Opinião
O Supremo Tribunal Federal reafirmou os requisitos para se configurar uma inviabilidade de competição que permita a contratação direta de serviços advocatícios mediante inexigibilidade de licitação (Lei de Licitações e Contratos Administrativos, artigo 74).
Ao apreciar o Recurso Extraordinário 656.558, validou o entendimento de que o dolo representa um elemento essencial para caracterizar como ato de improbidade administrativa a contratação irregular de serviços jurídicos, conforme termos da Carta Magna, artigo 37, § 4º, e Lei de Improbidade Administrativa.
Por outra ótica, posicionou-se constituir a regra geral estruturar a advocacia pública, provida de advogados por concurso, para prestar serviços jurídicos ordinários de consultoria jurídica e atuação judicial ou extrajudicial (Constituição da República, artigos 5º, 37, caput e inciso II, 131 e 132).
Acrescentou que se deve proceder a uma licitação enquanto não se instituiu uma procuradoria pública ou nos casos em que seja justificável não estruturar tal órgão em face, por exemplo, da pouca necessidade e limitações de natureza financeira como pode ocorrer em municípios de pequeno porte (CR, artigos 5º, 37, caput e inciso II, 131 e 132).
Indicou ainda que a inviabilidade de competição que permite ao poder público contratar de forma direta serviços jurídicos se caracteriza quando não se pode atender aos critérios anteriores citados. Além disso, deve-se comprovar de modo prévio (em processo formal de inexigibilidade):
– a notória especialização do contratado, formação avançada no campo de atuação e experiência diferenciada nos serviços;
– a natureza singular do objeto, que se diferencia dos demais serviços por não ser de índole comum e ter caráter temporário; e
– a razoabilidade dos preços contratados, sejam compatíveis com a complexidade dos serviços e com os preços praticados no mercado.
Veja-se o citado precedente do STF com repercussão geral (vincula demais tribunais e a administração pública, CR, artigo 102, § 3º):
“Tese:
a) O dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da Constituição Federal), …
b) São constitucionais os arts. 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993, desde que interpretados no sentido de que a contratação direta de serviços advocatícios pela Administração Pública, por inexigibilidade de licitação, além dos critérios já previstos expressamente (necessidade de procedimento administrativo formal; notória especialização profissional; natureza singular do serviço), deve observar:
(i) inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e
(ii) cobrança de preço compatível com a responsabilidade profissional exigida pelo caso, observado, também, o valor médio cobrado pelo escritório de advocacia contratado em situações similares anteriores.” (Tema 309. Relator: ministro Dias Toffoli. Leading case: RE 656.558. DJe 11/2/2025)
Há de se firmar contratos com respeito aos valores previstos na ordem legal de modo a observar o equilíbrio, razoabilidade e a economicidade da contratação.
Os serviços que a administração pública almeja contratar nesse caso devem ter especificações que o tornem diferenciado e a contratação por um período limitado. Não pode, com efeito, ser um serviço ordinário, inerente à rotina de atividades da administração pública, o que ensejaria a atuação dos integrantes da procuradoria pública ou, em caso de não haver, licitar os serviços.
Spacca

Apenas ter quadro de pessoal especializado e experiente em certo serviço não se trata de critério constitucional para caracterizar a inviabilidade de competição, vez que fere, entre outros princípios, a impessoalidade, competitividade, eficiência, isonomia, por não se demonstrar a peculiaridade de um serviço que afasta, no caso concreto, a possibilidade da procuradoria pública prestar ou se instaurar um certame.
Conforme destaquei em artigo anterior, houve uma afronta à Constituição da República com os privilégios inconstitucionais a advogados e contadores advindos da recente Lei Federal nº 14.039/2020, que alterou o Estatuto da da Advocacia e da Ordem do Advogados do Brasil (Lei 8.906/1994) e o Decreto-Lei 9.295/1946, que regula a atividade do Contador e foi recepcionado como Lei ordinária pela Carta Política de 1988. Definiu todos serviços jurídicos e contábeis como singulares quando prestados por profissionais com notória especialização. Veja-se trecho de tal opinativo:
“.. A contratação direta de qualquer profissional corresponde, desse modo, a uma exceção quando não adequado manter um quadro pessoal próprio, inviável licitar e para atender demandas transitórias. Possível apenas quando se caracterizar que o objeto é singular e eventual, o que torna inviável a competição e possibilita a excepcional contratação de profissionais com notória especialização que tenham capacidade de prestar o objeto singular que o Poder Público necessita contratar.”
O multicitado entendimento do STF exposto no Tema 309 ratifica que tais dispositivos legais não afastam os requisitos previstos na Carta Magna para se realizar uma excepcional contratação direta por inexigibilidade de licitação.
Jurisprudência do TCU e STJ
Ainda a citar que em igual sentido a jurisprudência do Tribunal de Contas da União, que exerce o controle externo sobre a administração pública federal:
“Nas contratações diretas por inexigibilidade de licitação, o conceito de singularidade não pode ser confundido com a ideia de unicidade, exclusividade, ineditismo ou raridade. O fato de o objeto poder ser executado por outros profissionais ou empresas não impede a contratação direta amparada no art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993. A inexigibilidade, amparada nesse dispositivo legal, decorre da impossibilidade de se fixar critérios objetivos de julgamento.” (Acórdão 1.397/2022 – Plenário, relator: ministro Benjamin Zymler. DO 15/11/22
“Na contratação de serviços advocatícios por inexigibilidade de licitação (art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993), é necessário que a Administração demonstre, previamente, que os honorários ajustados encontram-se dentro de uma faixa de razoabilidade, segundo os padrões do mercado, observadas as características próprias do serviço singular e o grau de especialização profissional. Essa justificativa do preço (art. 26, parágrafo único, inciso III, da mesma lei) deve ser lastreada em elementos que confiram objetividade à análise, a exemplo da comparação da proposta apresentada pelo profissional que se pretende contratar com os preços praticados em outros contratos cujo objeto seja análogo.” (Acórdão 2621/2022 – Plenário, relator: min. Weder de Oliveira. DO 30/11/2022)
Vale mencionar ainda a título exemplificativo precedente de entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça, também considerando a recente interpretação do STF no Tema 309:
“1. Ação de improbidade administrativa proposta contra ex-prefeito e sociedade de advogados em razão de contratação direta de serviços advocatícios sem licitação para propositura de ação direta de inconstitucionalidade de dispositivo da Lei Orgânica Municipal.
