

Opinião
O Projeto de Lei (PL) no 2.159, de 2021, que pretende reformar o regime jurídico do licenciamento ambiental no Brasil, revela um ponto de inflexão no debate público brasileiro, no qual diferentes vozes se debruçam sobre os potenciais efeitos da adoção dessa legislação. Muitos argumentos foram esposados em distintos espaços institucionais e acadêmicos, cotejando os impactos esperados da norma — de um lado, os interesses econômicos e políticos que impulsionam sua tramitação acelerada; de outro, sua compatibilidade com os marcos constitucionais e infraconstitucionais já consolidados. Mas o que pode significar essa legislação para o comportamento do Estado brasileiro em relação a suas obrigações internacionais?
Pavlo Vakhrushev

O objetivo deste artigo é abordar qual o lugar do direito internacional ambiental e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no contexto da adoção da nova legislação relativa ao licenciamento ambiental. Em um momento em que o país se apresenta como anfitrião da COP 30 e pretende exercer protagonismo verde no Sul Global, a compatibilização entre a legislação brasileira e obrigações internacionais é um elemento que tomadores de decisão não podem negligenciar durante a apreciação da versão final do projeto.
Embora a análise da questão possa ser afrontada em relação a diferentes regimes jurídicos internacionais — e por consequência, também em relação a diferentes obrigações assumidas pelo Brasil —, três regimes jurídicos merecem especial atenção em virtude do papel que podem desempenhar no debate: as obrigações gerais do direito internacional geral ambiental e climático em relação à proibição do dano transfronteiriço, o direito internacional dos povos originários e o direito internacional dos direitos humanos, em especial o direito internacional interamericano.
Lógica transfronteiriça: parte da história
Como é notório, no direito internacional ambiental, a existência do risco de dano transfronteiriço é o grande propulsor das obrigações de devida diligência. Em suma, a soberania estatal é compreendida como responsabilidade, o que impõe que danos à soberania de um Estado terceiro não sejam causados. A proibição do dano ambiental e o dever de prevenção desse dano em virtude do risco estão amplamente consolidados como normas consuetudinárias vigentes entre nações soberanas. [1]
Com o intuito de prevenir o dano, um Estado possui diferentes obrigações de conduta para cumprir o dever maior de prevenção. Uma dessas obrigações é a realização do Estudo de Impacto Ambiental (EIA, na sigla em inglês). [2]
Embora não haja uma regulamentação internacional detalhada sobre os requisitos específicos do EIA no direito internacional, alguns standards foram desenvolvidos na prática internacional e por meio de regulamentações específicas. Na atualidade, existem inclusive standards internacionais não-vinculantes, como os elaborados no âmbito do Pnuma e da OCDE, que integram padrões de emissão de carbono, alinhando as obrigações oriundas do direito internacional do clima. Contudo, é importante aqui limitar o escopo da discussão: as regras internacionais para a realização do EIA desenvolvem-se, basicamente, em relação a atividades que envolvam risco de dano transfronteiriço. Em outras palavras, essas regras são menos incidentes quando se trata da possibilidade de riscos ambientais puramente em nível interno.
Obviamente, a discussão não se encerra aqui, na medida em que, a depender da área em que o risco surja (por exemplo, relacionado a atividades marítimas) e do tipo de dano envolvido, a atividade em questão pode implicar inegáveis riscos transnacionais. Sob a perspectiva do direito internacional climático, essas questões também devem ser analisadas à luz do risco de emissão substancial de gases de efeito estufa.
Spacca

