

Opinião
A recente decisão do Tribunal de Apelação de Barcelona, que absolveu o jogador Daniel Alves da acusação de agressão sexual após uma condenação inicial, provocou intenso debate público e jurídico, suscitando críticas de diversos setores e especialmente de movimentos feministas e de apoio às vítimas de violência de gênero que defendem o lema “yo sí te creo” (referindo-se à crença incondicional no relato da vítima).
O caso, marcado por intensa cobertura midiática e discussões sobre a credibilidade (ou melhor, confiabilidade) da palavra da vítima, oferece um terreno fértil para analisar a aplicação prática de conceitos teóricos sobre o raciocínio probatório.
Em meio à controvérsia, o professor Jordi Ferrer Beltran, diretor do mestrado em raciocínio probatório da Universidade de Girona e uma das maiores autoridades no tema atualmente, publicou um breve artigo de opinião a respeito da decisão absolutória, apresentando uma crítica positiva à racionalidade da decisão, destacando a sua correção.
Este artigo, porém, visa a ir além dessa análise inicial, explorando como a estrutura metodológica da decisão se alinha (ou tensiona) com a concepção racionalista da prova e a teoria sobre standards probatórios desenvolvida por Ferrer Beltran em sua obra. Em outros termos, a proposta deste texto é examinar criticamente a absolvição em apelação sob a perspectiva da obra do professor espanhol, evidenciando tanto os pontos de convergência (o que Ferrer disse ou diria a favor da decisão) quanto eventuais ressalvas teóricas (o que não disse, mas diria em crítica construtiva).
Metodologia da decisão absolutória: um foco na racionalidade
Para o nosso propósito de análise destacamos um trecho específico e representativo da decisão, em que o tribunal delineia explicitamente o método e os critérios adotados para valorar os elementos probatórios, estabelecendo uma estrutura lógica que orienta o processo decisório (tradução livre):
“6.10.1. Já afirmamos em outras ocasiões que o Tribunal deve avaliar, de acordo com critérios objetivos ou intersubjetivamente controláveis, tanto as provas apresentadas quanto o grau de apoio que prestam aos fatos alegados pelas partes. Ou seja, deve valorar todos os meios de prova produzidos, tanto os de acusação quanto os de defesa, e identificar as informações provenientes de cada meio de prova que considere provisoriamente relevantes e confiáveis, bem como as razões para isso (o que se conhece como valoração individual). Em seguida, deverá valorar conjuntamente essas informações probatórias, estabelecer quais relações existem entre elas e com os fatos objeto do julgamento, e determinar quais considera definitivamente relevantes e fiáveis (valoração conjunta). Por fim, decidirá se tais informações permitem obter uma certeza objetiva acerca dos fatos julgados, aplicando o standard probatório que impõe a presunção de inocência.” [1]
Nas linhas seguintes, o Tribunal vai além e especifica (a contrario sensu) o standard de prova adotado:
“Em particular, quanto à suficiência da prova de acusação, o Tribunal de apelação poderá examinar se a valoração da prova lesou o direito à presunção de inocência, o que poderá ocorrer nos seguintes casos:
b.1) Quando a hipótese acusatória não for capaz de explicar todos os elementos probatórios disponíveis que tenham sido considerados fiáveis, integrando-os de forma coerente;
b.2) Quando os elementos probatórios disponíveis e considerados fiáveis forem compatíveis com hipóteses alternativas mais favoráveis, que sejam prováveis conforme as máximas da experiência;
b.3) Quando os elementos probatórios disponíveis e tidos como fiáveis forem compatíveis com hipóteses alternativas plausíveis mais favoráveis, alegadas pela defesa e sobre as quais esta tenha apresentado algum princípio de prova. [2]“
Em suma, embora concisa, essa passagem estabelece “as regras do jogo” e explicita o esforço de fundamentação racional da decisão judicial (aplaudido por Ferrer), denotando o alinhamento do acórdão com a concepção racionalista da prova [3].
Aplicando essa lógica, o tribunal revisou minuciosamente as provas do caso Daniel Alves e a própria sentença de primeiro grau. Procedeu a uma análise crítica da fiabilidade de cada elemento de prova e da coerência do relato da vítima face à demais evidências (inclusive perícias e vídeos) para determinar se a acusação estava ou não suficientemente corroborada.
