O que serão dos precedentes do Carf após a reforma tributária?


Direto do Carf

Nos últimos textos publicados na revista eletrônica Consultor Jurídico (aqui; aqui e aqui) temos nos dedicado a apresentar sugestões para tentar resolver possíveis problemas que certamente serão enfrentados no contencioso tributário (administrativo e judicial) com a reforma tributária sobre o consumo. As análises até então desenvolvidas gravitaram em torno de um debate acerca (1) do papel do Carf após a reforma, (2) da ausência de uma integração entre os tribunais administrativos que julgarão a CBS e o IBS, além (3) dos problemas de competência jurisdicional para demandas judiciais e (4) legitimidade processual passiva nas ações antiexacionais.

Como já abordado em alguns desses textos, até o presente momento competirá ao Carf a tarefa de processar e julgar as demandas administrativas que versarem a respeito da CBS e do Imposto Seletivo, Tribunal esse que, ao longo da sua história, formou uma massa de precedentes a respeito do PIS, da Cofins e do IPI, tributos que serão suplantados pelas novas exações incidentes sobre o consumo.

Diante desse quadro, a pergunta que se pretende aqui responder é a seguinte: o que serão desses precedentes do Carf após a reforma tributária sobre o consumo? De forma mais específica, os precedentes até então formados acerca do PIS, da Cofins e do IPI poderão ser convocados para resolver questões afetas à CBS e o IS?

Pretendemos responder tais questões, de caráter genérico, problematizando-as a partir de eventuais discussões que possam surgir a respeito da não cumulatividade na CBS.

Um passo atrás: o que é e como funciona um precedente?

O tema dos precedentes é riquíssimo, fruto de uma mundividência jurídica (Common Law) construída ao longo de séculos de história do Direito. Por óbvio, delimitar o que é um precedente e como tal instituto funciona é assunto para obras inteiras [1][2]. Logo, a pretensão de tratar esses pontos nesse pequeno texto tem o objetivo exclusivo de apenas delimitar premissas relevantes para as conclusões que alcançaremos adiante.

Mesmo que de forma muito simplista, é importante desde já registrar que precedente é uma decisão cuja ratio é ulteriormente convocada como fundamento para a resolução de casos análogos, ou seja, um precedente não nasce previamente com esse status, mas ganha tal qualificação quando convocado para resolver outro caso similar [3]. Em princípio, um precedente é só uma decisão que se presta a resolver um litígio específico.

Nesse sentido, uma decisão poderá ser convocada como um precedente sempre que houver uma similitude fático-jurídica entre o caso-precedente e o caso a ser decidido e, ainda, desde que no tempo presente – de resolução do novo caso – permaneça a relevância da ‘ratio decidendi’ veiculada no precedente, sob pena da sua superação (‘overruling’) a ser expressamente justificada pela nova decisão judicial [4]. Percebe-se, pois, que o método para a convocação de um precedente pressupõe uma similitude analógico-problemático (por aproximação) entre os casos comparados e não uma identidade lógico-subsuntiva típica das leis.

Spacca

Daí se afirmar, na linha da chain novel dworkiniana [5], que um sistema de stare decisis é reflexo de uma continuidade histórica, de modo a preservar a integridade (artigo 926 do CPC) do direito construído jurisdicionalmente [6].

Logo, é perfeitamente possível convocar um precedente que trate da não-cumulatividade do ICMS para a resolução de uma questão análoga envolvendo um caso de IPI ou, ainda, que o precedente que trata da sobreposição do ISS em caso de conflito de incidência com o ICMS também seja convocado quando houver sobreposição entre esse imposto municipal e o IPI [7]. E isso porque, como dito anteriormente, para fins de convocação da ratio de um precedente não há necessidade de identidade de casos, mas sim aproximação entre eles. Tal afirmação já é um sinal acerca da resposta a ser ofertada ao questionamento do título do presente texto.

A reforma tributária sobre o consumo e os precedentes do Carf até então existentes: uma análise a partir da norma de não cumulatividade

É inegável que a reforma tributária sobre o consumo traz importantes novidades no ordenamento jurídico tributário, sendo as principais delas a (1) tributação unificada dessa parcela de riqueza em torno de tributos gêmeos (IVA dual – CBS e IBS), (2) sujeitos aos valores simplicidade e neutralidade [8], (3) o que se materializa por meio de bases amplas de incidência e de não cumulatividade [9].

