Tutela de urgência na ação de superendividamento pré-conciliação


Garantias do Consumo

O problema do superendividamento começou a ser enfrentado no Brasil a partir do início deste século. Inclusive, em 2004, por uma parceria entre a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e o Núcleo Cível da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, foi realizada pioneira pesquisa sobre o perfil da pessoa superendividada. Foram inúmeros estudos, dissertações, teses, para desenvolvimento do marco científico e social que redundou na Lei nº 14.181/2021, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) para a prevenção e o tratamento do superendividamento.

No CDC, a conjugação de normas de ordem pública e de interesse social (artigo 1º) com regras procedimentais especiais (artigo 104) atinentes à construção voluntária ou compulsória de plano de pagamento para reestruturação do passivo do consumidor, configura um universo de previsões que concretizam os direitos fundamentais de preservação da dignidade da pessoa e proteção do consumidor, contidos no artigo 5º, XXXII, da Constituição, bem como da própria atividade econômica (artigo 170, V da CF).

A propósito, este microssistema de crédito ao consumo elevou a atuação de determinados agentes na concretização do combate ao fenômeno mundial [1] de exclusão social. O protagonismo, tanto para a prevenção como o tratamento, foi destinado inicialmente aos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, artigo104-C do Código de Defesa do Consumidor, preservando ao Poder Judiciário o papel constitucional e residual da apreciação em caso de lesão ou ameaça a direito. [2]

Exemplo de sistematização da tutela legal do superendividamento do consumidor, termos de gestão judiciária, situa-se a atuação do Conselho Nacional de Justiça, através do Grupo de Trabalho, criado pelo ministro Luiz Fux e sob a liderança do ministro Marco Aurélio Gastaldi Buzzi, implementado pela Portaria nº 55/2022, de 17 de fevereiro de 2022. A inteligência coletiva desempenhada por este grupo ilustra a essência da construção e metodização de práticas voltadas ao “aperfeiçoamento dos fluxos e procedimentos relacionados ao tratamento do superendividado”, tendo como produto inicial a criação da Cartilha sobre o Tratamento do Superendividamento. [3]

Todavia, talvez em razão da juventude do Direito do Consumidor, ainda não se compreende plenamente a lógica de seu microssistema, tampouco a articulação entre seus métodos e propósitos. Prova disso é a persistência de discussões — como a possibilidade de concessão de tutela de urgência antes da audiência de conciliação, atualmente objeto de IRDR no TJRR — incompatíveis com a estrutura normativa do CDC. Trata-se de um microssistema jurídico completo, que desde sua origem já previa, no seu artigo 84, hipóteses de tutela.

A Lei nº 14.181/2021 apenas atualizou o CDC, dotando-lhe de regras voltadas à oferta responsável de crédito, à prevenção e ao tratamento do superendividamento — temas que antes careciam de disciplina específica. Quando o tema envolve tutela provisória, para proteção deste ou de qualquer outro direito, é perfeitamente possível recorrer tanto ao artigo 84 do CDC quanto ao artigo 300 do CPC (a partir do permissivo do artigo 7º do próprio CDC, que consagra o diálogo das fontes como princípio estruturante).

Em verdade, dúvidas como essa não deveriam subsistir, caso se compreendesse o CDC como o microssistema que é, e a Lei nº 14.181/2021 apenas como uma atualização coerente com seus fundamentos (para que repetir regras já existentes sobre tutela provisória?). Por outro lado, debates como esse também oferecem oportunidade valiosa para reforçar essa compreensão, em benefício do próprio mercado de consumo, cuja evolução deve caminhar em harmonia com a defesa do consumidor, conforme determina expressamente o artigo 4º, III do CDC.

Finalidade da Lei 14.181/2021: preservação do mínimo existencial e direito ao recomeço da pessoa consumidora superendividada, com o que se estará protegendo o próprio mercado de crédito (artigo 4º, III do CDC)

O modelo brasileiro de enfrentamento do superendividamento abrange ferramentas para prevenção e para o tratamento do superendividamento, partindo da premissa do dever de repactuação.  A centralidade do direito material — a dignidade da pessoa humana — deve ser reconhecida como fim do processo, sendo o procedimento apenas instrumento (tutela final ou provisória) para sua efetivação. E neste propósito, sem prejuízo da possibilidade de uso, a qualquer tempo, das ferramentas processuais (tais quais a tutela de urgência), adota um procedimento bifásico, composto por:

  • Fase consensual obrigatória, prevista no artigo 104-A do CDC, que promove a tentativa de acordo com todos os credores para a construção de um plano de pagamento que preserve o mínimo existencial. Essa fase exige uma presença qualificada dos credores, com prepostos ou procuradores devidamente habilitados a negociar. O parágrafo 2º do artigo 104-A, como incentivo de participação, estabelece sanções para o não comparecimento injustificado, incluindo a suspensão da exigibilidade do débito e a submissão ao plano que for aprovado pelos credores presentes.
  • Fase judicial (artigo 104-B), destinada à propositura da ação de superendividamento, na qual deve ser estabelecido plano de pagamento, ainda que compulsório, garantindo a eficácia da norma.

O modelo valoriza o princípio da cooperação (artigo 6º do CPC) e visa não apenas solucionar conflitos, mas prevenir a exclusão social do consumidor superendividado, alinhando-se aos fundamentos constitucionais e aos direitos fundamentais.

Tutela de urgência como instrumento indispensável à efetividade dos direitos

O artigo 300 do Código de Processo Civil, aplicável ao procedimento especial do superendividamento, permite a concessão de tutela de urgência em qualquer fase do processo, desde que demonstrados probabilidade do direito e risco de dano irreparável ou de difícil reparação.