Spacca

Em síntese, sob a ótica da teoria de Ferrer Beltran a estrutura de motivação da decisão de segundo grau no caso Daniel Alves apresenta claras virtudes, alinhando-se perfeitamente a ela: “Así, una motivación completa deberá contener 1) la justificación de la valoración individual de la prueba, 2) la justificación de la valoración en conjunto de la prueba y 3) la justificación de si el grado de corro boración que las pruebas aportan a las hipótesis fácticas en conflicto es suficiente o no para satisfacer el estándar de prueba aplicable a esa decisión” [4].
Por outro lado, por mais que Beltran tenha saído em defesa da decisão, é possível extrair de sua obra doutrinária algumas críticas à forma como certos conceitos foram tratados no acórdão.
Nas entrelinhas: críticas potenciais à fundamentação (o que Ferrer não disse, mas diria)
Ferrer não disse abertamente em seu texto, mas diriam seus livros que a expressão “certeza objetiva” utilizada pelo tribunal catalão ao referir-se ao grau de corroboração que deve exigir o standard de prova para alcançar uma condenação, é uma posição cognoscitivista ingênua em relação à possibilidade de conhecimento dos fatos. O autor faz uma opção pelo objetivismo crítico e pelo cognoscitivismo moderado, e defende que o objetivo da prova é a apuração da verdade, mas reconhece as limitações epistêmicas inerentes ao raciocínio sobre os fatos. Jamais um conjunto de evidências permite certezas objetivas sobre os fatos [5], o que significa dizer que a decisão sobre os fatos provados no contexto do processo é sempre probabilística [6] (e esse é um dos pilares da concepção racionalista da prova).
Ele argumenta que, se o raciocínio probatório é probabilístico e não é possível alcançar certezas racionais absolutas sobre a verdade dos fatos, torna-se imprescindível determinar o grau de probabilidade suficiente para aceitar uma hipótese como provada, por meio, justamente, dos standards de prova [7]. A necessidade de standards de prova precisamente formulados surge da impossibilidade de alcançar essa certeza absoluta e da necessidade de um critério objetivo para determinar a suficiência probatória.
Em que pese tenha sido por ele elogiado o standard de prova adotado pelo acórdão, porque metodologicamente bem formulado [8], Ferrer Beltran considera infundada a vinculação conceitual entre a presunção de inocência e qualquer standard de prova específico, como pretende o tribunal catalão.
O direito à presunção de inocência pressupõe a vigência de um standard de prova, mas não implica qualquer standard específico. A presunção de inocência como regra de julgamento (o princípio in dubio pro reo) apenas estabelece que, havendo dúvida sobre a responsabilidade criminal, a decisão deve ser favorável ao acusado. No entanto, essa regra não define qual o nível de dúvida racional que leva à absolvição; essa é a função do standard de prova [9].
Em suma, a presunção de inocência é compatível com diferentes standards de prova, não necessariamente os mais elevados [10]. Segundo o autor, não é obrigatório que o standard penal seja sempre o mais elevado possível, contanto que nenhum acusado seja condenado com base em uma hipótese de culpa menos provável do que a hipótese de sua inocência [11].
Divulgação

Assim, a presunção de inocência exige que, na dúvida, se decida pela absolvição. No entanto, é o standard de prova que define o patamar de probabilidade da hipótese acusatória que deve ser alcançado para superar essa presunção. A presunção estabelece uma direção para a decisão em casos de incerteza, mas não determina o quão alto deve ser o grau de corroboração da hipótese acusatória para superar essa incerteza.
A definição desse “umbral” é uma decisão eminentemente política [12] (e não epistêmica), que envolve a distribuição do risco de erro entre as partes em um processo judicial e pondera os custos sociais envolvidos, e por isso é fundamentalmente uma tarefa para o legislador. [13]
Lições do Caso Daniel Alves e o que falta definir
A decisão absolutória proferida pelo Tribunal de Apelação de Barcelona no caso Daniel Alves representa, sob diversos aspectos, um modelo de fundamentação racional da prova digno de destaque e de reprodução. O acórdão evidencia um compromisso admirável com a racionalidade argumentativa, ao adotar uma estrutura metodológica clara: parte de uma valoração individual das provas, segue para uma análise conjunta e, finalmente, examina se o grau de corroboração da hipótese acusatória é suficiente para superar o standard probatório exigido. Trata-se de um esforço consciente para fundamentar a decisão com base em critérios objetivos e intersubjetivamente controláveis — pilares centrais da concepção racionalista da prova.
A motivação judicial, nesse caso, não se limita a invocações genéricas de convencimento pessoal, mas traduz uma tentativa legítima de aplicar padrões epistêmicos verificáveis, o que, sem dúvida, contribui para o controle e a legitimidade das decisões.
