Interrupção da prescrição intercorrente em processo administrativo


Opinião

A prescrição é o instrumento pelo qual o tempo influencia as relações jurídicas, promovendo estabilidade social, previsibilidade e confiança no sistema de justiça ao limitar o exercício de direitos. No Brasil, distingue-se em duas formas: a aquisitiva, que consolida direitos pelo tempo, como no usucapião; e a extintiva, foco deste estudo, que implica a perda da pretensão pela inércia do titular dentro do prazo legal — sendo esta a modalidade mais comum [1].

A prescrição intercorrente ocorre quando o titular perde o direito de exigir uma pretensão por inércia durante o andamento do processo, como forma de equilibrar o exercício de direitos com a inatividade processual, com fundamento no direito à razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição).

Com base nesse princípio, a Lei nº 9.873/1999, derivada da MP nº 1.859-17, fixou os prazos prescricionais da ação punitiva da administração pública federal e, em seu artigo 1º, §1º, prevê a incidência da prescrição intercorrente nos procedimentos administrativos paralisados por mais de três anos, pendentes de julgamento ou despacho, determinando seu arquivamento de ofício ou a requerimento da parte, sem prejuízo da apuração de eventual responsabilidade funcional.

A prescrição, por sua natureza de ordem pública, visa a assegurar a razoável duração dos processos e evitar a eternização de procedimentos, funcionando como instrumento de contenção da inércia administrativa e de promoção da eficiência estatal. Independe de provocação das partes e deve ser observada em qualquer fase do procedimento, revelando sua dupla função: proteger interesses privados e resguardar a coletividade contra a perpetuação de conflitos, em nome da pacificação social e da segurança jurídica.

Conforme leciona Marcelo Madureira Prates, se o próprio Estado estabelece limites temporais ao seu poder de punir — inclusive no âmbito administrativo — por meio de lei que concretiza o princípio da segurança jurídica, é dever das autoridades judiciais e administrativas reconhecer a perda da pretensão punitiva pelo simples decurso do tempo, ainda que não haja requerimento da parte interessada, pois o interesse público na estabilização das relações jurídicas deve prevalecer [2].

Controvérsia em ato inequívoco de interrupção do prazo prescricional

A Lei nº 9.873/99, ao disciplinar a prescrição intercorrente, prevê hipóteses de interrupção do prazo prescricional. Neste artigo, destaca-se o inciso IV do artigo 2º, que trata da interrupção por “ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória no âmbito interno da administração pública federal”. A norma busca assegurar que iniciativas reais de composição impulsionem o procedimento e afastem a inércia administrativa.

Apesar da redação clara, a interpretação e aplicação prática do dispositivo tem gerado controvérsias. É comum a administração empregar despachos e atos meramente formais — sem conteúdo decisório ou relevância para a apuração — com o aparente objetivo de evitar o reconhecimento da prescrição intercorrente.

É comum a utilização de despachos genéricos, como “prosseguimento dos trâmites cabíveis” ou “ciência”, sem conteúdo concreto, para simular movimentação processual após longos períodos de inatividade. Muitas vezes, esses atos são replicados em série, revelando uma gestão meramente formal que desvirtua a norma. Embora o termo “inequívoco” exija atos efetivos voltados à apuração, parte minoritária da jurisprudência e da prática administrativa adota interpretação ampla, admitindo qualquer ato como suficiente para interromper a prescrição. Nesse sentido, o TRF-4, ao julgar apelações em 2017 envolvendo a ANS, entendeu que a prescrição intercorrente apenas se configura diante de paralisação total do processo, reconhecendo como válidos, para fins interruptivos, atos formais ou de mero expediente.

“Atos administrativos de regular tramitação na instância administrativa não configuram meros atos de expediente, destituídos de conteúdo valorativo ou sem efeito para a solução do litígio na esfera administrativa. (…)

Consigno que, quanto ao tema, alinho-me ao entendimento de que é necessária a efetiva paralisação do processo por mais de 03 (três) anos, para que reste configurada a inércia da Administração Pública.” (…)

Portanto, conclui-se que, após a notificação inicial da empresa autora, não houve paralisação do processo por mais de três anos consecutivos, e todos os atos praticados foram necessários e indispensáveis à apuração e aplicação da penalidade, sem os quais haveria ofensa ao direito do contraditório e da ampla defesa.”

[AC 5000754-92.2016.4.04.7000 PR 5000754-92.2016.4.04.7000. 3ª Turma. TRF-4. Des. Relatora Vânia Hack de Almeida. J. 28/11/2017]

Paralisação do processo

A posição minoritária na jurisprudência — refletida acima — entende que a prescrição intercorrente apenas se configuraria diante de efetiva paralisação do processo por mais de três anos, admitindo, para fins de interrupção, atos de expediente ou burocráticos, desde que inseridos na sequência procedimental.

