uma proposta para o equilíbrio entre os Poderes


Opinião

Nas últimas semanas, a Câmara dos Deputados editou a Resolução nº 18, de 2025, com o objetivo de, nos seus termos, sustar o andamento da ação penal contida na PET 12.100/DF. Tal ação se refere ao midiaticamente conhecido “processo do núcleo duro do suposto golpe”, que tem entre os réus o atual deputado federal Delegado Ramagem (PL-RJ).

A Resolução nº 18, de 2025, foi editada após ampla discussão e deliberação do parecer relacionado à proposição SAP nº 1, de 2025, de relatoria do deputado Alfredo Gaspar (União-AL).

O objetivo desta reflexão não é se inclinar a favor ou contra a decisão política do Congresso. Infelizmente, tornou-se comum o ambiente jurídico ser contaminado por convicções políticas que vão além do desenho institucional e jurídico estabelecido pela Constituição. Por isso, as reflexões fincar-se-ão numa análise estritamente jurídica para se chegar a uma interpretação equilibrada do artigo 53, § 3º, da Constituição a partir da separação de poderes.

A presente análise, é bom que se diga, não reflete a opinião da instituição ao qual pertence este articulista, mas apenas denota a sua opinião acadêmica sobre o assunto.

Pois bem. Uma coisa é fato: a cultura constitucional brasileira desde 1891 estabelece a possibilidade do controle judicial (judicial review) a ser empreendido pelo Poder Judiciário em relação aos atos do Poder Legislativo e do Executivo. Essa cultura foi mantida na Constituição de 1988 e, até mesmo, ampliada pela atual ordem jurídica.

Trata-se de pressuposto que possibilita a conclusão de que, sim, o STF poderia avaliar os limites jurídicos da Resolução nº 18, de 2025, a partir da norma constitucional parâmetro estabelecida no artigo 53, § 3º, da Constituição. Não há nenhum problema quanto a isso.

A problemática reside num segundo momento: até que ponto o controle pode ser feito? Ou seja, em que intensidade o STF poderia fazer esse controle?

Alexandre Ramagem presta depoimento à Polícia Federal

Ramagem em depoimento à Polícia Federal

Se, por um lado, retirar a possibilidade de o STF exercer o controle judicial da Resolução nº 18, de 2025, seria relegar a nada o princípio da separação de Poderes, o mesmo deve ser visto pelo lado oposto: permitir uma intensidade ampla e irrestrita de controle é tornar a Câmara dos Deputados refém do Poder Judiciário, em específico do STF, o que também relega a nada o princípio da separação de poderes, já que a Casa Legislativa possui legitimidade para interpretar a norma parâmetro no exercício de sua atividade constitucional.

Qual seria, então, o equilíbrio esperado da cláusula da separação de poderes no aspecto entre o controle judicial pelo Poder Judiciário e o exercício do poder político pelo Poder Legislativo? Trazer luz a essa resposta é urgente e relevante para o momento institucional vivido no Brasil e nada melhor do que utilizar o caso do deputado Ramagem (PL/RJ), considerando a sua relevância e as nuances de fato.

O STF considerou que a sustação do andamento da ação penal seria aplicável apenas ao deputado em questão, não se estendendo aos demais corréus da AP 2.668/DF. Além disso, abrangeria parcialmente a acusação constante da denúncia, já que, no entendimento da 1ª Turma do STF, somente os crimes de dano qualificado e de deterioração de patrimônio tombado foram praticados após a diplomação do deputado.

Alguns pontos são relevantes para estabelecer os limites à separação de Poderes entre o STF e a Câmara dos Deputados no aspecto da intensidade do controle.

Primeiro: o STF possui legitimidade constitucional para restringir o âmbito de incidência da sustação da ação penal apenas para o deputado federal réu, uma vez que o artigo 53, § 3º, da Constituição de 1988 confere a imunidade parlamentar formal apenas a parlamentares. Trata-se condição personalíssima não extensível aos demais corréus não parlamentares. Quer-se dizer: quem não é parlamentar não tem a seu favor a prerrogativa de ter um processo criminal suspenso por conta de um fato que não possui, que é o mandato parlamentar.

Esse entendimento é consolidado no STF antes mesmo das alterações empreendidas pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001. Isto é, tal posicionamento da Suprema Corte é assente desde a redação originária do art. 53 da Constituição. Esses aspectos revelam que delimitar o efeito subjetivo da da Resolução nº 18, de 2025, era a posição acertada dentro do desenho institucional previsto na Constituição.

