Proibição de entrada com alimentos em clubes


Opinião

É verdade que os clubes recreativos constituídos sob a forma de associação gozam da ampla liberdade associativa conferida pela Constituição (artigo 5º, XVII e XVIII), inclusive, em regra, os tribunais têm considerado que a relação entre associação e associados não é de consumo (inaplicabilidade do CDC), exceto quando a associação atua como fornecedora de bens ou serviços.

Entretanto, essa ampla liberdade associativa não pode ser interpretada como liberdade ilimitada. Nesse sentido, quando comentamos o artigo 5º, XVIII, da CF/88, segundo o qual “a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento”, afirmamos que “o poder público não pode interferir no funcionamento das entidades associativas, tendo elas plena autonomia para formular seus estatutos, desde que eles não façam previsões ilegais ou inconstitucionais[1].

Liberdade associativa e eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações entre associação e associados

A ampla liberdade associativa prevista na Constituição não exclui a aplicação (direta) dos direitos fundamentais às relações entre associação e associados, ou seja, as associações não podem com base na liberdade associativa excluir, negar, restringir, limitar ou impedir o exercício dos direitos fundamentais dos associados, até porque esses direitos são indisponíveis e irrenunciáveis.

Embora os direitos fundamentais, em sua formulação clássica, tenham sido concebidos como limites ao exercício dos poderes estatais, inserindo-se numa relação vertical entre Estado e particular desde a suas origens até meados do século 20, o Brasil não adotou a state action doctrine, que, em regra, nega a aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas sem previsão expressa em lei ou norma regulamentadora.

O direito brasileiro, nesse ponto, inspirou-se na doutrina e jurisprudência alemãs, que, desde caso Lüth, identificaram que o dever do Estado de proteção dos direitos fundamentais também compreendia uma posição ativa (de interferência) na defesa desses direitos em face de lesões ou ameaças de lesões que as pessoas particulares poderiam sofrer em suas relações com outras pessoas particulares, isto é, compreendia a aplicação dos direitos fundamentais nas relações horizontais entre pessoas privadas [2].

Do ponto de vista doutrinário, há três teorias sobre a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: a) teorias negativas; b) teoria da eficácia indireta e mediata; e c) teoria da eficácia direta e imediata.

As teorias negativas refutam a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, entendendo que esses direitos vinculam somente o Estado. No constitucionalismo estadunidense, as teorias negativas colaboraram para a fundação da doutrina do state action, que, em regra, não admite a aplicação dos direitos fundamentais entre particulares [3].

A teoria da eficácia indireta e mediata, desenvolvida originariamente por Günter Dürig e predominante no direito alemão até os dias atuais, defende que os direitos fundamentais se aplicam nas relações entre particulares, tendo eficácia indireta e mediata nessas relações, isto é, necessitando da atuação do legislador infraconstitucional para adequar as relações privadas aos direitos fundamentais [4].

A teoria da eficácia direta e imediata, em que pese inicialmente desenvolvida na Alemanha pelos trabalhos Nipperdey [5] e Leisner, não é predominante no direito constitucional alemão, sendo, contudo, acolhida pelo direito constitucional italiano, espanhol e português, dentre outros. Essa teoria defende que os direitos fundamentais se aplicam nas relações entre particulares, tendo eficácia direta e imediata nessas relações, isto é, independentemente da atuação prévia do legislador infraconstitucional.

No Brasil, tanto a doutrina majoritária [6] quanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [7] têm adotado a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, em face do mandamento previsto no § 1º, do art. 5º, da CF/88, que determina a aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais. Nesse sentido, já em 1996, o STF, no julgamento do RE 158.215, decidiu que a exclusão de associado de uma cooperativa decorrente de conduta contrária ao estatuto deve observar as garantias fundamentais ao devido processo legal e à ampla defesa, tendo, a partir daí, em outros julgamentos, proferido decisões no sentido de reconhecer eficácia direta e imediata aos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

O caso Praia Clube

No dia 26 de março de 2025, o famoso clube recreativo Praia Clube, publicou em suas redes sociais a seguinte mensagem:

“Para garantir a segurança e o bem-estar de todos, realizaremos vistoria em bolsas e mochilas na entrada e nas dependências do clube. Esta medida tem como objetivo reforçar nossas normas internas e evitar a entrada de armas, alimentos, bebidas, e outros itens proibidos, conforme o arts. 34 do Estatuto Social e arts. 45, parágrafo único, 16 e 82 do regimento interno do Praia Clube.

Contamos com a compreensão e colaboração de todos para manter nosso ambiente seguro e agradável.

