É urgente que o Direito Administrativo adote um viés antirracista


Opinião

No dia 16 de maio de 2025, nas dependências do edifício onde está instalada uma das unidades da Advocacia Geral da União, em Brasília, uma mulher negra foi impedida de entrar no recinto pelo agente de recepção, sendo-lhe cobrado as explicações de onde ia e o porquê da sua tentativa de adentrar no prédio, sendo que sua entrada só foi permitida após muitas investigações, perguntas e da absoluta certeza de que aquela mulher negra realmente tinha algo a fazer naquela instituição.

Ministra Vera Lúcia, do TSE

O fato descrito só adquiriu importância e destaque na mídia nacional porque a mulher negra barrada em questão é ministra do Tribunal Superior Eleitoral, a doutora Vera Lúcia Santana Araújo, a qual iria proferir uma palestra justamente nas dependências daquele edifício.

Esse fato demonstra, mais uma vez, que pessoas negras, sobretudo de pele preta, passam por constrangimentos e humilhações de forma rotineira no Brasil porque, estruturalmente, a concepção naturalizada é de que os não brancos só adentram a esses recintos na condição de prestadores de serviço ou, melhor definindo para alguns, na situação de serviçais.

Como se sabe, a verdadeira origem do conflito racial são as estruturas sociais, as quais precisam ser alteradas para que o negro não seja mais submetido ao dilema de embranquecer ou desaparecer. É preciso reafirmar que as proposições e estruturas brancas são absorvidas pelos negros, os quais só se dão conta da irrealidade dessas estruturas, para ele negro, quando em conflito ou em contraposição ao interesse branco. É quando ele se dá conta de que existe um mito a ser enfrentado. Como afirma Fanon, a realidade se revela extremamente resistente, especialmente quando a existência do negro é posta à prova entre os brancos: é quando, ao primeiro olhar branco, o negro “sente o peso da melanina[1], sente nos ombros ser a representação do fóssil e do monstro [2].

A violência contra o negro é corpórea, ou como melhor explicita Fanon, ele é linchado na sua personalidade concreta, é dizer, ele é perigoso como ser atual aos olhos do branco [3], não obstante a exigência de um revestimento quotidiano decorrente de relações econômicas mais elaboradas e menos grosseiras, as quais, concretas no dia a dia, mantêm a terrível alienação do negro frente à exploração que lhe é imposta. É que o empreendimento colonial desumaniza até o homem mais civilizado, como nos lembra Aimé Césaire, porque é fundada no desprezo ao dominado; o colonizador se acostuma em ver e a tratar o outro (o dominado) como animal e, nesse processo, objetivamente, o opressor tende a transformar-se em animal para retirar o peso da sua consciência [4]. É aqui que se normaliza a barbárie contra o negro.

É por isso que a reação precisa ser na mesma moeda, na ação concreta, naquela que também atinge a corporeidade do negro, mas, agora, de forma positiva.

Spacca

O caso da ministra Vera Lúcia revela o racismo estrutural que assola historicamente a sociedade e toda a estrutura do Estado brasileiro. Porém, é preciso que esse fato conduza à análise sobre como a mera ascensão de pessoas negras a cargos de alto prestígio na estrutura estatal se mostra, isolada, incapaz de resolver o problema do negro na estrutura de classes brasileira. Cotas em vestibulares e concursos públicos, somados às nomeações de pessoas negras aos mais altos cargos políticos são medidas fundamentais, mas se constituem em apenas parte da ação contra o racismo institucional e estrutural.

Responsabilidade estrutural e o individualismo no Direito Administrativo

Mas, qual a relação desse fato nefasto, e o que ele se revela em termos raciais e estruturais, com o Direito Administrativo?

Para além do tema da reserva de vagas em concursos públicos, o Direito Administrativo, enquanto área do conhecimento vinculada ao desenvolvimento da própria administração pública brasileira, possui uma responsabilidade estrutural na reprodução do racismo.

O Direito Administrativo brasileiro precisa enfrentar seus pilares e certezas históricas, estruturais e, sobretudo, epistemológicas. Denúncias fortes foram feitas sobre como o individualismo, pautado no liberalismo econômico gestado no século 19, ainda constitui a principal marca da doutrina do Direito Administrativo [5], revelando-se contemporaneamente pelas “inovações” neoliberais inspiradas no mercado. Intelectuais administrativistas progressistas que, de alguma forma, criticam essas soluções neoliberais, não ultrapassam a barreira epistemológica liberal, especialmente ao defenderem que a raiz dos problemas da administração pública brasileira está no patrimonialismo e no nepotismo, embasados na clássica sociologia brasileira do século 20.

É preciso, no entanto, pensar em uma virada epistemológica, no sentido de reconhecer que a administração pública brasileira, e, consequentemente, o próprio Direito Administrativo são marcados por uma herança escravista e influenciados por uma filosofia jus-política eurocêntrica branca. Significa denunciar que a administração pública brasileira foi desenvolvida e edificada, desde a sua original concepção, para que o tripé colonial, em especial a mão de obra escravizada, se mantivesse em pé, principalmente quando adquiriu outra roupagem, em razão da sui generis revolução burguesa ocorrida no Brasil no século 19 [6].

A essência colonial escravocrata sempre esteve (e está) presente nas entranhas da burocracia brasileira, antes voltada diretamente para a relação senhor/escravizado, contemporaneamente destinada a impor ao negro/trabalhador a condição de hiperproletarização, quando não de marginalização absoluta ou de morte cruel. Nesse cenário, o Direito Administrativo brasileiro, ao não reconhecer a raiz escravista da administração pública brasileira, pauta-se em uma epistemologia que contribui para a reprodução do racismo e da desigualdade social.

A necessidade de uma pauta antirracista

O caso envolvendo a ministra Vera Lucia, assim como tantos outros semelhantes que ocorrem rotineiramente pelo país, precisa servir de impulso para que medidas concretas contra o racismo sejam adotadas em todas as instâncias de poder, para além da mera ascensão pontual de gestores públicos e ministros negras e negros a altos cargos na estrutura do Estado brasileiro.

Logo, o Direito Administrativo precisa se ocupar com o recorte de raça em relação aos seus temas mais relevantes. Significa afirmar que as análises e proposições sobre serviços públicos, poder de polícia administrativa, organização administrativa, contratos administrativos, intervenção no domínio econômico e na propriedade privada, dentre tantos outros assuntos, precisam ser realizados a partir de uma clara abordagem racial, permitindo a construção de políticas públicas concretas que permitam aos negros em geral a condição de igualdade material. Em conjunto a isso, expandir a política de cotas raciais e a exigência de nomeação de pessoas negras para cargos políticos de relevância são medidas que precisam ser defendidas de forma mais incisiva pelo Direito Administrativo em geral.

É urgente que o Direito Administrativo adote um viés antirracista, mas que seja concreto e não meramente retórico ou tangencial. Reconhecer as contradições históricas e institucionais que reproduzem o racismo na administração pública brasileira é o primeiro passo; o segundo, canalizar esforços para que a questão racial esteja na pauta administrativista, não apenas como elemento isolado, mas, essencialmente, permeando e influenciando temas estruturais e clássicos do Direito Administrativo.

 


[1] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: UDUFBA, 2008, p. 133.

[2] MBEMBE, Achile. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2018, p. 42.

[3] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: UDUFBA, 2008, p. 142.

[4] CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020, p. 23.

[5] GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

[6] FERNANDES, Florestan. Revolução burguesa no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.


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