Consultor Tributário
Os últimos tempos têm sido marcados por constantes debates acerca de legalidade, em matéria tributária, razão pela qual retomamos tema básico já consagrado em nosso sistema jurídico e um de seus fundamentos. Tanto congressos acadêmicos quanto grupos de estudos mostram-se preocupados com ele e têm se reunido para examiná-lo sob diversos aspectos, desde as ditas flexibilizações que teriam sido permitidas pelos tribunais superiores, até a ausência de sua aplicação em normas emanadas do Poder Executivo, os conhecidos decretos.
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No curso de Direito aprendemos que a legalidade é soberana e tudo a ela se submete, daí ter sido escrita, de forma expressa, em nosso Texto Maior, em mais de um momento. Assim, no artigo 5°, I, está disposto que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e, especificamente em matéria tributária, no artigo 150, I que, ao ditar as restrições ao poder de tributar da União, estados, Distrito Federal e municípios veda exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.
Com isso o legislador constituinte originário privilegiou, acima de tudo, a ordem jurídica de tal sorte que a ausência de lei desconsiderando a fundamental tarefa do Poder Legislativo ou a lei editada sem a observância dos limites impostos pela Constituição, quando se tratar de matéria tributária pode, até mesmo, afetar a dignidade do contribuinte por desobedecer aos princípios constitucionais que lhe correspondem como é o caso do confisco, se o tributo é excessivo.
A despeito disso, nem sempre essa determinação é atendida pelo Poder Executivo que envereda a legislar em matéria que não é de sua competência, o que traz sérias consequências para a segurança jurídica, penalizando o contribuinte que espera, e não poderia ser de outra forma, que sejam os princípios constitucionais observados. É certo que a inobservância dos preceitos constitucionais pode ser levada ao Poder Judiciário, o que demanda tempo para se obter uma solução além de aumentar o congestionamento já existente nos tribunais judiciais.
Má gestão dos recursos públicos não pode gerar equivocadas tentativas de criar tributação por meio de decretos
Até um observador menos perspicaz pode apontar diversas inciativas do Poder Executivo que, sem dúvida, ferem o princípio da legalidade e todas elas, isto é perceptível, têm a clara finalidade de suprir de recursos os cofres públicos. Nos tempos que correm, a propalada meta do déficit zero tem atropelado, muitas vezes, os princípios constitucionais, e gerado normatizações inconsistentes e que não se sustentam. De fato, o tema do orçamento público, no Brasil, e as dificuldades de observá-lo em sua plenitude, é de conhecimento de todos, o que leva os seus responsáveis a uma busca insana de recursos e nem sempre o meio encontrado para tanto é o mais adequado.
Nesse sentido é exemplo de descumprimento pleno e total do princípio da legalidade, a delegação feita pela Lei nº 15.079/2025, que criou um adicional à Contribuição Social sobre o Lucro com o objetivo de estabelecer uma tributação mínima de 15% de grupos multinacionais, delegando a instrução normativa da Secretaria da Receita Federal a função de regular a totalidade da matéria. Contudo o exemplo mais contundente de ofensa à legalidade é o recente Decreto nº 12.466/2025 que alterou o Decreto nº 6.306/2007, dito Regulamento do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários, simplesmente IOF, para incluir, dentre outras novidades, os parágrafos 23 e 24 ao artigo 7º, com o objetivo de qualificar as operações conhecidas por “risco sacado” como operações de crédito sujeitas à incidência do IOF.
Equiparar o risco sacado a operação de crédito é um imenso equívoco
O IOF guarda particularidades interessantes, de acordo com a Lei Maior. Assim não está, por determinação constitucional, sujeito ao princípio da anterioridade seja anual ou trimestral (artigo 150, § 1º) sendo que o Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as suas alíquotas a fim de ajustá-lo aos objetivos da política monetária (artigo 65, do Código Tributário Nacional).
As operações sujeitas ao IOF estão descritas na Lei nº 5.143/1966, que o instituiu, inclusive dispondo sobre a aplicação das reservas monetárias oriundas de sua receita, na Lei nº 8.894/1994, que estabelece alíquotas e regras de cobrança e, por fim, no artigo 13 da Lei nº 9.779/1999, que prevê a sua incidência nas operações de mútuo de dinheiro entre pessoas jurídicas não financeiras, caracterizando-as como operação de crédito. Essas normas definem as hipóteses de incidência do IOF, cabendo ao Poder Executivo alterar por decreto, sempre que houver ameaça à moeda, suas alíquotas.
