Reforma traz avanço significativo, mas não elimina elisão


Opinião

Nas últimas décadas, o contribuinte aprendeu a dançar com o sistema tributário — e sua coreografia preferida foi a da metamorfose. Nome, classificação, embalagem: tudo virou matéria moldável ao sabor da carga fiscal. O sorvete, com um aceno semântico, virou sobremesa láctea, em uma mágica das nomenclaturas. O bombom se tornou wafer. A venda de produtos passou a desfilar como prestação de serviço. Como um Proteu fiscal, o contribuinte se transfigurou sempre que o Fisco se aproximava.

Andrea Alciato/Reprodução

Na mitologia grega, Proteu era uma antiga divindade marinha. Sua principal característica não era o poder físico, mas a sabedoria: ele sabia tudo — o que havia acontecido, o que estava acontecendo e até o que ainda iria acontecer. Contudo, essa sabedoria não era facilmente acessível. Proteu só compartilhava seus segredos com quem fosse capaz de capturá-lo e segurá-lo firmemente. Para não ser achado e capturado, ele usava um dom singular: o da metamorfose constante.

Ao ser avistado, mudava de forma sucessivamente, transformando-se em fogo, água, leão, serpente, árvore ou até mesmo vento — elementos difíceis de serem contidos. A cada nova forma, o capturador precisava manter-se firme, acreditando que era Proteu e resistindo ao instinto de soltar. Só quando todas as formas se esgotavam e ele era finalmente contido, Proteu retornava à sua forma original e falava. Esse rito simboliza a dificuldade de alcançar a verdade profunda: é preciso resistir à confusão, à mudança e à dissimulação para finalmente ouvi-la.

Proteu amarrado

A reforma tributária são as correntes contra Proteu. Seu propósito é conter a fluidez semântica e jurídica que, por décadas, permitiu que contribuintes se metamorfoseassem para escapar da incidência tributária plena. Ao estabelecer uma base ampla de incidência, com critérios mais objetivos e alíquotas uniformes, o novo modelo tenta imobilizar o corpo escorregadio da elisão fiscal baseada na nomenclatura.

Em vez de discutir se é “sorvete” ou “sobremesa láctea”, “produto” ou “serviço”, a legislação pretende amarrar Proteu antes que ele se transforme — obrigando-o a revelar a substância econômica da operação. É o esforço de capturar o essencial por trás da forma, de tributar não o nome que se dá, mas o que verdadeiramente se entrega ao contribuinte final. Nesse novo cenário, a criatividade tributária perde espaço para a transparência, e a guerra das nomenclaturas começa, enfim, a perder o fôlego.

Spacca

Contudo, a criatividade é a arte de encontrar soluções onde outros só enxergam limites e regras. Ela é fluida por natureza e resiste a amarras eternas. O caso das casquinhas rebatizadas como sobremesas lácteas é emblemático: a reforma tributária busca reduzir o espaço para manobras classificatórias, mas não o elimina por completo. As brechas podem se estreitar, mas enquanto houver regras, haverá interpretações — e onde há interpretação, há margem para a criatividade atuar.

Digo isso porque leite fermentado, bebidas e compostos lácteos destinados ao consumo humano terão direito à redução de 60% das alíquotas do IBS e da CBS, conforme previsto no item 2, do Anexo VII, da Lei Complementar nº 214, de 2025. Embora os requisitos técnicos para o enquadramento ainda dependam de regulamentação específica, o incentivo fiscal já está posto — e com ele, a tentação. Portanto, o antigo sorvete de casquinha brigará para continuar a ser chamado de bebida láctea.

Em conclusão, a reforma tributária representa um avanço significativo ao uniformizar regras e alíquotas e adotar critérios mais objetivos na incidência tributária sobre o consumo. No entanto, não elimina por completo os caminhos da elisão, justamente porque mantém uma miríade de hipóteses de alíquotas reduzidas e regimes diferenciados, conforme previsto na Lei Complementar nº 214, de 2025.

No próximo carnaval tributário, a roupa láctea será uma das fantasias mais procuradas no bloco das alíquotas reduzidas.



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