Essa possibilidade é plenamente compatível com o artigo 104-A do CDC, que trata da fase consensual, pois essa fase diz respeito ao mérito da repactuação das dívidas, não sendo impeditiva da atuação jurisdicional em sede de cognição sumária, voltada à proteção imediata de direitos ameaçados. O próprio Fórum Nacional da Mediação e Conciliação (Fonamec), por meio do Enunciado nº 41, reconhece essa possibilidade, afirmando que:

“Após a análise de eventual tutela de urgência, o juiz poderá suspender o andamento do feito e remeter os autos ao Cejusc para a realização da audiência autocompositiva prevista no artigo 104-A do CDC.”

Conforme lecionam Marinoni, Arenhart e Mitidiero:

“Toda e qualquer providência capaz de alcançar um resultado prático à parte pode ser antecipada. O pedido de tutela de urgência […] está ligado à necessidade de se oferecer uma cobertura o mais completa possível às situações substanciais carentes de proteção.”

Esse entendimento é amplamente acolhido na jurisprudência dos tribunais brasileiros, a exemplo dos seguintes julgados  do TJ-RJ – AI 0083588-31.2022.8.19.0000, Rel. Des. Fernando Foch de Lemos Arigony da Silva, Julgado em 18/03/2024, DJe 04/04/2024 e do Agravo de Instrumento, Nº 51793978420248217000, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carla Patricia Boschetti Marcon, Julgado em: 07-08-2024.

A sanção prevista no artigo 104-A não é, por qualquer ângulo que se examine, forma de tutela (tanto que só atinge — e eventualmente — o credor ausente injustificadamente), mas apenas um incentivo ao comparecimento e ao exercício do dever de repactuação.

Esses precedentes reforçam que a antecipação das salvaguardas ao mínimo existencial mediante tutela de urgência não só é juridicamente possível, como representa medida indispensável à efetividade do direito fundamental à dignidade da pessoa humana (que é o direito material protegido pela dinâmica de prevenção e tratamento do superendividamento).

A possibilidade de tutela de urgência como condição de efetividade e sobrevivência do direito material de preservação da vida da pessoa consumidora superendividada

Quando se verifica o comprometimento da renda do consumidor afetando seu mínimo existencial (quando, por exemplo, 60% da renda está comprometida), a negativa da tutela de urgência impede o atendimento às necessidades básicas, como alimentação, moradia e saúde, ou seja, coloca em risco a própria vida da pessoa consumidora superendividada.

Assim, identificada hipótese de comprometimento significativo da folha de pagamento  com obrigações que atinjam o mínimo existencial, inviabilizando o pagamento das despesas de sobrevivência, a negativa de aplicação do artigo 300 do Código de Processo Civil (ou do próprio artigo 84 do CDC) atuará em detrimento daquele consumidor e inviabilizará, ao fim e ao cabo, sua própria capacidade de renegociação voluntária com os demais credores.

O provimento judicial antecipado, nesse cenário, portanto, é essencial para preservar: a dignidade da pessoa humana, o mínimo existencial, e a própria possibilidade de construção do plano de pagamento na fase consensual.

Instrumentos processuais (como a tutela de urgência) não são um fim em si mesmo, mas meio para realizar o direito e sua não aplicação pode comprometer diretamente os direitos fundamentais do consumidor, tornando inócuo o próprio procedimento especial do superendividamento, pois já nos ensinava Rui Barbosa que “Justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.”

Conclusão

Diante de todo o exposto, conclui-se que:

  • A concessão de tutela de urgência nas ações de superendividamento antes da audiência de conciliação não só é juridicamente possível, como é medida muitas vezes essencial e urgente para preservar a própria vida da pessoa consumidora superendividada;
  • Negar essa possibilidade significa esvaziar o direito material protegido pela Lei nº 14.181/2021, pela Constituição e pelo Código de Defesa do Consumidor.
  • A correta interpretação do ordenamento jurídico brasileiro exige o reconhecimento de que a tutela de urgência é um instrumento indispensável à efetividade do direito ao mínimo existencial, aplicável a qualquer tempo, inclusive antes da audiência de conciliação prevista no artigo 104-A do CDC.

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Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990.

BRASIL. Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para dispor sobre o crédito responsável e a prevenção e o tratamento do superendividamento. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 jul. 2021.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Agravo de Instrumento nº 0717069-66.2022.8.07.0000, Relatora: Des. Fátima Rafael. 3ª Turma Cível. Julgado em 18 ago. 2022. Publicado em 6 set. 2022.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº 0083588-31.2022.8.19.0000, Relator: Des. Fernando Foch de Lemos Arigony da Silva. 2ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 18 mar. 2024. Publicado em 4 abr. 2024.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento, 15ª Câmara Cível, Relator: Des. Roberto José Ludwig. Julgado em 18 mar. 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Portaria CNJ nº 55, de 17 de fevereiro de 2022. Institui Grupo de Trabalho destinado ao aperfeiçoamento dos fluxos e procedimentos relacionados ao tratamento do superendividamento. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 17 fev. 2022.

FÓRUM NACIONAL DA MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO (FONAMEC). Enunciado nº 41. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 25 maio 2025.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo civil: comentários artigo por artigo. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

BARROSO, Luís Roberto; MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Direitos fundamentais, negociações e relações privadas: estudos em homenagem a Judith Martins-Costa. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 535-550.

[1]             PAISANT, Gilles. El tratamiento del sobreendeudamiento de los consumidores en derecho francés. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 42, p.9-26, abr./jun. 2002, p. 9.

[2]             Art.5º, XXXV da CF: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

[3] Cartilha sobre o Tratamento do Superendividamento, CNJ, p.6. Disponível em



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