2. Superveniência do julgamento do Tema 309 do Supremo Tribunal Federal (STF). Constitucionalidade dos arts. 13, V, e 25, II, da Lei 8.666/1993 a depender de interpretação segundo a qual a contratação direta de serviços advocatícios pela administração pública por inexigibilidade de licitação, além dos critérios já previstos expressamente (necessidade de procedimento administrativo formal; notória especialização profissional; natureza singular do serviço), deve observar: (i) a inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e (ii) a cobrança de preço compatível com o praticado pelo mercado.
3. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo condenou os réus com base no art. 11, caput e inciso I, da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), reconhecendo a má-fé, a ausência de singularidade dos serviços e a possibilidade de sua prestação pelos procuradores jurídicos do município. …
4. A contratação direta de serviços advocatícios sem licitação, em contexto de ausência de singularidade e possibilidade de sua prestação pelos procuradores municipais, reconhecido, ainda, o propósito de direcionamento da contratação, beneficiando o escritório demandado, configura ato de improbidade administrativa nos termos do art. 11, inciso V, da Lei de Improbidade Administrativa. Incidência do princípio da continuidade típico-normativa.
… 6. Recurso a que se dá parcial provimento para, conhecendo do agravo, conhecer em parte do recurso especial e a ele dar parcial provimento para manter a condenação por improbidade administrativa, mas afastar as penas de perda da função pública e suspensão dos direitos políticos.” (AgInt no AREsp – Agravo de Instrumento em Recurso Especial – 1.446.563/SP. Relator ministro Paulo Sérgio Domingues. DJEN 21/3/2025)
Conclusão
Dessa forma, importante o Tribunal Constitucional do país reafirmar o papel do Estado para cumprir atribuições essenciais em conformidade com disposições que a Carta Magna preceitua no que se refere a advocacia pública, licitação e a exceção de contatar de forma direta serviços jurídicos.
Cada ente da Federação deve instituir procuradoria pública para ter à disposição serviços de consultoria jurídica e atuação judicial ou extrajudicial. Apenas se justifica não estruturar tal órgão se uma análise devidamente fundamentada revelar como inadequada a estruturação. Nesses casos, precisa-se licitar para contratar serviços que demandam rotineiramente.
A contratação direta, por inexigibilidade, representa uma exceção quando não há advocacia pública nem se pode licitar, bem assim caracterizada de modo prévio a inviabilidade de competição decorrente da notória especialização do contratado e da natureza singular do objeto e desde que seja razoável os preços dos serviços contratados.
Vale destacar, ao final, trechos do voto do relator do RE 656.558:
“Embora seja constitucional a regra inserta no inciso II do art. 25 da Lei nº 8.666/93, que estabelece a possibilidade de inexigibilidade de licitação para a contratação dos serviços técnicos enumerados no art. 13 desse diploma – de natureza singular e prestados por profissionais ou empresas de notória especialização -, a contratação somente será possível se preenchidos os requisitos da lei e desde que não haja impedimento específico para a contratação desses serviços. Explico.
No âmbito municipal, em respeito ao objeto do presente recurso extraordinário, alguns aspectos devem ser considerados, não obstante a tese proposta, correspondente à compatibilidade do art. 25, II, da Lei n. 8.666/93, devido ao seu caráter geral, seja aplicável a todos os entes federativos.
Pois bem, a propósito dos serviços advocatícios, não se vislumbra, na Constituição Federal, primo ictu oculi, a obrigatoriedade de que, em todo município, seja criada uma procuradoria municipal para a representação judicial, extrajudicial, ou para a atividade de consultoria jurídica, embora tal desiderato fosse o ideal.
Da mesma forma, não vejo impedimento para que determinada municipalidade, vislumbrando a existência de procuradores municipais aptos para o pleno exercício da representação do município, de seus órgãos ou dos entes da administração direta, ou até mesmo indireta, e para o cumprimento, com eficiência, das atividades de consultoria, possa editar norma a impedir a contratação de advogados privados para o exercício dessas atividades.
Por outro lado, ausente impedimento específico, a simples existência de procuradores municipais concursados não me parece impedimento, por si só, para a contratação de advogados qualificados sob o manto da inexigibilidade de licitação, quando houver real necessidade e preenchidos os requisitos sobre as quais já me referi.
A singularidade da situação pode exigir da municipalidade a contratação de determinado profissional. Isso porque, realizando-se uma interpretação sistemática do regime jurídico, podemos concluir que existem duas condições cumulativas para se aferir a legalidade de uma contratação de serviços advocatícios – para fins de representação processual ou de consultoria – sem prévia licitação, quais sejam: a) a necessidade e a natureza do serviço, sua singularidade ou complexidade, a evidenciar que esses não podem ser normalmente executados pelos profissionais do próprio quadro e, b) o caráter não continuado do serviço específico e singular.
… No âmbito da União, Estados e Distrito Federal, conquanto não tenha havido, no caso concreto, o devido aprofundamento das discussões, devem-se observar os mesmos critérios, ora fixados sob a sistemática da repercussão geral.”