ESG e inclusão valem desempate em disputa


Opinião

Não é novidade que a agenda ESG (environmental, social and governance) tem sido determinante nas práticas adotadas pelo setor privado ao longo dos últimos anos. Recente estudo promovido pela Beon ESG e Aberje (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial) indica que, entre médias e grandes corporações do Brasil, 51% possuem uma estratégia de sustentabilidade oficial.

Seguindo essa tendência, o poder público também tem integrado aspectos ESG às suas contratações, como prevê a Lei nº 14.133/2021, que rege as licitações e os contratos administrativos no Brasil.

No que se refere ao meio ambiente, o “desenvolvimento nacional sustentável” é destacado no texto legal como princípio orientador e objetivo dos processos licitatórios, beneficiando a “prática de mitigação”. Em igualdade de condições entre licitantes, se não houver desempate, haverá preferência pela empresa que contribuir com maior redução de emissões e remoções de gases de efeito estufa.

Em termos de governança, a Lei de Licitações também permite utilizar programas de integridade como benefício em certames públicos: nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande porte; para desempate entre propostas; e para reabilitação de licitante ou contratado (artigo 25, § 4º; artigo 60, caput, inciso IV; e artigo 163, parágrafo único, da Lei nº 14.133/21).

Programas de integridade

Essa política de compliance em licitações foi regulada recentemente pelo Decreto 12.304/2024, que definiu como programa de integridade um sistema interno de mecanismos e procedimentos que visam prevenir, detectar e corrigir desvios, fraudes, irregularidades e atos lesivos contra a administração pública. Isso pode ser promovido por meio de auditoria, incentivo à denúncia, aplicação de códigos de ética e outras políticas de integridade. O parâmetro de integridade do decreto é abrangente, incluindo mecanismos anticorrupção, de proteção de direitos humanos e a responsabilidade socioambiental, por exemplo.

A Controladoria-Geral da União (CGU) é protagonista na avaliação dos programas de integridade. Ela tem atuação preventiva — por meio de orientação, supervisão e avaliação — e repressiva — mediante processo de responsabilização (artigo 9, incisos I e II). Além disso, define os métodos e critérios mínimos para “considerar o programa de integridade como implantado, desenvolvido ou aperfeiçoado”.

Spacca

Com a norma, alguns órgãos relevantes já passaram a aplicar critérios de ESG nos seus editais — como a Anatel, que já manifestou seu compromisso com a agenda de compliance.

Equidade de gênero

No aspecto social, merece destaque na Lei de Licitações outro critério de desempate: o “desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho” (artigo 60, inciso III). Esse aspecto recebeu contornos claros após sua regulamentação em 2023, com a publicação do decreto nº 11.430/2023, que cria parâmetros de segurança jurídica na aplicação da regra.

Para usufruir do critério de desempate, é necessário que a empresa destine 8% ou mais das vagas a mulheres vítimas de violência doméstica nos contratos de prestação de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão de obra. Essa exigência aplica-se a contratos com, no mínimo, 25 colaboradores, mantendo-se a proporção durante toda a vigência contratual. O decreto explicita que o público-alvo abrange mulheres trans, travestis e “outras possibilidades do gênero feminino”, alinhando-se ao entendimento consolidado de aplicabilidade da Lei Maria da Penha, e prioriza a contratação de mulheres pretas e pardas.

O decreto também cuida do acesso da empresa às mulheres elegíveis ao perfil da vaga, atribuindo ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) e ao Ministério das Mulheres (MM) firmar acordos de cooperação técnica com órgãos capilarizados responsáveis por políticas de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica, permitindo a identificação e o encaminhamento das mulheres para as vagas disponíveis.

O artigo 187 da Lei de Licitações faculta aos demais entes federativos a aplicação dos regulamentos editados pela União para execução da lei, fazendo com que a efetivação deste decreto dependa da cooperação voluntária de cada unidade da federação. Os Estados do Rio Grande do Norte, Maranhão e o Distrito Federal já consolidaram acordo de cooperação com o MGI.

Desempate em licitações

Ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho também servem de critério de desempate. O decreto define um rol de “ações de equidade”, incluindo: a ascensão profissional igualitária entre gêneros; a garantia de paridade salarial; a prevenção e enfrentamento do assédio moral e sexual; e programas de equidade de gênero e raça, por exemplo. A comprovação e aferição dessas ações ficou pendente de disposição específica, cuja responsabilidade foi atribuída ao MGI.

Essas disposições da Lei de Licitações e do decreto nº 11.430/2023 representam uma verdadeira ação afirmativa das mulheres no âmbito do poder público. Além disso, o decreto 12.304/2024 também possui potencial de impacto significativo no fomento a práticas mais transparentes e íntegras. Ambos exemplificam como o Estado pode utilizar seus certames licitatórios como incentivo para que o setor privado adote medidas benéficas ao coletivo — seja em aspectos ambientais, sociais ou de governança.

A Lei de Licitação e seus decretos reguladores utilizam a lógica do mercado para promover oportunidades que seriam distantes de outro modo. Sua política reconhece dificuldades oriundas das distinções entre homens e mulheres, ou mesmo entre mulheres de variadas raças, identidades de gênero e/ou circunstâncias sociais, e transforma essas diferenças em novas possibilidades, mobilizando o setor privado e viabilizando mecanismos internos de transparência, gestão de recursos, combate à corrupção e promoção de compliance humanitário. A adesão de mais empresas quelas práticas, para se tornarem mais competitivas em editais variados, dão esperança para uma mudança corporativa.



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