Nesse sentido, a decisão é exemplar e poderia servir como referência valiosa para os tribunais brasileiros, cuja tradição ainda convive, muitas vezes, com formas pouco transparentes de valoração probatória, baseadas na chamada íntima convicção e na ausência de standards probatórios definidos. O modelo catalão, tal como adotado neste acórdão, promove uma cultura de fundamentação mais racional e menos subjetiva — algo que se mostra urgente e necessário no processo penal brasileiro.
Não obstante, é preciso registrar uma ressalva teórica importante: ainda que o standard de prova adotado seja metodologicamente bem formulado, a sua vinculação direta ao princípio da presunção de inocência, como se dele decorresse automaticamente, não se sustenta sob o prisma da teoria desenvolvida por Ferrer Beltran.
Conforme analisado, a presunção de inocência não impõe nenhum standard específico de prova. A escolha do nível de exigência probatória — isto é, qual grau de probabilidade da hipótese acusatória deve ser alcançado para superar a dúvida — é uma decisão normativa e política, que cabe ao legislador. Trata-se de uma tarefa ainda pendente entre nós, cuja omissão perpetua a incerteza e abre espaço para o arbítrio, incompatível com um processo penal verdadeiramente racionalista.
[1] 6.10.1. Hemos dicho en otras ocasiones que el Tribunal de enjuiciamiento ha de evaluar, de acuerdo con criterios objetivos o intersubjetivamente compartibles, tanto las pruebas que se practiquen como el grado de apoyo prestan a los hechos afirmados por las partes. Esto es, ha de valorar todos los medios de prueba practicados, tanto los de cargo, como los de descargo, e identificar las informaciones provenientes de cada medio de FT67890prueba que considere provisionalmente relevantes y fiables y las razones para ello (lo que se conoce como valoración individual). Acto seguido, habrá de valorar conjuntamente dichas informaciones probatorias y establecer qué relaciones existen entre ellas y con los hechos objeto de juicio, y determinar cuáles estima Definitivamente relevantes y fiables (valoración conjunta). Por último, decidirá si tales informaciones permiten obtener una certeza objetiva acerca de los hechos enjuiciados aplicando el estándar probatorio que impone la presunción de inocencia.
[2] En particular, y en cuanto a la suficiencia de la prueba de cargo, el tribunal de apelación podrá examinar si la valoración probatoria resulta lesiva del derecho a la presunción de inocencia, lo que puede tener lugar en los siguientes casos: b.1) cuando la hipótesis acusatoria no sea capaz de explicar todas las informaciones probatorias disponibles que se hayan reputado fiables, integrándolas de forma coherente. b.2) cuando las informaciones probatorias disponibles estimadas fiables sean compatibles con hipótesis alternativas más favorables, probables conforme a máximas de la experiencia. b.3) o cuando las informaciones probatorias disponibles estimadas fiables sean compatibles con hipótesis alternativas plausibles más favorables, alegadas por la Defensa y sobre las que haya aportado algún principio de prueba.
[3] Para um debate mais aprofundado sobre a concepção racionalista da prova e o seu contraponto subjetivista ver: Accatino, Daniela. Teoría de la prueba: ¿somos todos “racionalistas” ahora? Revus, v. 5, n. 39.
[4] FERRER BELTRAN, Jordi. La motivación sobre los hechos. In: FERRER BELTRAN, Jordi (Coord.). Manual de razonamiento probatorio. Ciudad de México: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2022. p. 468.
[5] FERRER-BELTRAN, Jordi. Valoração Racional da Prova. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: JusPodivm, 2023. p. 133-135.
[6] O raciocínio probatório é, pois, um raciocínio necessariamente probabilístico. Dizer que um enunciado fático está provado é afirmar que é provavelmente verdadeiro (em um nível que deverá ser determinado), dadas as provas disponíveis (FERRER-BELTRAN, Jordi. Prova sem convicção: Standards de prova e devido processo. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 26).
[7] Id., p. 26;
[8] Esse standard é construção pretoriana, foi formulado nas sentenças do Tribunal Supremo 136/2022, de 16 de fevereiro, e 23/2023, de 20 de janeiro, com inegável influência da doutrina de Ferrer Beltran.
[9] FERRER BELTRAN, Jordi. Uma concepção minimalista e garantista de presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 173, jan./abr. 2018.
[10] FERRER BELTRAN, op. cit., p. 262;
[11] Id., p. 262 e 263;
[12] Id., p. 425;
[13] Id., p. 257;