Spacca

Defende-se que tais atos demonstram uma atuação positiva da administração, sendo suficientes para afastar a inércia e garantir o contraditório e a ampla defesa. Esse entendimento também é adotado por diversas instâncias de agências reguladoras, que consideram a mera movimentação processual — mesmo sem conteúdo decisório — suficiente para interromper o prazo prescricional e, com isso, negar recursos administrativos.

Esse entendimento, contudo, não encontra respaldo na norma legal. A Lei nº 9.873/99 não exige apenas a ausência de paralisação formal, mas sim a prática de ato inequívoco voltado à apuração do fato. Atos administrativos sem relevância para a elucidação dos fatos não satisfazem esse requisito.

Esse tem sido o entendimento mais recente e correto dos tribunais, que rejeitam a interrupção da prescrição por atos meramente formais, como despachos internos sem conteúdo substancial. Nesse sentido, destacam-se julgados mais recentes do próprio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que consolidam essa orientação:

“A contagem do prazo de prescrição intercorrente será interrompida pela ocorrência de uma das hipóteses do art. 2º, ou seja, atos que evidenciem esforço na apuração da infração e aplicação da sanção. No entanto, atos e despachos de mero encaminhamento do processo administrativo não têm o condão de obstar/interromper o curso do prazo prescricional. 4. Verificado que o processo administrativo em questão ficou paralisado por prazo superior a três anos, reputa-se consumada a prescrição intercorrente. 5. Apelação não provida.”

[TRF-4 – AC: 50194962520174047100 RS 5019496-25.2017.4.04.7100, Relator: ROGER RAUPP RIOS, Data de Julgamento: 14/04/2021, PRIMEIRA TURMA]

“Consoante farta jurisprudência deste Tribunal, atos e despachos de mero encaminhamento do processo administrativo não têm o condão de obstar/interromper o curso do prazo prescricional. 3.Verificado que o processo administrativo em questão ficou paralisado por prazo superior a três anos, reputa-se consumada a prescrição intercorrente no caso concreto.”

[TRF-4 – AC: 50023684020184047105 RS 5002368-40.2018.4.04.7105, Relator: RÔMULO PIZZOLATTI, Data de Julgamento: 13/04/2021, SEGUNDA TURMA]

Entendimento em tribunais federais

E esse entendimento não se revela isolado no âmbito do TRF-4. Sobre o mesmo tema, o atual ministro do Supremo Tribunal Federal Kassio Nunes Marques, enquanto atuava como desembargador no TRF-1ª Região, manifestou-se expressamente no sentido de que o simples encaminhamento interno de processos administrativos não constitui hipótese válida para a interrupção da prescrição intercorrente:

“IMPORTANTE FRISAR QUE O SIMPLES ENCAMINHAMENTO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO PARA REALIZAÇÃO DA INSTRUÇÃO, POR CONSTITUIR MERO ATO DE EXPEDIENTE QUE IMPÕE A LÓGICA PROCEDIMENTAL, NÃO TEM, EM VERDADE, O CONDÃO DE INTERROMPER O PRAZO PRESCRICIONAL, VEZ QUE NÃO SE ENCAIXA ÀS HIPÓTESES PREVISTAS NO ART. 2º DA LEI 9.873/99. 3. Extrapolado o período de 3 (três) anos previsto no § 1º, do art. 1º, da Lei 9.873/1999 entre a data da lavratura do auto de infração (29.08.2000) e o despacho de natureza saneadora que determinou remessa de sua cópia à autuada com o fim de que ela, querendo, apresentasse alegações finais (22.06.2004), forçoso reconhecer a ocorrência da prescrição intercorrente da pretensão punitiva da Administração. 4. Recurso de apelação conhecido e provido para, reconhecida a prescrição intercorrente, declarar a nulidade do procedimento administrativo, bem como das penalidades dele decorrentes. Invertidos os ônus da sucumbência.”

[TRF1 Numeração Única: 0004806-82.2007.4.01.3811 APELAÇÃO CÍVEL N. 2007.38.11.004824-7/MG Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES]

E tal posicionamento, como não poderia deixar de ser, também reflete o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Ao julgar o REsp nº 1.461.362/PR, o ministro Herman Benjamin convalidou o entendimento de que apenas atos de cunho decisório podem interromper a prescrição, rejeitando que esta ocorresse por um mero informe técnico que havia sido juntado no processo administrativo em comento:

“Apenas o ato efetivamente necessário à apuração do fato — seja a realização de determinada diligência, seja a oportunização para a parte trazer suas manifestações e alegações de defesa (art. 2º, II), ou a própria decisão administrativa condenatória, que solucione o processo (art. 2º, III) — é que tem o condão de interromper a prescrição. Entendimento contrário implicaria, na prática, tornar inócua a previsão da prescrição intercorrente veiculada pela Lei 9.873/1999. Com efeito, ao se autorizar que qualquer ato administrativo interrompa a prescrição, mesmo que o referido ato em nada contribua para o efetivo caminhar do processo, retira-se a garantia dada ao administrado por tal instituto, qual seja, salvaguardar que o processo administrativo não perdure por tempo indefinido, a fim de conferir a adequada segurança jurídica às partes envolvidas.

