Recuperação judicial do Vasco expõe vulnerabilidades de SAF


Opinião

A recente decisão da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, que deferiu o pedido de recuperação judicial da instituição Clube de Regatas Vasco da Gama – abrangendo tanto o clube associativo quanto sua Sociedade Anônima do Futebol – expôs, de forma contundente, as vulnerabilidades do modelo de SAF quando carente de estrutura e governança robustas. Este episódio transcende um mero problema de inadimplemento contratual, servindo como um alerta estrutural sobre os riscos inerentes à financeirização do futebol sem mecanismos adequados de controle e proteção institucional.

Wikimedia Commons

Em 2022, o Vasco da Gama adotou o modelo de SAF visando solucionar um passivo acumulado de centenas de milhões de reais, que ameaçava sua operação esportiva e sua própria existência institucional. Na transição, o clube associativo constituiu uma SAF, para a qual transferiu a maior parte de seus ativos, passivos e receitas futuras. Posteriormente, 70% do capital da nova empresa foi vendido à 777 Partners, em troca de um aporte financeiro estimado em R$ 700 milhões, distribuídos em pagamentos diretos ao clube, quitação de dívidas e investimentos operacionais ao longo de três anos.

Teoricamente, o arranjo se mostrava promissor: uma empresa internacional, já presente em diversos clubes estrangeiros, prometia profissionalizar a gestão, realizar aportes significativos e recolocar o Vasco entre os protagonistas do futebol brasileiro e sul-americano. Contudo, na prática, faltaram elementos cruciais para assegurar a transparência, sustentabilidade e controle de riscos da operação.

Naquele período, a holding norte-americana propagava um discurso de expansão global no futebol, com aquisições recentes de clubes europeus e promessas de investimentos robustos no Brasil. No entanto, a ausência de garantias contratuais e de mecanismos de proteção contra eventuais inadimplementos revelou uma fragilidade estrutural que não pode ser justificada apenas pela boa-fé inicial. Este cenário sublinha a importância de um processo rigoroso de know your partner (KYP), que deveria ter sido aplicado para avaliar a solidez e a idoneidade do investidor antes da formalização do acordo.

Fragilidade contratual e falta de transparência

Os sinais de alerta tornaram-se mais evidentes a partir de 2024, com a publicização de diversas ações judiciais contra a 777 Partners nos Estados Unidos e no Reino Unido. Entre as acusações mais sérias, destacam-se fraudes em operações financeiras, uso de garantias múltiplas sobre os mesmos ativos e alegações de esquemas fraudulentos em operações de empréstimos. Em uma dessas ações, movida na Corte Federal de Nova York por credores institucionais, a empresa é acusada de obter um empréstimo de US$ 350 milhões com garantias inexistentes ou já comprometidas – imputações que questionam sua solvência e idoneidade no mercado internacional.

Tais fatos, que vieram a público somente após a consolidação da SAF do Vasco, ressaltam a crucialidade de contratos que contemplem cláusulas de proteção robustas, dispositivos de saída claros e auditoria independente contínua. Tais mecanismos são essenciais para mitigar riscos que, por vezes, não são visíveis no momento inicial da transação e para gerenciar o risco reputacional. Embora o clube não seja diretamente responsável pelos atos da controladora, foi inevitavelmente impactado por decisões e condutas que comprometeram a operação da SAF e sua imagem.

A fragilidade contratual do acordo entre o Vasco associativo e a investidora é evidente. O contrato, embora previsse obrigações financeiras da 777, carecia de garantias reais ou pessoais, bem como de mecanismos automáticos de reversão do controle em caso de descumprimento. Adicionalmente, o modelo de governança adotado concedeu poder absoluto à holding estrangeira, sem a inclusão de mecanismos de equilíbrio, como conselhos deliberativos com participação paritária, cláusulas de veto do clube ou auditorias independentes e obrigatórias.

Em retrospectiva, a ausência de transparência desde a constituição da SAF vascaína torna-se manifesta. Decisões cruciais passaram a ser tomadas unilateralmente, sem o devido conhecimento ou anuência do clube associativo. Um exemplo claro é a operação de um empréstimo de R$ 25,8 milhões da SAF para uma empresa do próprio grupo 777, revelada apenas no balanço anual. A falta de prévia deliberação do Conselho, somada à omissão da diretoria da SAF em prestar contas e responder a alertas sobre o aumento da dívida, configura uma ruptura dos princípios de diligência, lealdade fiduciária e accountability.

Da promessa à frustração

Em síntese, a experiência do Vasco da Gama com a 777 Partners evidenciou falhas graves de governança corporativa, que comprometeram o propósito original da SAF: profissionalizar a gestão e restaurar a sustentabilidade financeira do clube.

Spacca

Adicionalmente, os conflitos de interesse e a ausência de mecanismos eficazes de controle interno fragilizaram a estrutura da SAF, permitindo que decisões estratégicas fossem tomadas sem a devida supervisão ou critérios técnicos claros.

Com o tempo, as promessas de profissionalização cederam lugar à frustração. Parte dos aportes foi postergada, fornecedores reportaram atrasos e o desempenho esportivo permaneceu instável. A gestão da SAF tornou-se progressivamente opaca, com pouca ou nenhuma prestação de contas ao clube associativo, aos torcedores ou aos órgãos fiscalizadores. Patrocinadores se retraíram, e a confiança institucional — elemento essencial para qualquer organização de interesse público e crucial para a gestão do risco reputacional — desfez-se.

