

Opinião
A ascensão da personagem virtual Marisa Maiô nas redes sociais brasileiras nos últimos dias deflagrou um debate urgente sobre autoria, inteligência artificial e os contornos da propriedade intelectual no mundo digital. Criada por meio de ferramentas avançadas de inteligência artificial, como o Gemini e o Veo do Google, e alimentada com comandos artísticos pelo criador Raony Phillips, a personagem alcançou milhões de visualizações e chegou até mesmo a protagonizar aparições em grandes mídias públicas de televisão aberta, as quais renderam críticas do público, pelo aparente desrespeito a “obra intelectual” de Raony.
Reprodução

Diante de sua repercussão, impõe-se uma reflexão essencial: a quem pertence Marisa Maiô? Quem detém os direitos sobre essa figura gerada por inteligência artificial? A tecnologia? A plataforma? O prompter? Ou ninguém? O presente artigo propõe-se a discutir os limites jurídicos e éticos da criação por IA, especialmente quanto à proteção autoral e à remuneração de quem atua como agente criativo ao elaborar os prompts que alimentam essas ferramentas.
Construção da personagem e papel do prompter
Marisa Maiô não foi esculpida por pincéis físicos nem por atores em carne e osso. Sua existência é fruto de um processo técnico-artístico no qual Raony Phillips utilizou ferramentas de IA generativa para criar imagem, voz, movimentos e interações fictícias em um ambiente simulado de auditório televisivo. No entanto, a alma do conteúdo, no caso o humor ácido, as frases provocativas, a estética kitsch da televisão brasileira foi resultado de uma curadoria humana.
Neste contexto, o papel do prompter, ou seja, da pessoa que idealiza e insere os comandos que orientam a IA, deixa de ser meramente técnico para assumir conotação criativa. Trata-se de alguém que concebe, dirige e orquestra o resultado desejado. A pergunta que emerge é: essa atividade pode ser juridicamente qualificada como criação autoral?
Direito de autor e inteligência artificial: zona cinzenta
A legislação brasileira de direitos autorais, regulada pela Lei nº 9.610/1998 [1], parte da premissa de que a autoria é um atributo da pessoa natural. O artigo 11 dispõe:
“Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.”
A IA, enquanto entidade não humana, não possui personalidade jurídica e, portanto, não pode ser titular de direitos autorais. A questão, no entanto, torna-se mais complexa quando se trata de obras produzidas por IA, mas idealizadas por “pessoas físicas”, como no caso de Marisa Maiô.
Spacca

Segundo posicionamentos recentes do Escritório de Direitos Autorais dos EUA (Usco) [2], obras geradas exclusivamente por IA não são protegíveis, salvo se houver envolvimento humano substancial no processo criativo. Assim, há um precedente internacional que reforça a tese de que a atividade do prompter pode, em determinados casos, configurar autoria desde que demonstre originalidade, intervenção criativa e intencionalidade.
Stephen Thaler submeteu um pedido de registro de uma obra visual intitulada “A Recent Entrance to Paradise”, afirmando que foi gerada por um sistema de IA chamado Creativity Machine, sem qualquer intervenção humana. Ele solicitava que os direitos autorais fossem registrados em nome do próprio sistema de IA ou em seu nome como proprietário da máquina e responsável pelo “prompt”. A juíza Beryl A. Howell [3] decidiu que:
“Direitos autorais existem para proteger obras de autoria humana. […] Em nenhuma circunstância, desde os primórdios do copyright, se reconheceu a proteção a obras criadas por não-humanos.”
Isso reafirma a posição do Usco [4], que já havia recusado o registro anteriormente. A corte sustentou que a autoria humana é um requisito fundamental para a proteção autoral sob a lei americana. A consequência direta dessa decisão é de que se uma obra for criada inteiramente por IA, sem intervenção humana significativa, ela não pode ser protegida por copyright nos EUA e nos demais países que usem direito comparado.
Remuneração (ou ausência dela) de quem cria prompts
Apesar do protagonismo criativo do prompter, a ausência de normas específicas que regulem esse tipo de atividade gera um vácuo legal preocupante. Criadores como Raony Phillips enfrentam o risco de ver suas criações apropriadas por terceiros sejam plataformas, empresas anunciantes ou mesmo usuários que reproduzem, remixam e monetizam os conteúdos sem qualquer retorno financeiro direto.
Não obstante, o ordenamento jurídico atual não reconhece, de maneira clara, um direito patrimonial sobre a criação de prompts nem sobre os outputs gerados pela IA. Diante disso, torna-se essencial discutir modelos alternativos de proteção, tais como: o reconhecimento da autoria derivada, a aplicação analógica de contratos de obra intelectual, ou mesmo a criação de um regime jurídico específico para obras oriundas de sistemas de IA.
Riscos da ausência de regulamentação
Além da questão autoral e da remuneração, o caso Marisa Maiô ilustra os potenciais riscos éticos e jurídicos do uso indiscriminado da inteligência artificial na produção de conteúdo. Há perigos evidentes de manipulação, falsidade ideológica, construção de narrativas que parecem reais, além da possibilidade de uso de vozes, rostos e estilos sem consentimento.
Se, por um lado, a personagem é ficcional e criada ex nihilo, por outro, sua estética, aparência e linguagem remetem de forma intencional à cultura televisiva brasileira e ao imaginário coletivo de apresentadoras populares, principalmente tendo em vista que seus detalhes de voz e comportamento, imagem pessoal e características, todas são oriundas de bancos de dados criados com base em pessoas reais. O risco de apropriação indevida ou de uso não autorizado de marcas culturais é real e pode gerar litígios futuros.
Conclusão
A pergunta “a quem pertence Marisa Maiô?” expõe a profunda lacuna entre o avanço das tecnologias de inteligência artificial e a capacidade atual do Direito de regular suas implicações criativas, patrimoniais e éticas. A personagem não pertence à IA, tampouco unicamente à plataforma que viabilizou sua materialização. Também não pode ser entendida como criação anônima ou difusa.
O mais justo seria reconhecer a autoria intelectual do prompter neste caso, Raony Phillips e assegurar-lhe proteção jurídica e patrimonial sobre o conteúdo. Para tanto, o Brasil precisa avançar urgentemente em uma regulamentação específica sobre a matéria.
[4] Ibidem 2.