação, todos os atos subsequentes. Além disso, a prática reiterada por autoridades persecutórias, à revelia da decisão do STJ, poderá ensejar responsabilização funcional por violação do artigo 10 da LC 105/2001 e do artigo 25 da Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019).

Reafirma-se, assim, o compromisso com um processo penal garantista, no qual a eficácia investigativa não se constrói à custa da legalidade, da paridade de armas ou da cláusula de jurisdição.

Olimite que garante a legitimidade

Esse resultado não tolhe investigações legítimas – apenas lhes devolve o itinerário constitucional. O art. 5º, XII, da Constituição Federal, a Lei Complementar 105/2001 e o art. 3º-B, §1º, do Código de Processo Penal não são obstáculos burocráticos à persecução penal: são garantias estruturantes de um processo penal civilizado. A repressão eficaz ao crime, especialmente ao de natureza econômica e patrimonial, exige inteligência, estratégia e celeridade – mas nenhuma dessas virtudes autoriza o desprezo à reserva de jurisdição, à legalidade estrita ou ao contraditório.

Ao interditar a requisição direta de RIFs sem autorização judicial, o STJ não impõe um obstáculo arbitrário à atuação do Ministério Público ou das polícias. Pelo contrário, reforça a legitimidade de suas atribuições, submetendo-as ao controle judicial prévio, que é a moldura institucional própria de qualquer medida que atinja esferas sensíveis da intimidade financeira dos cidadãos. Não se trata de conferir privilégio a investigados, mas de garantir que, mesmo diante de investigações graves e complexas, a atuação estatal permaneça ancorada na legalidade e sujeita a controle de proporcionalidade.

Reafirma-se, assim, que a eficiência não é um valor absoluto. Quando dissociada da legalidade, converte-se em autoritarismo funcional, ainda que travestido de boa intenção. O que o julgamento da 3ª Seção expõe, com nitidez, é que a eficácia da persecução penal não pode legitimar métodos clandestinos, tampouco naturalizar práticas de exceção. Em matéria de sigilo bancário e financeiro, o controle judicial não é uma formalidade a ser superada: é a cláusula de validade, de legitimidade e de civilidade do processo penal democrático.

A decisão de 14 de maio de 2025 marca, assim, um ponto de inflexão: reequilibra a relação entre poder investigativo e garantias fundamentais, reafirma a centralidade do Judiciário no controle de medidas invasivas e devolve à dogmática processual penal a clareza que a prática vinha solapando. Ao fechar a porta da devassa informal, o STJ não enfraquece o combate ao crime – fortalece a República e o Estado democrático de Direito.


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