Pois, a redação do artigo 53 da Constituição, desde a sua previsão originária, uma limitação subjetiva apenas em favor de parlamentares. Por isso, o STF não agiu fora da quadra do princípio da separação de Poderes ao limitar os efeitos subjetivos da Resolução nº 18, de 2025, apenas ao deputado Ramagem (PL-RJ), sem abranger os demais corréus.

Segundo: cabe ao STF apreciar posteriormente à decisão política da Câmara dos Deputados se realmente os crimes foram praticados antes ou após a diplomação do parlamentar, já que esse limite temporal “após a diplomação” foi estabelecido pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001, para garantir o livre exercício do mandato parlamentar, sem sujeitá-lo a qualquer pressão externa dos demais Poderes.

Fora dos limites interpretativos

Acontece que esse exame judicial pelo STF não pode ser amplo e irrestrito. Aqui é que reside a necessidade de apurar a intensidade do controle político exercido pelo Congresso Nacional quanto à imunidade formal prevista no artigo 53, §3º, da Constituição, haja vista serem os poderes independentes e harmônicos entre si, razão por que há necessidade de estabelecer parâmetros para que o controle judicial não exorbite o equilíbrio do check and balances.

Um primeiro parâmetro é de que a descrição da imputação delitiva na denúncia se revela como o ponto de partida para a interpretação de quais crimes foram praticados antes ou após a diplomação. Isto é, a delimitação sobre quais crimes se sucederam antes ou após a diplomação do parlamentar eleito deve ser feita a partir da descrição acusatória da Procuradoria-Geral da República.

Trata-se de conclusão inerente ao sistema acusatório penal através do qual o juiz possui uma postura de espectador e é ao órgão acusatório a incumbência de agir para processar o autor do delito. Nessa perspectiva, não pode o STF estabelecer previamente, por uma interpretação própria, quais seriam os crimes passíveis de análise pela Câmara dos Deputados.

Infelizmente, no caso do deputado Ramagem (PL/RJ), foi exatamente isso o que ocorreu, pois o presidente da 1ª Turma do STF encaminhou ofício ao presidente da Câmara dos Deputados para delimitar quais crimes seriam passíveis de suspensão. Pelo desenho institucional delineado a partir do artigo 53, § 3º, da Constituição, incumbe apenas ao Supremo Tribunal Federal dar ciência à Casa Legislativa sobre o recebimento da denúncia de crime praticado por parlamentar, sem realizar qualquer juízo de valor a respeito de quais crimes ocorreram antes ou depois da diplomação.

A avaliação dos fatos, para os fins de concretização da imunidade parlamentar formal, cabe única e exclusivamente à Câmara dos Deputados dentro dos parâmetros fixados pela peça acusatória da Procuradoria-Geral da República. Com isso, pode-se dizer que o Supremo agiu fora das delimitações do princípio da separação de Poderes, ao comunicar como a Câmara dos Deputados deveria agir no exercício da prerrogativa constitucional disposta no artigo 53, § 3º, da Constituição.

O equívoco desse ponto, com todo o respeito, fica mais claro clara no caso do deputado Ramagem, porquanto, pela narrativa acusatória, o crime de organização criminosa teve a sua conduta cessada no mesmo dia 8 de janeiro de 2023. Por se tratar de crime de natureza permanente, somente é possível falar na consumação delitiva com a cessação da conduta protraída no tempo. Logo, a consumação se deu após a diplomação do deputado, de maneira que o processo penal em relação a esse delito poderia ter sido suspenso.

Um segundo parâmetro é de que, no caso de existência de fatos conexos ou intimamente conectados pelo desencadeamento progressivo da conduta criminosa, nos termos da peça acusatória, a Casa Legislativa tem a seu favor a possibilidade de interpretar se tais fatos devem ser também suspensos. Explica-se melhor esse ponto.

No aspecto da teoria geral do processo, existem circunstâncias de tempo, de espaço e de outras ordens que exigem uma apreciação conjunta de fatos por sua íntima correlação. Isso acontece, sobretudo, em casos criminais nos quais haja a participação de mais uma pessoa na prática do crime ou por conta do modus operandi do crime. Por exemplo, a aquisição de equipamentos para a falsificação de moeda é uma conduta anterior intimamente atrelada ao ato posterior de incluir no mercado a moeda falsa, estando tais fatos intimamente relacionados, inclusive para o desenrolar do processo justo, em especial na produção de prova.

Quando presente essa situação, promover um desmembramento da análise processual das condutas é o mesmo que possibilitar que o juízo antecipe a avaliação prévia de ambas as condutas interconectadas, mesmo que uma delas não seja passível de apreciação naquele momento. Não é por outro motivo que o legislador possibilita a suspensão do processo por conta de uma questão interna à própria ação penal, assim como em decorrência de uma questão externa ao processo.