Ao nos aprofundarmos na questão da não cumulatividade e partindo de experiências pretéritas no país, em especial em relação ao ICMS e ao IPI e todas as discussões daí decorrentes, resta claro que o constituinte derivado, por meio da EC nº 132/2023 e pautado pelo valor simplicidade, deliberadamente adotou um modelo de créditos amplos para o IBS e para a CBS, i.e., independentemente dos bens e/ou serviços adquiridos estarem diretamente relacionados à atividade econômica do contribuinte, afastando, de pronto, a exigência de contato físico, consumo ou incorporação de tais dispêndios na operação empresarial. Nesse aspecto, trata-se de um modelo de não cumulatividade mais próximo da realidade já vivenciada com o PIS e com a Cofins.

Tal fato já demonstra um sinal claro do caminho que o constituinte derivado quis percorrer, bem como o que ele quis evitar, o que não torna a não cumulatividade do IBS e da CBS imune de eventuais discussões, em especial em razão da restrição criada no caso de aquisições de bens/serviços para uso e consumo pessoal. Ainda que em menor escala do que encontramos hoje quando tratamos de não cumulatividade tributária, certamente esse será um ponto de possíveis litígios entre contribuintes e fisco, o que nos permite problematizar a questão abordada no presente texto: diante do contexto aqui apresentado, os precedentes do Carf acerca da não cumulatividade do PIS e da Cofins poderão ser convocados para resolver questões afetas a não cumulatividade do IBS e da CBS?

Dando um passo atrás, não é demais lembrar que quando implementada a não cumulatividade do PIS e da Cofins no ordenamento jurídico nacional, logo surgiram duas correntes extremadas para delimitar a extensão da neutralidade então criada: parte dos hermeneutas defendiam uma perspectiva restritiva para essa norma de não cumulatividade, de modo a aproximá-la com a realidade existente no ICMS e no IPI, na linha das Instruções Normativas 247/2002 e 404/2004; outra banda, por sua vez, defendia uma perspectiva ampliativa, que assemelhava o conceito de insumos no PIS e na Cofins com o de despesas dedutíveis do IRPJ.

Um longo caminho de debates foi percorrido até que sobreviesse a pacificação do tema por meio da decisão proferida no Recurso Especial 1.221.170, julgado pelo STJ sob a sistemática da repetitividade, bem como no Recurso Extraordinário 841.979, afetado no STF pela repercussão geral (Tema 756). E essa sedimentação judicial só foi possível depois de um importante amadurecimento da discussão por meio da jurisprudência do Carf, consolidada após mais de uma década de debates [10].

Dentre os contributos conferidos pela jurisprudência do Carf para o tema, destaca-se a posição que, pautada na doutrina do professor Marco Aurélio Greco [11], sagrou-se vencedora no sentido de que o conceito de insumo para fins de PIS e Cofins é um conceito relacional e que deve considerar o contexto no qual está inserido, seja sob a perspectiva microscópica, da atividade empresarial desenvolvida pelo contribuinte, seja sob uma perspectiva macroscópica, considerando o âmbito normativo da parcela de riqueza que tais exações pretende alcançar e os valores jurídicos que conformam tal incidência, o que, no caso da reforma tributária sobre o consumo, pressupõe – repita-se – uma exigência pautada em bases amplas, bem como a potencialização dos valores simplicidade e, em especial, neutralidade fiscal.

Olhando estaticamente para o retrovisor quanto à não cumulatividade do PIS e da Cofins, tais afirmações feitas em dias atuais parecem óbvias. O que não pode se ignorar, todavia, é que até se chegar a esse ponto de maturação, a jurisprudência do Carf oscilou bastante [12] e que as conquistas hermenêuticas alcançadas para o tema não podem ser perdidas, sob pena de um indevido retrocesso nesse debate, o que certamente macularia o já referido valor integridade das decisões de caráter jurisdicional.

Conclusões

Apesar das particularidades [13], é inegável que a jurisprudência do Carf para a questão da não cumulatividade do PIS e da Cofins não pode ser ignorada quando começarem a surgir problemas relacionados à não cumulatividade do IBS e da CBS, pois como já mencionado no presente texto, em um modelo metodologicamente adequado de stare decisis, a convocação das rationes de um precedente pressupõe pontos de semelhança com o caso em comparação (sub judice) e não uma identidade matemática.

