Receita ultrapassa limites da interpretação e passa a legislar


Opinião

A linha entre interpretar e legislar é clara no direito tributário — ou deveria ser. No entanto, a Receita Federal ultrapassou os limites da interpretação e passou a legislar, como revela a Solução de Consulta Cosit nº 55/2025 [1], que mostra como, em nome da arrecadação, a administração tributária pode ultrapassar perigosamente essa fronteira. E, ao afirmar que os bônus eventuais pagos pelas empresas devem compor a base de cálculo da contribuição previdenciária patronal, o órgão arrecadador extrapola seu papel técnico-interpretativo e assume um protagonismo normativo que não lhe compete.

Joédson Alves/Agência Brasil

telão da receita federal e homem em contra luz

Essa posição revela não apenas um erro de interpretação, mas um verdadeiro desvio de função administrativa, onde, em vez de aplicar a lei como está, a Cosit se vale de sua autoridade para reformular o conteúdo normativo da legislação previdenciária, transformando exceção legal em nova hipótese de incidência tributária. O que era para ser uma leitura fiel da norma tornou-se uma tentativa de ampliar, sem respaldo legal, o alcance de uma obrigação tributária.

Bônus eventual não é salário. Essa constatação, que deveria ser pacífica, precisa ser reafirmada porque a Cosit parece ignorar o que está escrito de forma expressa no artigo 28, §9º, da Lei nº 8.212/91, pois o dispositivo exclui da base de cálculo da contribuição os valores pagos a título de prêmios ou abonos eventualmente concedidos, sendo pagamentos esporádicos, sem obrigação contratual, feitos com liberdade pelo empregador. Não são retribuição habitual, nem contraprestação por serviço. Portanto, não integram o salário de contribuição.

Cosit transgride limites legais da administração tributária

Ao sustentar o contrário, a Cosit não apenas distorce a norma. Ela transgride os limites legais da própria administração tributária. E, segundo o artigo 97 do Código Tributário Nacional, somente a lei em sentido estrito pode criar ou majorar tributos, bem como definir seu fato gerador, base de cálculo e sujeito passivo. Uma solução de consulta, por mais técnica que seja, não tem poder para instituir obrigações tributárias, e ao fazê-lo, incorre em flagrante ilegalidade.

Como bem ensinou Ataliba [2], “às contribuições aplica-se, na sua inteireza, o princípio da estrita legalidade”, tratando-se, portanto, de um limite intransponível: não se pode exigir contribuição sem que a lei a tenha definido expressamente, em todos os seus aspectos essenciais, afrontando o artigo 5º, inciso II, da Constituição, que afirma com clareza: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei“, e assim, quando a Receita exige contribuição sobre um valor que a própria lei exclui da base de cálculo, está, na prática, criando uma obrigação que não existe no ordenamento. Isso não é apenas um excesso: é uma violação frontal à Constituição.

Essa violação ao princípio da legalidade tributária é destacada por Helena Costa [3], “que, em atendimento ao mandamento constitucional, impositivo da edição de lei para a instituição e a majoração de tributo (aspecto formal), tal ato normativo deve, em seu conteúdo, estampar: a hipótese de incidência tributária, em todos os seus aspectos (material, espacial, temporal, pessoal e quantitativo)”. E estando na mesma linha, Brito Machado [4] afirma com firmeza que “na lei devem estar todos os elementos necessários (…). A lei não pode deixar para o regulamento ou para qualquer outro ato normativo inferior a indicação de qualquer dos elementos necessários a essa determinação. Todos os elementos essenciais da relação jurídica tributaria devem ser indicados pela lei”.