No risco sacado não há operação de crédito, apenas cessão de direito
Ocorre que o Decreto nº 12.466/2025 não se limitou a alterar alíquotas de IOF, ao contrário, de forma indevida criou hipóteses de incidência desse tributo não previstas nas leis ordinárias que o regulam, inclusive qualificando como operações de crédito sujeitas à incidência do IOF, dentre outras, as operações de risco sacado. As leis que regulam o IOF definem que sua incidência depende, dentre outras, da ocorrência de uma operação de crédito, ou seja, a entrega ou colocação do valor à disposição do interessado, com obrigação de restituição.
Na operação de risco sacado não há empréstimo ou entrega de valor com obrigação de devolução nos moldes exigidos pelo sistema legal, mas aquisição de um crédito preexistente, sendo que o cedente (fornecedor) não permanece na relação jurídica e não tem obrigação de devolver qualquer valor. A operação se aperfeiçoa como cessão definitiva de crédito, nos termos do artigo 286 do Código Civil.
Operação de risco sacado guarda similaridades com desconto de duplicatas, embora não o seja, pois objetiva antecipar o recebimento do valor da operação mercantil, para o fornecedor, antes do seu vencimento
No desconto de duplicatas tradicional, o fornecedor segue responsável pela eventual inadimplência de seu cliente, enquanto no risco sacado não existe essa coobrigação, criando-se uma relação entre o fornecedor e o banco que oferece tal “produto”, o qual passará, nessa condição, a ser cliente direto da instituição financeira.
O principal atrativo dessa operação vinha sendo o fato de não ser tributada pelo IOF por ausência de norma impositiva, com base no conceito de que o risco sacado é uma modalidade de cessão de crédito sem coobrigação. A própria Receita Federal vinha reconhecendo não incidir IOF em cessões sem coobrigação (Solução de Solução de Consulta de Divergência Cosit nº 09/2016 e Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 11, de 22/11/2016.). O que mudou? Nada, absolutamente nada.
Ampliação indevida do conceito de crédito, por decreto, ofende o princípio da legalidade
O fato é que o tratamento dado pelo Decreto n. 12.466/2025 a essas operações ampliou, indevidamente, o conceito de operação de crédito, contrariando o regime jurídico definido nas Leis que disciplinam o IOF e a jurisprudência administrativa consolidada. A peculiaridade, essencial, é que não há coobrigacão do cedente, assumindo a instituição financeira integralmente o risco da inadimplência do sacado, uma vez que não há direito de regresso contra o fornecedor. Assim, o que ocorre é verdadeira alienação do direito pelo fornecedor, ou seja, cessão de crédito que não se caracteriza como operação sujeita ao IOF.
O que faz a mudança, no caso, é a necessidade de caixa.
Afinal: a legalidade é estrita ou não? É possível flexibilizá-la? A hipótese do IOF é de flexibilização?
A nosso ver resulta irrelevante retomar o antigo debate sobre a legalidade, estrita ou não, porque a legalidade não necessita de qualquer qualificação que lhe possa dar mais ou menos força; ela deve ser observada, acima de tudo. Sua força advém da Constituição, expressão da vontade dos cidadãos que elegeram seus representantes para sua elaboração que, com isso, deve colocar-se acima de qualquer outro elemento, especialmente qualificações que nada acrescentam.
A dita flexibilização da legalidade nasce no seio do Supremo Tribunal Federal, ADI 2.304, que ao tratar da Lei Estadual nº 11.453/2000, do estado do Rio Grande do Sul, afirmou que ao autorizar o Poder Executivo a conceder parcelamento, provocou a degradação da legalidade, uma vez que omissa quanto ao que se delegava, remeteu a ato infralegal a função própria da lei. Por fim, o ministro Dias Toffoli faz referência a uma certa flexibilização do princípio da legalidade, por parte do Tribunal, esclarecendo o que em matéria de delegação legislativa os seguintes critérios são considerados válidos para se aferir a constitucionalidade de norma regulamentar: a) o fato de a delegação poder ser retirada daquele que a recebeu, a qualquer momento, por decisão do Congresso; b) o fato de o Congresso fixar padrões que limitam a ação do delegado; c) a razoabilidade da delegação.
De outro lado o alcance do conceito de flexibilização foi mais bem definido no Tema 939 de repercussão geral, pelo Supremo, no qual se discutiu sobre a possibilidade de as alíquotas das contribuições ao Programa de Integração Social (PIS) e ao Financiamento da Seguridade Social (Cofins) serem reduzidas e, após, restabelecidas por regulamento infralegal. Decidiu-se que é constitucional a flexibilização da legalidade tributária constante do § 2º do artigo 27 da Lei nº 10.865/2004, no que permitiu ao Poder Executivo, prevendo as condições e fixando os tetos, reduzir e restabelecer as alíquotas dessas contribuições incidentes sobre as receitas financeiras auferidas por pessoas jurídicas no regime não cumulativo, estando presente o desenvolvimento de função extrafiscal.