A situação escalou para um novo patamar de gravidade em fevereiro de 2025, quando o Vasco da Gama protocolou um pedido de recuperação judicial, abrangendo tanto o clube associativo quanto a SAF. Com o deferimento, a instituição obteve proteção contra cobranças, execuções e penhoras por parte dos credores durante o processo. Isso proporciona um alívio temporário no fluxo de caixa e impede que ativos importantes (como receitas de TV, patrocínios ou patrimônio físico) sejam judicialmente bloqueados por dívidas passadas.

Contudo, o deferimento da recuperação judicial também acarreta insegurança jurídica adicional para credores e para o mercado, impactando diretamente a imagem e a reputação do clube. Isso dificulta negociações futuras e reduz a atratividade do modelo SAF, evidenciando a necessidade de uma gestão proativa do risco reputacional.

Do ponto de vista operacional, a recuperação judicial impõe desafios significativos ao clube e à SAF. Embora o modelo societário (SAF) seja mantido – sem reversão ao clube associativo puro –, na prática, a gestão permanecerá sob a diretoria do Vasco, uma vez que a 777 segue afastada das decisões até segunda ordem. Consequentemente, será imperativa uma disciplina financeira extrema, pois o cumprimento do plano de recuperação será rigorosamente fiscalizado, e qualquer descumprimento grave poderá resultar em falência.

Lição valiosa

É fundamental destacar que a Lei da SAF (nº 14.193/2021), embora represente um avanço significativo na modernização do futebol nacional, não constitui uma panaceia. A legislação estabeleceu um arcabouço que viabiliza a profissionalização da gestão, a separação patrimonial entre clube e SAF e o acesso a instrumentos de mercado. Contudo, sua eficácia depende intrinsecamente da estrutura contratual, dos controles internos e da governança implementada.

Sem esses elementos, a SAF pode se converter em um novo rótulo para práticas deletérias já conhecidas, exacerbando riscos operacionais e reputacionais. O caso do Vasco, portanto, evidencia uma crise de governança anterior à crise financeira. Governança, nesse contexto, refere-se ao sistema de regras, práticas e processos que dirigem e controlam uma organização. No âmbito de uma SAF, ela deve assegurar transparência, responsabilidade, prestação de contas e uma participação equilibrada entre os interesses do investidor e do clube. Contudo, esses pilares foram ignorados ou mal aplicados na transação com a 777 Partners, falhando na devida diligência e no KYP.

Diante desse cenário, é pertinente questionar: o que poderia ter sido feito de forma diferente? Primeiramente, o desenho contratual da SAF poderia ter contemplado cláusulas de governança mais rigorosas, incluindo mecanismos de veto qualificado do clube associativo em decisões críticas (como endividamento, alienação de ativos e transações com partes relacionadas). Em segundo lugar, seria fundamental a criação de comitês independentes — especialmente de auditoria e compliance — com membros indicados em regime de paridade entre clube e investidor, além da contratação de auditoria contínua com publicação de relatórios periódicos às partes interessadas.

Isso também contribuiria para a gestão do risco reputacional. A relação de poder entre as partes também deveria ter sido mais equilibrada: permitir que um investidor detenha controle absoluto e, simultaneamente, movimente recursos da SAF para outras empresas do grupo é um risco de governança clássico, que poderia ser mitigado por meio de regras objetivas e supervisão ativa.

Em contraste, vale citar experiências mais estruturadas, como a do Cruzeiro. Mesmo sob o controle do investidor Ronaldo Nazário, o clube preservou canais formais de diálogo com o associativo, implementou uma gestão com controles internos mais robustos e adotou medidas para diversificar receitas e reduzir a dependência de aportes diretos. Embora passível de aprimoramento, a governança do Cruzeiro tem se mostrado, até o momento, mais equilibrada e menos suscetível a rupturas.

Outro exemplo positivo é o modelo alemão, em que a regra do “50+1” exige que os clubes associativos mantenham o controle majoritário de suas operações, mesmo contando com investidores externos. Essa estrutura estabelece um equilíbrio entre capital e identidade, permitindo a profissionalização sem a perda de valores institucionais. Embora não seja obrigatório no Brasil, esse modelo inspira a criação de cláusulas contratuais que protejam o clube associativo de decisões unilaterais que possam comprometer seu futuro.

O episódio do Vasco, portanto, deve servir como uma lição valiosa. A profissionalização do futebol não pode ser confundida com a entrega irrestrita do controle a investidores sem histórico comprovado, sem garantias e sem transparência. Isso ressalta a importância de um KYP robusto e da gestão ativa do risco reputacional. Não se trata de rejeitar o capital externo, mas de saber como se relacionar com ele de forma estratégica, segura e responsável.

É urgente que os clubes brasileiros – e, em especial, seus conselhos deliberativos e departamentos jurídicos — compreendam que a SAF é uma figura jurídica que exige planejamento de longo prazo, engenharia contratual sofisticada e modelos de governança que contemplem mecanismos de equilíbrio entre capital e identidade.

Da mesma forma, é essencial que o Judiciário, o Ministério Público e a CBF acompanhem atentamente esses movimentos, exigindo responsabilidade e rigor na gestão de clubes que não são apenas empresas, mas patrimônios culturais da sociedade brasileira.

Por fim, o futuro da SAF do Vasco dependerá não apenas da solução de sua recuperação judicial, mas também da capacidade de reconstruir sua estrutura de governança, renegociar os termos do contrato e, se necessário, reavaliar a própria continuidade da relação com o investidor. Este não é um caminho simples nem curto, mas é o único que pode assegurar que a modernização do futebol brasileiro ocorra com justiça, responsabilidade e compromisso com suas raízes históricas.


Postagens recentes
Converse com um advogado