Constituição atingida

Mas o problema não se limita à violação da lei ordinária. E vai além. Ao impor uma tributação que não encontra respaldo legal, a Cosit também atinge diretamente a Constituição, como dispõe o seu artigo 150, inciso I, que veda a exigência de tributo sem lei que o institua, enquanto o inciso IV proíbe o confisco, ou seja, o uso da tributação como instrumento de cobrança desproporcional, que comprometa a capacidade econômica do contribuinte, estando neste diapasão o ensinamento de  Carrazza [5]:

Dito de outro modo, do princípio expresso da legalidade poderíamos extratar o princípio implícito da legalidade tributaria. Mas o legislador constituinte, emprenhado em acautelar direitos dos contribuintes, foi mais além: deixou estampada esta ideia noutra passagem da Carta Magna, nomeadamente em seu art. 150, I (…). Portanto, o principio da legalidade teve sua intensidade reforçada, no campo tributário, pelo art. 150, I, da CF. Graças a este dispositivo, a lei — e só ela — deve definir, de forma absolutamente minuciosa, determinada e tendencialmente fechada, os tipos tributários. Sem esta precisa tipificação de nada valem regulamentos, portarias, atos administrativos e outros atos normativos infralegais: por si sós, não tem a propriedade de criar ônus ou gravames aos contribuintes”, logo, não se trata de retórica doutrinária: trata-se de um alerta contra o arbítrio fiscal institucionalizado.

Spacca

Assim, o que a Receita propõe é que empresas que, de maneira espontânea, premiam um ou outro funcionário por desempenho excepcional, passem a ser penalizadas com um custo previdenciário indevido. Ao invés de incentivo à meritocracia, o que se cria é um desestímulo, um risco fiscal artificial, obtendo um resultado prático, um empurrão à judicialização, ao passivo e à insegurança jurídica.

A Corte Maior, no julgamento do RE 565.160/SC [6], deixou claro que a contribuição previdenciária só pode recair sobre verbas de natureza salarial — ou seja, sobre aquilo que é pago com habitualidade, em virtude do contrato de trabalho. O bônus eventual, por sua própria essência, escapa totalmente desse conceito, pois sendo facultativo, esporádico e não obrigatório, forçar sua inclusão na base de cálculo é desfigurar a noção de remuneração.

Mais que um erro interpretativo

Portanto, a Cosit 55/2025 não representa apenas um erro interpretativo, ela escancara uma tentativa da administração pública de legislar por via administrativa, criando um dever tributário sem respaldo legal e em confronto com a Constituição, e isso, num Estado de direito, não pode ser admitido.

O contribuinte não está diante de uma mera divergência técnica, mas diante de um abuso que precisa ser combatido com firmeza. Em havendo hoje a permissão da Receita Federal tributar aquilo que a lei exclui, amanhã poderá decidir tributar o que sequer existe, o que é vedado, como bem afirma Paulsen [7], “As garantias da legalidade, …, (arts. 150, I, a, …)promovem a segurança jurídica enquanto certeza do direito no que diz respeito à majoração de tributos”, assim, quando se rompe o limite da legalidade, o preço é sempre alto: é a instabilidade, é o medo de empreender, é a corrosão da confiança entre quem produz e quem arrecada.

A solução da Cosit precisa ser revista, não só por violar a letra da lei, mas por contrariar os princípios que sustentam o sistema tributário brasileiro: a legalidade, a segurança jurídica, a capacidade contributiva e a vedação ao confisco — que não são obstáculos à arrecadação — são garantias mínimas de justiça fiscal. E quando o próprio Estado as ignora, é a própria legitimidade da tributação que fica em xeque.

Portanto, quando o Estado desrespeita os fundamentos da justiça fiscal, não é apenas o contribuinte que perde. É o próprio Estado de direito que adoece, abrindo espaço para uma insegurança crescente e, com ela, a descrença nas instituições.

 


[1] Publicado no DOU de 27.3.2025, seção 1, p. 32

[2] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. Malheiros Editores e Editora JusPodivm. São Paulo: 2021, p. 200, item 84.2

[3] HELENA COSTA, Regina. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional – 12. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 99/100

[4] BRITO MACHADO, Hugo de. Curso de Direito Tributário – 43.ed.,ver.,atual. e ampl. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2024, p. 99

[5] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário – 35.ed., ver., atual., e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024, p. 234/235

[6] Tema 20 da repercussão geral. Relator ministro Marco Aurélio, DJE nº 66, divulgado em 31/03/2017

[7] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo – 13. ed – São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 144



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