Via crucis para limitação Constitucional ao poder punitivo


Opinião

Na atual quadra da história, o Supremo Tribunal Federal enfrenta uma série de desafios e tensões, como instituição em si, desde o 8 de janeiro de 2023, ocasião em que sofreu “teste de resistência institucional” quando, junto com o prédio do Palácio do Planalto e o Congresso, foi invadido e depredado, sintomas de instabilidade democrática cujas causas são diversas e, por estarem bem esmiuçadas em estudos de Ciência Política, História, Filosofia etc. não serão tratadas aqui [1].

Spacca

A segunda tensão sofrida pela Corte Suprema está relacionada a importantes temas em julgamento, dentre eles, o julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 7.236, ajuizada pela Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), na qual se questiona alterações normativas promovidas pela Lei 14.230/2021 na Lei 8.429/1992, Lei de Improbidade Administrativa (LIA), que dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa [2].

Delimitado o panorama atual, traço um breve ponto sobre as instâncias punitivas, assunto de suma importância para o desenvolvimento deste artigo. Em nosso sistema jurídico, é possível que uma mesma conduta seja um ilícito civil, criminal e administrativo. A questão-problema, então, paira justamente na fragmentação das instâncias punitivas que, sob a perspectiva da independência das instâncias permitem decisões contraditórias para o mesmo fato, ou pior, a tentativa acusatória de se fazer “emplacar”, ações criminais e de improbidade com mesmo teor fático-probatório. Aí reside justamente o problema: mesma identidade fática, ainda que se esteja diante da absolvição na instância penal, por exemplo, por estar provado que o réu não concorreu para a infração penal (artigo 386, IV do Código de Processo Penal).

Outro ponto, é claro que o princípio da presunção de inocência é ou não aplicável às referidas esferas punitivas, mas sim em estabelecer especificamente seu alcance. Isto é, se é possível o entendimento diferente em um juízo penal e administrativo sancionador.

A ADI discute diversos dispositivos da LIA, entretanto, em minha opinião, o ponto nuclear de toda a discussão da referida ADI reside no §4º do artigo 21 da LIA, que trata, com sua nova roupagem de uma ilegitimidade da independência formal das instâncias, principalmente quando se está diante da mesma situação fático-probatória, a inadmitir que o autor da ação de improbidade reproduza os mesmos fatos e a mesma narrativa já rejeitada e fracassada no âmbito criminal, requerendo, ao final, a condenação do agente por improbidade administrativa

Em 2022 o relator, ministro Alexandre de Moraes, deferiu a medida cautelar para suspender a eficácia dos artigos incluídos ou alterados pela Lei 14.230/2021, principalmente a suspensão de eficácia da nova redação do 21, §4º, cujo teor é o seguinte: § 4º A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). Dito de outro modo, com a nova redação do §4º do artigo 21 (suspenso) a absolvição na esfera criminal, com por qualquer um dos fundamentos previstos no artigo 386 do Código de Processo Penal repercute na esfera da improbidade administrativa, impedindo sua propositura ou desconstituindo-a, inclusive, caso já proferida.

Spacca

O ministro Alexandre, amparado ainda na perspectiva de persecução tríplice, isto é, na clássica tese da independência formal das instâncias, segundo a qual cada uma delas possui autonomia investigativa e decisória, mesmo que diante de identidade fática, entendeu por inconstitucional o atual §4º do artigo 21 da LIA. Em seu voto, manifestou pelo impedimento de tramitação de ação de improbidade administrativa apenas para os seguintes casos: absolvição criminal, em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada quando tratar-se das hipóteses dos artigos 65 (sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito); 386, I (estar provada a inexistência do fato); e 386, IV (estar provado que o réu não concorreu para a infração penal), todos do Código de Processo Penal.

Decano diverge

Na sequência da retomada do julgamento da ação pelo plenário do STF, após voto-vista, o ministro Gilmar Mendes, em 24/4/2025 discorreu em seu voto algumas divergências cruciais do entendimento do ministro relator, dentre elas, o item 7 do voto, tocante a temática da vinculação da improbidade administrativa com a instância penal e forma de controle de constitucionalidade proposto, bem mais brando. Apontou, justamente, a possibilidade de comunicação das decisões penais e administrativas, eis que os atos de improbidade administrativa são de inequívoco caráter sancionador, portanto, com profunda ligação com o Direito Penal, votando, neste ponto, apenas e tão somente para reconhecer a inconstitucionalidade de aplicação do §4º do artigo 21 da LIA, no tocante a hipótese absolutória contida no inciso III do artigo 386 do Código de Processo Penal (“não constituir o fato infração penal”), por corretamente entender que existem condutas atípicas em âmbito penal, mas que constituem ato ilícito de improbidade administrativa.

Isto é, diferentemente do controle de constitucionalidade que visa a declaração de inconstitucionalidade da norma proposto pelo ministro Alexandre de Moraes, a interpretação conforme à Constituição, proposta pelo ministro Gilmar Mendes objetiva declarar válido o dispositivo legal, porém indicando qual a interpretação deve ser adotada por ser compatível com a Constituição.