Nessa linha de argumento, averiguar em que medida a regulação imposta pelo PL reduz as ações exigidas do Estado brasileiro para prevenir danos transfronteiriços pode ser um elemento considerável a ser levado em consideração. De que modo a atual regulação poderá enfraquecer os limites e os aparatos institucionais da prevenção de danos transfronteiriços no plano internacional é uma pergunta que se impõe. Qual mensagem o Estado brasileiro estará enviando a seus pares quanto ao seu dever de legislar em conformidade com o direito internacional ambiental? A eventual adoção de obrigações internas menos rigorosas poderá impactar significativamente a capacidade do Estado brasileiro de cumprir suas obrigações de devida diligência na esfera jurídica internacional.
Contudo, a lógica transfronteiriça endereça apenas parte da história, vez que, em muitos aspectos, a regulação interna toca sobretudo as obrigações dos Estados em relação aos seus próprios indivíduos e biomas.
Licenciamento e povos originários
O Estado brasileiro possui múltiplas obrigações oriundas de diferentes instrumentos internacionais em relação aos povos originários situados em seu território. Essas obrigações decorrem, inter alia, da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e do próprio sistema interamericano de direitos humanos. Em todas essas fontes, há um núcleo comum obrigacional: o dever de consulta livre, prévia e informada sempre que medidas administrativas ou legislativas possam afetar direta ou indiretamente os povos indígenas.
No contexto do licenciamento ambiental, esse dever se expressa de forma particularmente sensível, uma vez que muitos empreendimentos potencialmente lesivos ao meio ambiente impactam ou coincidem com territórios tradicionalmente habitados. A omissão do Estado em realizar consultas efetivas pode configurar violação direta ao direito internacional dos direitos humanos, com repercussões tanto jurídicas quanto políticas no plano internacional.
A proposta legislativa em discussão deve, portanto, ser matizada também à luz dessas obrigações específicas. Qualquer tentativa de flexibilização de critérios e prazos, ou de centralização decisória que enfraqueça a participação direta dos povos indígenas, pode ser lida como um retrocesso incompatível com o princípio da não regressividade e com o conteúdo normativo mínimo da consulta qualificada. Tal fragilização também compromete a devida diligência que se espera dos Estados na proteção de populações vulneráveis diante de riscos socioambientais.
Licenciamento e direitos humanos: controle de convencionalidade?
O terceiro conjunto de regras internacionais que merece atenção em relação ao licenciamento ambiental e as obrigações assumidas pelo Brasil diz respeito ao direito internacional dos direitos humanos, representado por uma constelação de tratados, decisões e princípios bem incorporados ao ordenamento nacional.[3]
Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, “a obrigação de levar a cabo um estudo de impacto ambiental existe também em relação com qualquer atividade que possa causar um dano ambiental significativo”, vez que há um potencial lesivo ao direito ao meio ambiente saudável da população de um Estado. Em outras palavras, quando os direitos de indivíduos e grupos sob a jurisdição ou controle de um Estado possa afetar determinados direitos internacionalmente reconhecidos, extrapola-se os confins normativos de direito nacional.
É possível conjecturar uma série de direitos materiais e procedimentais que possam se ver afetados no enfraquecimento das proteções relativas ao licenciamento ambiental. Apenas como exemplo, dentro da matriz tradicional do direito internacional dos direitos humanos, pode-se pensar no direito humano ao meio ambiente saudável, o direito à vida, à integridade pessoal, à alimentação, moradia, à água, entre outros. Na esfera procedimental, os direitos de consulta, de informação e de participação ambiental, todos internacionalmente assegurados, também poder-se-iam ver afetados.
No âmbito interamericano, esses direitos são protegidos, entre outros instrumentos, pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que impõe o dever do controle de convencionalidade. Em relação ao status jurídico, cabe ressaltar que a convenção tem caráter supralegal e que, enquanto tese, este status normativo também se estenderia a tratados internacionais de natureza ambiental, como é o caso do Acordo de Escazù — questão já analisada nesta ConJur. Em síntese, o juiz nacional, ao analisar a compatibilidade de uma legislação ou de um ato normativo, deve testar os dispositivos normativos com as normas protegidas pela Convenção Americana e, em tese, levar em consideração os standards da jurisprudência interamericana que sejam aplicáveis à matéria.
Pode-se questionar se o atual texto do projeto sobreviveria a um controle de convencionalidade realizado pelas autoridades brasileiras (administrativas ou judiciais) e, eventualmente, pelos órgãos internacionais do sistema interamericano. Esta consideração parece ainda mais contundente ao se considerar a emergente jurisprudência interamericana em matéria ambiental e climática.
Algumas reflexões para o futuro do PL
Como se tentou demonstrar com este ensaio, as ações do Poder Legislativo desencadeiam a possibilidade da responsabilização do Estado brasileiro em virtude de ações e omissões relativas a normas primárias de diferentes regimes jurídicos internacionais. Assim, levá-las em consideração na discussão pública sobre a matéria, antevendo os eventuais riscos dessa legislação não é apenas um exercício de compatibilidade, mas também de redução de danos e prevenção de responsabilização e perda reputacional do Estado.
Há duas questões que se solevam ainda e que somente o futuro poderá oferecer resposta definitiva: ao adotar uma proposta como a do PL no 2.159, de 2021, o Brasil já estaria violando suas obrigações internacionais de legislação e devida diligência? A segunda questão é mais prospectiva, mas não privada de importância: a adoção de referida legislação não facilitaria o descumprimento de obrigações internacionais por parte do Brasil? Embora as respostas aos questionamentos exijam medidas diferentes, ambas apontam para uma inegável conclusão: considerações relativas às obrigações internacionais do Brasil e o impacto dessas obrigações na percepção de seus pares dos compromissos internacionais não podem ser negligenciadas pelos agentes públicos em qualquer formulação legislativa.
[1] Ver, de modo geral, DUPUY, Pierre-Marie; VIÑUALES, Jorge. International Environmental Law. Cambridge: CUP, 2018. Ver também TOLEDO, André; LIMA, Lucas. Comentário Brasileiro à Declaração do Rio de Janeiro. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022.
[2] Sobre o tema ver BAHIA, Amael Notini; LIMA, Lucas Carlos. A obrigação do estudo de impacto ambiental no Direito Internacional. In: Cristiane Derani; Aline Beltrame de Moura; Patrícia Grazziotin Noschang. (Org.). A Regulação Europeia sobre a Água, Energia e Alimento para a Sustentabilidade Ambiental. 1ed.Florianópolis: Emais Editora, 202, pp. 105-117.
[3] LIMA, Lucas Carlos. Primeira Lição de Direito Internacional dos Direitos Humanos. In: Primeiras Lições de Direito Internacional. Belo Horizonte: D’Plácido, 2025, pp. 43-97.