A partir do dia 03 de Abril.”

A liberdade associativa e o direito fundamental à alimentação

Em que pese o direito à alimentação só tenha sido expressamente positivado no artigo 6º pela EC 64/2010, é evidente que ele sempre foi um direito fundamental reconhecido pela ordem constitucional brasileira, por força da cláusula de abertura aos direitos atípicos (artigo 5º, § 2º), como exigência do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Afinal, como pensar em uma vida digna se a pessoa sequer tem resguardada uma alimentação digna?

Aqui, insta reforçar, a proteção constitucional refere-se ao direito de se alimentar dignamente, o que exige proteção multifacetada que deve ser assegurada pelo poder público, especialmente, em casos de hipossuficiência, bem como ser observada por entidades privadas em relações horizontais, que não podem negar, restringir, limitar ou impedir o exercício do direito à alimentação, salvo razões excepcionais de ordem pública, como a entrada de alimentos em certas áreas hospitalares por razões de saúde e higiene, por exemplo.

Assim, é evidente que clubes associativos de recreação não podem vedar ao associado ingressar no clube com alimentos e bebidas, pior ainda, sob pena de sanções administrativas, inclusive, a pena de exclusão, como preveem as normas internas do Praia Clube. Isso equivale a negar o direito à alimentação de muitos de seus associados, especialmente aqueles de menor poder aquisitivo e aqueles que, por razões de saúde ou deficiência, possuem dieta e alimentação especial ou restrita.

Ademais, tais normas internas da associação são ofensivas à liberdade econômica, pois forçam os associados a consumirem bebidas e alimentos vendidos pelo clube e pelos bares e lanchonetes terceirizados que exploram essa atividade internamente, o que nos faz questionar se, excepcionalmente, não seria aplicável o CDC nesse caso, uma vez que a maioria dos estabelecimentos que vendem bebidas e alimentos dentro do clube são empresas privadas terceirizadas.

Os tribunais superiores, inclusive, possuem diversos precedentes reconhecendo que, em regra, a proibição de entrada com bebidas e alimentos próprios em entidades privadas fere a liberdade econômica e, portanto, são inconstitucionais, como o famoso julgado que vedou que cinemas proibissem a entrada de pessoas com bebidas e alimentos próprios.

De toda forma, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, em sua dimensão de vida digna, não pode a liberdade associativa afastar o direito fundamental à alimentação, razão pela qual resta claro que clubes associativos de recreação não podem proibir a entrada de seus associados com bebidas e alimentos próprios diante da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

A liberdade associativa e o direito fundamental de não sofrer discriminação: seria esse um caso de aporofobia e capacitismo institucional?

Discriminação é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais.

Aqui, faz-se necessário um questionamento reflexivo: negar o direito à alimentação aos associados, especialmente àqueles de menor poder aquisitivo e àqueles que por razões de saúde ou deficiência possuem dieta e alimentação especial ou restrita, não seria uma forma de discriminação institucional aporofóbica e capacitista?

A Constituição veda toda e qualquer forma de discriminação, inclusive contra pessoas com deficiência (capacitismo) e aquelas baseadas em fatores econômicos (aporofobia). Nada obstante, a vedação a entrada com alimentos em clubes associativos de recreação, em que pese negue o exercício pleno do direito fundamental à alimentação a todos os associados, nega de forma muito mais severa às pessoas com menos condições econômicas e às pessoas com deficiência, em especial, aos autistas.

Apenas exemplificando: as pessoas com transtorno do espectro autista apresentam diversas características e comorbidades, sendo comum entre elas: 1)  seletividade alimentar, possuindo uma alimentação restrita, só comendo certos alimentos, muitas vezes, preparados de uma forma específica; 2) hipersensibilidade corporal e de sentidos, desconforto com o toque, apego excessivo a objetos pessoais, padrão de organização que não pode ser rompido e TOD, assim, na prática, tocar autistas sem sua permissão ou iniciativa, bem como tocar seus objetos pessoais, incluindo bolsas e mochilas, pode gerar crises gravíssimas, incluindo, crises de ansiedade, depressão, ira, agressividade etc.

A liberdade associativa e o direito fundamental à inviolabilidade frente a revistas pessoais e de objetos pessoais realizadas por entidade privada

A revista pessoal, bem como de objetos particulares, como bolsas e mochilas, é algo excepcional, que encontra limites rígidos na jurisprudência dos tribunais mesmo quando realizadas pelo Estado e seus agentes no exercício do poder de polícia.