Caso do Decreto nº 12.466/2025 não é de flexibilização, mas de invasão de competência, pois incluiu hipótese não prevista na lei ordinária
O imbróglio do Decreto nº 12.466/2025 ganhou grande repercussão não só entre os agentes econômicos, mas também junto aos representantes do povo no Congresso Nacional, de tal sorte que se optou por firmar um compromisso entre os Poderes Executivo e Legislativo no sentido de buscarem uma adequada solução. No dia 10/6/2025, o site da Câmara dos Deputados trouxe a notícia de um acordo entre esses Poderes no sentido de que o Decreto nº 12.466/2025 seria alterado, em troca de algumas novas incidências tributárias que estão sendo criadas [1].
“Para resolver a situação das contas públicas, o governo apresenta uma medida provisória, que, na nossa avaliação, traz uma compensação financeira para o governo, mas muito menos danosa que a continuidade do decreto do IOF, como foi proposto de forma inicial”
A afirmativa acima é atribuída ao ministro da Fazenda, conforme a mesma publicação da Câmara. Nessa declaração fica consignado que a intenção é/era, de fato, cobrar o IOF fora dos parâmetros constitucionais e apenas para cobrir os déficits gerados. Em contraposição, haveria a revogação da isenção do Imposto sobre a Renda relativa aos rendimentos gerados por títulos de crédito isentos, como é o caso da Letra de Crédito Imobiliário e da Letra de Crédito do Agronegócio para, dessa forma, tributar os rendimentos pelo Imposto sobre a Renda à razão de 5%. Também se pretende aumentar a tributação das plataformas de apostas online (bets) e das fintechs no que tange ao Imposto sobre a Renda e à Contribuição Social sobre o Lucro e, por fim, propõe-se uma revisão das isenções tributárias infraconstitucionais e dos gastos tributários.
Essa iniciativa de tributar rendimentos isentos, seja na fonte ou não, deve observar o princípio da legalidade que exige, em matéria de Imposto sobre a Renda, a edição de norma legal, estrito senso, para tanto, além da observância do princípio da anterioridade, ou seja, que a lei seja editada no ano anterior à exigência do tributo. Destaque-se que se o objetivo dessa tributação é aliviar o caixa do governo isso só poderá ocorrer a partir de 1/1/2026, sobre os rendimentos gerados dessa data em diante, em consonância com o princípio da anterioridade anual. Qualquer tentativa em sentido diferente gerará os mesmos equívocos ora apontados, pois a lei, em qualquer circunstância, ainda que em face de problemas de caixa, deve ser observada.
Outro aspecto interessante a ser comentado e que deve ser observado, diz respeito aos fundamentos econômicos que levaram à criação de tais isenções a serem revogadas. Destaque-se que o Projeto de Lei nº 1.087/2025, que busca introduzir um Imposto sobre a Renda da Pessoa Física Mínimo (IRPFM), outra aberração na busca de caixa, excluiu dessa tributação tais investimentos, o que parece contraditório com a anunciada proposta para minimizar os efeitos nefastos do Decreto nº 12.466/2025. É importante verificar se as razões que determinaram tal posicionamento, no caso do IRPFM, existem e persistem para fins de Imposto sobre a Renda. De outro lado, se a medida a ser tomada não decorrer de lei, em estrito senso, o tributo carecerá de legalidade e, portanto, não será exigível ou suscetível de cobrança.
Os eventos que envolveram o Decreto nº 12.466/2025 e a frustrada tentativa de arrecadar para fins de cobrir déficits de curto prazo, demonstram quão urgente se faz uma revisão da necessidade e qualidade dos gastos que são feitos. Muitos são os que propõem, e a eles nos aliamos, uma reforma administrativa com a finalidade de adequar as reais necessidades do Estado brasileiro, reforma que deveria, certamente, ter precedido a reforma tributária que hoje ocupa o país. Os remendos que vêm sendo feitos, já de muito tempo, no sistema tributário aportado pela Constituição de 1988, com a finalidade de adaptá-lo às reais necessidades do País são muito grandes e podem não encontrar, muitas vezes, a devida justificativa constitucional
O que se pode em definitivo concluir é que essa tentativa de criar hipóteses de tributação por decreto, contraria o sistema legal, gerando insegurança no mercado organizado e entre os cidadãos
Por fim, a quem interessa a legalidade? A nosso ver a todos. Aos cidadãos contribuintes para conhecerem os limites do Estado para exigir tributos e ao Estado para bem se organizar e atender os interesses de todos. O Decreto nº 12.466/2025, pelo menos no que tange ao risco sacado, nunca deveria ter acontecido e espera-se não mais se repita. Por trás disso está, também, um princípio não escrito, mas que permeia a Constituição, o princípio da segurança jurídica, que nunca deve ser olvidado.