Indo além na análise do voto, uma das críticas feitas pelo ministro Gilmar sobre a temática da independência absoluta entre as instancias, foi a relação de proximidade existente entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, cujos princípios do Direito Penal se estenderiam ao Direito Administrativo Sancionador pois este pertenceria ao primeiro no sentido lato (subsistema da ordem jurídico penal). Significa dizer, nesse ponto, que o Direito Administrativo Sancionador está submetido aos mesmos princípios regentes da presunção de inocência, da legalidade e do ne bis in idem [3], típicos do Direito Penal Democrático.

Por fim, destacou o ministro que é adequada a opção legislativa da redação do §4º do artigo 21 da LIA, consubstanciada em um regime de vinculação da decisão administrativa com a seara penal. Isto é, caso a pretensão penal tenha repelido a essência da pretensão acusatória, a absolvição deve repercutir nas ações de improbidade, por exemplo, diante da ausência de justa causa para a ação penal, salvo quando a absolvição decorrer da fundamentação do inciso III do artigo 386 do CPP.

Equívoco metodológico

Relembro que o próprio STF, a título de exemplo, extinguiu, pela via do Habeas Corpus (HC 58.319/SP), a Ação Penal 2022926-82.2016.8.26.0000 contra determinado acusado por restar demonstrada a ausência de justa causa para a ação penal deflagrada e, posteriormente, em sede de reclamação constitucional (Reclamação 41.557/STF)  a corte admitiu os argumentos trazidos pelo requerente e reconheceu o trancamento da ação da ação civil pública de improbidade administrativa em razão da identidade entre sujeito, conjunto fático-probatório e sanções de natureza punitiva (direito penal e direito administrativo sancionador).

Admitir, por outro lado, a perpetuação de um cenário em que a absolvição criminal não surta efeito algum em relação à responsabilização por improbidade administrativa, porquanto se tratariam de esferas distintas de responsabilização, revela, com todo o respeito àqueles que pensam em contrário, equívoco metodológico, representando em uma indevida promoção de tergiversação e incoerência do Sistema Jurídico que, pelo contrário, deve ser estruturado e dotado de coerente racionalidade interna cujo controle de convencionalidade (Convenção Americana de Direitos Humanos e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) é estritamente necessário à integridade do Sistema de Justiça.

Neste particular, o prosseguimento de ação de improbidade administrativa na hipótese de absolvição pelos mesmos fatos em ação criminal, no que convencionou-se chamar de responsabilização em espelho (ou ações espelhadas), representa uma incoerência normativa, principalmente quando fundamentos relevantes para a absolvição não possam ser ignorados pelas demais esferas punitivas no caso concreto [4]. Não há justificativa principiológica como a proibição da proteção suficiente ou o combate à corrupção que sustente a produção de juízos contraditórios sobre um mesmo substrato empírico ou a transformação do Sistema Jurídico em uma plataforma para duplicação ilegítima de sanções em nome da separação de esferas e da tutela de bens jurídicos aparentemente distintos [5].

Resulta por fim, ainda que seja dada interpretação conforme à constituição para excluir do artigo 21, §4º da LIA a absolvição amparada no artigo 386, III do CPP, conforme propõe o ministro Gilmar Mendes, tal entendimento, se prevalente ao final da via crucis que é este julgamento da ADI 7.236 representará verdadeiro prestígio à interdependência entre as instâncias punitivas, perspectiva garantista necessária, limitadora do poder punitivo sancionador, representada nos avanços legislativos (com a própria reformulação da LIA pela Lei 14.230/2021), jurisprudenciais e doutrinários mais recentes e que devem predominar diante da perspectiva que podemos chamar de clássica, que é a independência entre as instancias punitivas que sob o argumento do combate a corrupção, ignora o macrossistema normativo coerente de interação entre as esferas penal, administrativa e civil como reafirmação do princípio da segurança jurídica enquanto vetor estruturante do Estado de Direito.

Nesse particular, a superação do “velho” paradigma da independência das instâncias punitivas para um entendimento de comunicação entre as esferas (interdependência) está a cargo do Supremo Tribunal Federal, cujo cambio para um entendimento mais coerente e respeitável ao devido processo legal depende do resultado do julgamento da ADI 7.236.

 


[1] Dentre os vários artigos sobre o tema ver o que escrevemos aqui mesmo na ConJur:  OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma.

[2] Pelo fato de a ADI 7.236  se tratar de uma ação de controle concentrado de constitucionalidade, há legitimidade ativa da Conamp que ingressou com o processo requerendo a declaração da inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos da Lei 8.429/1992, alterados e/ou incluídos pela Lei 14.230/2021: art. 1º, §§ 1º, 2º e 3º e art. 10; art. 1º, § 8º; art.12, § 1º; art. 12, § 10; art. 17-B, § 3º; art. 21, § 4º; art. 23, caput e § 4º, incisos II a V e § 5º; art. 23-C, caput; art. 11, caput, incisos I e II; art. 12, incisos I, II e III, e §§ 4º, 9º e 10, e parágrafo único do art. 18-A; art. 17, §§ 10-C, 10-D e inciso I do § 10-F.

[3] Fato muito habitual quando nos deparamos com áreas dupla e multiplamente reguladas pelo Estado como a área econômica e financeira onde há previsão de sanção penal para as mesmas condutas vedadas e sancionadas por outras esferas punitivas.

[4] Nesse sentido de responsabilização por espelhos, ver o que eu e Fernando Faria escrevemos aqui:

[5] Idem.


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