Essa metódica também vale para outros temas que possam surgir com a efetiva implementação da reforma tributária sobre o consumo, de modo que os 100 anos de história de jurisprudência do CARF não sejam vistos como algo obsoleto, mas ao contrário, como um importante contributo para o direito judicado criado por esse Tribunal Administrativo.

A título de arremate, um precedente pode sim ser afastado em concreto [14], o que todavia vai depender de um pesado ônus argumentativo para justificar a existência de uma distinção (distinguishing) ou da sua superação (overruling). E tudo isso porque uma alteração legislativa, a superação de um código por outro ou até mesmo o advento de uma nova ordem constitucional, não é capaz de, por si só, implicar a “revogação” dos precedentes anteriormente formados pelos tribunais, pois como já exaustivamente exposto aqui precedente não é lei.

 


[1] Por tordos: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[2] Fazendo uma análise crítica do abrasileirado modelo de precedentes sob a particular perspectiva do processo tributário: RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributário. São Paulo: Noeses, 2024.

[3] Daí a acertada crítica de Lênio Streck ao afimar que erro fundamental daquilo que venho denominando de “precedentes à brasileira” se materializa no desejo exa(ge)rado dos tribunais superiores em produzir um estoque de normas jurídicas para o futuro sob a forma de precedentes (teses, temas etc.). Trata-se de uma contradição hermenêutica: não há respostas antes que as perguntas sejam formuladas. Não é papel dos tribunais resolver, abstratamente, causas jurídicas de maneira prospectiva. Precedentes são decisões pretéritas de casos concretos, cujas ‘rationes’ são identificadas como norma pelos demais tribunais e sempre aplicadas contingencialmente. (Por que teses dos tribunais superiores não são precedentes – grifos do Autor).

[4] RIBEIRO, Diego Diniz. A rescisão da coisa julgada com base em precedentes do STF e do STJ: uma análise crítica no processo judicial tributário. São Paulo: Noeses, 2024. p. 184-185.

[5] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 221 e ss.

[6] O respeito aos precedentes envolve o ato de segui-los, distingui-los ou revogá-los, jamais ignorá-los (BRAGA, Paulo Sarno; DIDIER JÚNIOR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. v. 2, 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 480.).

[7] A partir da jurisprudência do CARF, já analisamos criticamente essa específica questão aqui.

[8] Tratando do assunto: MOREIRA, André Mendes, Neutralidade, valor acrescido e tributação, Belo Horizonte: Fórum, 2019.; BOMFIM, Diego. Extrafiscalidade: identificação, fundamentação, limitação e controle. São Paulo: Noeses, 2015,

[9] O art. 156-A, §1º, inciso VIII, da Constituição Federal ressalva apenas duas situações em relação à não cumulatividade: as aquisições de bens/serviços de uso ou consumo pessoal, especificadas em lei complementar, e as hipóteses de vedação de crédito previstas na própria Carta Republicana.

[10] Aprofundando nesse percurso histórico da jurisprudência do CARF para essa discussão, destacamos: GAMEIRO, Mariel Orsi. KRALJEVIC, Maria Carolina Maldonado. RIBEIRO, Diego Diniz. Créditos de PIS e COFINS sobre gastos com logística reversa: o que esperar do CARF? In: Coletânea 100 anos do CARF. OLIVEIRA, Ana Claudia Borges de. PURETZ, Tadeu (coord.). São Paulo: NSM Editora, 2024. p. 609-622.

[11] GRECO, Marco Aurélio. Conceito de insumo à luz da legislação de PIS/COFINS. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, ano 6, n. 34, p. 9­30, jul./ago. 2008. Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2025.

[12] No intervalo de 2004 a 2010, por exemplo, a jurisprudência majoritária do Carf estava alinhada com o entendimento restritivo veiculado pela RFB, conforme se observa, v.g., nos acórdãos Carf n.s 201-79.759 e 201.81.568.

[13] A título de exemplo, a não cumulatividade no PIS/Cofins se apresenta sob um modelo base contra base, enquanto no IBS/CBS se afigura sob a perspectiva imposto contra imposto.

[14] Inclusive quando a base legislativa que lhe originou é substituída por outra.



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