Assim, nos termos do inciso II do art. 2º da referida lei, apenas o ato inequívoco que importe apuração do fato tem o condão de interromper o curso da prescrição intercorrente.”

[REsp 1.461.362/PR, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 16/02/2017, DJe de 07/03/2017]

E esse é, afinal, o posicionamento que predomina nos tribunais federais do país:

“No entanto, à luz da jurisprudência pacífica da Corte Superior de Justiça, o despacho de mero encaminhamento interno do feito administrativo, ocorrido no presente caso, não obsta o curso do prazo previsto no art. 1º, §1º, da Lei nº 9.873/99, visto que, além de não possuir cunho decisório ou caracterizar efetivo impulsionamento, não se amolda a qualquer das hipóteses previstas nos incisos do art. 2º da Lei nº 9.873/99.”

(TRF2 , Apelação Cível, 0106498-94.2013.4.02.5005, Rel. THEOPHILO ANTONIO MIGUEL FILHO , 7a. TURMA ESPECIALIZADA , Rel. do Acordao – THEOPHILO ANTONIO MIGUEL FILHO, julgado em 09/08/2023, DJe 15/08/2023 15:24:03) 

“Interrompe-se a prescrição da ação punitiva por qualquer ato inequívoco que importe apuração do fato. A movimentação processual constituída de meros despachos de encaminhamentos não significa ato inequívoco apto a interromper a prescrição. Inércia da Administração configurada. Precedentes.”

[TRF-4 – AC: 50018081120174047210 SC 5001808-11.2017.4.04.7210, Relator: VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, Data de Julgamento: 26/08/2020, QUARTA TURMA]

“O despacho de mero encaminhamento interno do feito administrativo, verificado no caso em tela, não tem o condão de obstar o curso do prazo previsto no art. 1º, §1º, da Lei nº 9.873/99, porquanto, além de não possuir cunho decisório ou caracterizar efetivo impulsionamento, não se amolda a qualquer das hipóteses previstas nos incisos do art. 2º da Lei nº 9.873/99.  Neste contexto, estão ausentes os vícios de compreensão apontados pelo embargante.”

(TRF2 , Apelação Cível, 5023457-49.2019.4.02.5001, Rel. MARCELLA ARAUJO DA NOVA BRANDAO , 7a. TURMA ESPECIALIZADA , Rel. do Acordao – MARCELLA ARAUJO DA NOVA BRANDAO, julgado em 22/11/2023, DJe 03/12/2023 21:00:22)

“Os autos permaneceram paralisados por mais de três anos, sem nenhuma conduta que interrompesse o prazo prescricional, o que implica a prescrição do procedimento administrativo, uma vez que a simples movimentação do processo dentro dos setores da repartição não implica em sua interrupção. Precedentes. III Recurso de apelação ao qual se nega provimento.”

[TRF-1 – AC: 10000548220184013902, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO DE ASSIS BETTI, Data de Julgamento: 10/02/2020, SEXTA TURMA, Data de Publicação: 12/02/2020]

“Os atos que interrompem a prescrição intercorrente no processo administrativo de apuração de infração são as decisões, os atos de instrução do processo e os atos de comunicação ao infrator. Tais atos evidenciam o esforço da Administração Pública na apuração da infração e na eventual aplicação da sanção. Os despachos de mero encaminhamento ou de certificação do estado do processo administrativo não obstam o curso do prazo prescricional. 3. Apelo improvido.”

[TRF-4 – AC: 50106352520184047000 PR 5010635-25.2018.4.04.7000, Relator: ALEXANDRE GONÇALVES LIPPEL, Data de Julgamento: 17/03/2021, PRIMEIRA TURMA]

Violação do princípio da eficiência

Conclui-se que a prática de órgãos e agências reguladoras de utilizar atos meramente formais para interromper a prescrição intercorrente não encontra respaldo na lei e viola os princípios da eficiência e da segurança jurídica. Diante da frequente resistência em se reconhecer a prescrição no âmbito administrativo, muitas vezes resta ao administrado recorrer ao Judiciário para ver reconhecida a extinção da pretensão punitiva e garantir a razoável duração do processo.

 


[1] Pereira. Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro. Forense, 2004. p. 679-680.

[2] SILVA, Romeu Faria Thomé da. Manual de Direito Ambiental. 8. Ed. Salvador: JusPodivm, 2018. P. 625/626.

[3] PRATES, Marcelo Madureira. Prescrição administrativa na Lei 9.873, de 23.11.99: entre simplicidade normativa e complexidade interpretativa. Disponível aqui



Postagens recentes
Converse com um advogado