Essa decisão de sobrestamento ocorre em virtude da lógica necessária à resolução de uma questão prévia para o alcance da certeza probatória de sua existência, validade e eficácia, possibilitando, assim, o exame conjunta da questão a ela entrelaçada. Esse mesmo raciocínio aplica-se aos casos em que há conexão probatória íntima entre os fatos a serem processados, porque a obtenção da prova de um fato não pode ser feita de maneira isolado de outro.

A presença dessa circunstância evidencia que a tomada de decisão de suspensão de processamento de um fato pode levar ao sobrestamento do fato conexo, incumbindo à autoridade responsável pela suspensão, única e exclusivamente, a opção por essa decisão. Ora, diante dessa situação, cabe à Casa Legislativa a decisão de estender os efeitos da suspensão da tramitação do processo em relação aos fatos intimamente conexos descritos na peça acusatória.

Não se está a defender a possibilidade de suspensão da ação penal para fatos ocorridos antes da diplomação de parlamentar, quando houver uma situação de independência ou de autonomia das condutas. Interpretar o artigo 53, § 3º, da Constituição dessa maneira seria ir contra o texto legislativo. Em realidade, a proposta interpretativa acontece por se encontrar o caso numa zona cinzenta ou imprecisa.

Pois, o texto constitucional é omisso quando se está diante de uma conexão íntima entre os fatos, que levam à imposição de uma conexão probatória para o alcance do devido processo legal justo. A conexão probatória, aliás, é motivo para a ampliação da competência do STF para processamento e julgamento de réus sem foro por prerrogativa de função, quando forem coautores ou participes de crimes praticados por quem detém o foro de julgamento.

Se ela serve para a extensão de competência de órgão jurisdicional, por que não servir também para possibilitar que a Câmara decida pela suspensão do andamento da ação penal, tanto de fato criminoso praticado após a diplomação do parlamentar, quando daquele intimamente conexo, mesmo que praticado antes da diplomação?

A resposta negativa causa uma disparidade no equilíbrio do princípio da separação de poderes, reduzindo o espaço de decisão política da Casa Legislativa em casos para os quais a aplicação da norma constitucional se apresente controversa. Nessas hipóteses controversas, a escolha jurídica que mais se adequa à separação de poderes é respeitar a decisão da Câmara para manter a harmonia e independência entre os Poderes.

A compreensão inversa disso leva à subjugação de um poder sobre o outro, uma vez que estabelece a compreensão de que apenas o STF é quem possui a competência última para aplicar e interpretar a constituição. Como ensina o professor Cass R. Sunstein (A constitution of many minds: why the founding documents doesn’t mean what it mean before), todos os atores político-constitucionais possuem a atribuição para estabelecer as melhores decisões constitucionais em momentos de omissão ou de aplicação imprecisa das normas previstas na Constituição. Nenhum poder pode se sobrepor ao outro em momentos de incerteza jurídica quanto à aplicação ou interpretação da norma constitucional.

Raciocinar dessa forma é estimular a autocontenção (self-restraint) dos Poderes. Só com isso será possível obter atingir a teleologia do desenho institucional da separação de poderes. Todo esse raciocínio jurídico fica mais claro a partir do caso do deputado Ramagem (PL/RJ).

Pois, pela descrição da denúncia, existe uma íntima ligação na prática de condutas sucessivas para a configuração final dos crimes de abolição violenta ao Estado democrático de Direito e de tentativa de golpe de Estado. A Procuradoria-Geral da República estabelece que o deputado Ramagem praticou atos subsequentes e encadeados desde 2021 para a prática dos citados delitos, o que culminou no episódio do dia 8 de janeiro de 2023.

A presença de uma lógica desencadeadora de atos sucessivos impõe que as provas sejam produzidas para a apuração integral de todos os crimes interconectados, sob pena de antecipação equivocada de provas de um fato intimamente conexo com outro. Essa antecipação leva, por óbvio, ao esvaziamento prático da Resolução nº 18, de 2025 — e, por consequência, à ineficácia da imunidade formal e à redução da importância da independência e da harmonia entre os Poderes —, pois os fatos serão apreciados em sua totalidade, mesmo que a Câmara dos Deputados tenha decidido que não poderia assim agir o Supremo.

Logo, com todo o respeito, no caso do deputado Ramagem, a Suprema Corte agiu fora dos limites interpretativos esperados para a concretização do princípio da separação de Poderes como mecanismo hermenêutico harmonizador da imunidade formal do artigo 53, § 3º, da Constituição, quando estabeleceu em qual extensão (quais crimes) a Câmara poderia suspender a ação penal e não se autoconteve em respeitar a decisão política expressa na Resolução nº 18, de 2025.



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