Em caso de realização dessas revistas por entidades privadas as limitações são maiores ainda, sob pena de constrangimento ilegal e dano moral por impedir abusivamente o exercício legítimo de direito, seja a liberdade de locomoção (com seus bens), seja o direito fundamental à alimentação, como no caso que analisamos.

A nosso ver, só se pode permitir revistas em bolsas e mochilas pessoais por entidades privadas nos casos expressamente previstos em lei. Nada obstante, se for o caso de verificação para ingresso em certo local ou evento privado por razões de segurança, essa verificação deve ser feita de forma geral (em todas as pessoas e não apenas em algumas selecionadas por amostragem) e, preferencialmente, por aparelhos de raio-x ou similares que possam identificar se há ou não algum objeto ilegal. Caso verificado algo que pareça ser ilícito, aí sim a entidade privada poderia pedir a pessoa que apresentasse o objeto e, em caso de negativa, proibi-la de entrar.

Diferentemente, parece-nos ilícito que uma entidade privada, como um clube associativo de recreação, promova a revista seletiva de bolsas e mochilas de seus associados, pior ainda, na entrada e, também, nas dependências do clube, ou seja, não se trata de medida de segurança que visa impedir que alguém entre com algo ilícito no clube, mas sim de uma medida que busca constranger qualquer associado que entre no clube com bebidas e alimentos próprios, podendo revistar seus pertences a qualquer momento durante sua estadia no clube.

Aqui fica mais um questionamento reflexivo: será que essa vistoria seletiva na entrada do clube e, especialmente, nas dependências do clube durante a estadia do associado, não gerará, na prática, um certo perfilamento racial (racial profiling) ou perfilamento étnico (ethnic profiling)?

Considerações finais

Há pouco tempo estávamos discutindo se poderíamos privatizar as praias no Brasil. Agora, teremos que discutir se as pessoas têm o direito de comer dentro de associações às quais elas voluntariamente decidiram um dia pertencer para terem um momento de lazer. Parece que o debate sobre o absurdo pretende dominar o debate jurídico tupiniquim diante de pretensões egoístas e abusivas de pessoas que parecem odiar a Constituição, a liberdade, a igualdade e a dignidade humana.

No aparente conflito entre a liberdade de associação, de um lado, e o direito fundamental à alimentação e a dignidade da pessoa humana, de outro, parece-nos evidente que as associações não podem proibir seus associados de entrarem em suas dependências com bebidas e alimentos próprios, obrigando-os a consumir apenas bebidas e alimentos comprados da associação ou de empresas terceirizadas que exploram atividade econômica dentro da entidade associativa.

Ademais, esse não é um conflito real, mas apenas aparente, pois é sólido que a liberdade associativa deve observar os direitos fundamentais dos associados, o que inclui o direito fundamental à alimentação, o direito de não ser discriminado e a liberdade econômica de escolher onde comprar suas bebidas e alimentos, todos direitos fundamentais que se aplicam nas relações entre associado e clube associativo de recreação (eficácia horizontal) de forma direta por força da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (artigo 5º, §1º, CF/88).

Por fim, parece-nos, prima facie, que revistas seletivas em associados na entrada e nas dependências do clube configuram constrangimento ilegal, abuso de poder e dano moral, além de constituírem ofensa direta a dignidade da pessoa humana e inviolabilidade da pessoa e de seus bens, uma vez que não há qualquer lei que permita tais “vistorias” por entidades associativas.

 


[1] DOS SANTOS, Eduardo. Manual de Direito Constitucional. 5ª ed. Salvador: Juspodivm, 2025, p. 572.

[2] CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2012.

[3] SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. São Paulo: Malheiros, 2005.

[4] DÜRIG, Günter. Direitos Fundamentais e jurisdição civil. In: HECK, Luís Afonso. Direitos Fundamentais e Direito Privado: Textos Clássicos. Porto Alegre: SAF, 2012.

[5] NIPPERDEY, Hans Carl. Direitos Fundamentais e Direito Privado. In: HECK, Luís Afonso. Direitos Fundamentais e Direito Privado: Textos Clássicos. Porto Alegre: SAF, 2012.

[6] Por todos: SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; e MARTINS, Fernando R. Princípio da Justiça Contratual. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

[7] Por todos: STF, RE 158.215/RS, rel. min. Marco Aurélio; STF, RE 161.243/DF, rel. min. Carlos Mario Velloso; STF, RE 201.819/RJ, rel. min. Gilmar Mendes; TST, RR 122600-60.2009.5.04.0005, redator min. José Roberto Freire Pimenta.



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