

Opinião
Em um mundo cada vez mais globalizado, as relações jurídicas extrapolam fronteiras com uma frequência antes inimaginável. Casamentos entre nacionais e estrangeiros, uniões no exterior entre brasileiros ou divórcios consumados fora do país tornaram-se comuns na vida contemporânea.

Diante disso, surge uma indagação essencial: como o Estado brasileiro deve reagir, juridicamente, às decisões estrangeiras que pretendem produzir efeitos em seu território, especialmente quando envolvem temas sensíveis como o divórcio? A resposta se materializa no instituto da homologação de sentença estrangeira, procedimento indispensável para que decisões judiciais proferidas por tribunais estrangeiros ganhem eficácia jurídica no Brasil.
No caso específico do divórcio, a homologação se torna não apenas uma formalidade técnica, mas um verdadeiro mecanismo de concretização de direitos fundamentais como o direito de constituir nova família, a regularização da partilha de bens e a segurança jurídica das relações familiares.
O órgão responsável por esse juízo de controle no ordenamento brasileiro é o Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme estabelece a Constituição, em seu artigo 105, inciso I, alínea “i” [1].
Desde a Resolução nº 9/2005 [2] do próprio STJ, o procedimento de homologação de sentença estrangeira passou a ser regido por critérios mais objetivos e céleres, embora ainda bastante técnicos. O atual Código de Processo Civil, nos artigos 960 a 965 [3], complementa esse marco normativo ao reforçar os pressupostos necessários para o reconhecimento de efeitos no país.
Ao contrário do que possa parecer, o STJ não exerce um juízo de reexame da matéria decidida no estrangeiro. Trata-se, na realidade, do chamado juízo de delibação, limitado à verificação de aspectos formais e à compatibilidade da sentença estrangeira com a ordem pública brasileira.
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Ou seja, não se questiona se o divórcio foi “justo”, mas se o processo respeitou o contraditório, a ampla defesa, e se há equivalência mínima com os princípios processuais nacionais.
Sobre esse ponto, a doutrina de Carlos Alberto Menezes Direito é clara:
“A homologação não é um segundo julgamento, nem uma nova apreciação do litígio. É um ato de soberania do Estado brasileiro, mediante o qual se concede eficácia interna a uma decisão proferida por um Estado estrangeiro, desde que atendidos os requisitos formais” [4].
Essa compreensão doutrinária é fundamental para evitar o erro comum de imaginar que o STJ funcione como uma “segunda instância” internacional. Nada mais distante da realidade: o tribunal atua como guardião da soberania e da coerência normativa do sistema jurídico brasileiro, mas sem interferir no mérito da decisão estrangeira.
A homologação de divórcio estrangeiro impacta diretamente a vida de cidadãos brasileiros que, por qualquer razão, de mudança de país, casamento com estrangeiro, ou fixação de residência fora do Brasil, tiveram sua relação dissolvida no exterior.
Sem o reconhecimento formal dessa sentença pelo STJ, o divórcio não produz efeitos no Brasil, impedindo, por exemplo, um novo casamento civil, bloqueando a partilha de bens e mantendo registros civis desatualizados, o que pode gerar conflitos jurídicos e administrativos de difícil resolução.
É importante lembrar que nem sempre a sentença de divórcio virá com todos os elementos exigidos pelo ordenamento brasileiro. Em especial, quando houver omissão quanto à partilha de bens, questões relativas à guarda de filhos ou à pensão, será necessário discutir esses temas separadamente no Brasil, mesmo após a homologação. A sentença estrangeira, nesses casos, será válida apenas quanto ao status de divorciado.
A atuação de um advogado especializado se mostra indispensável não só para orientar sobre os documentos exigidos, como também para evitar nulidades ou indeferimentos por aspectos técnicos como ausência de legalização consular, falta de tradução juramentada ou inexistência de citação válida da outra parte. A jurisprudência do STJ é rigorosa quanto ao respeito às formalidades legais e à observância do contraditório.
Exemplo disso é uma decisão recente do próprio STJ, de fevereiro de 2025, que homologou uma sentença do Tribunal Ordinário de Milão, na Itália, que tratava da dissolução do casamento, guarda da filha menor e pensão alimentícia. O caso foi contestado pelo pai brasileiro, mas a Corte Especial reafirmou que “a homologação de decisão estrangeira é ato meramente formal”, conforme destacou o relator, ministro Raul Araújo [5].
Essa decisão deixa claro que o tribunal atua com segurança jurídica e respeito aos limites institucionais, sem reavaliar o conteúdo da sentença estrangeira, desde que respeitados os requisitos legais.
O procedimento de homologação não é, portanto, mero protocolo. Trata-se de uma instância técnica e estratégica, cujos resultados têm consequências jurídicas profundas. Exige conhecimento do Direito Internacional Privado, do processo civil e dos entendimentos consolidados do STJ. É nesse ponto que a advocacia especializada e a doutrina se encontram.
Como bem assinala Gustavo Tepedino, ao tratar do tema da eficácia de decisões estrangeiras:
“O processo de reconhecimento no plano interno de sentenças estrangeiras constitui um instrumento de equilíbrio entre a necessidade de respeitar a soberania nacional e o imperativo de garantir segurança jurídica às relações jurídicas transnacionais” [6].
Não se trata, portanto, apenas de cumprir uma exigência burocrática, mas de viabilizar a convivência entre sistemas jurídicos diversos em um mundo marcado pela mobilidade, pelo pluralismo e pelas relações transfronteiriças. O papel do STJ é exatamente o de zelar para que essa convivência se dê com equilíbrio, sem abdicar dos valores constitucionais que regem o ordenamento brasileiro.
É neste contexto que a homologação de divórcio estrangeiro revela sua real natureza: um ato de mediação entre diferentes sistemas jurídicos, capaz de respeitar a soberania nacional sem ignorar a complexidade das relações familiares no plano internacional. A decisão de homologar não é uma chancela automática, mas também não pode ser uma barreira arbitrária que desconsidera os vínculos jurídicos já consolidados fora do país.
Nesse ponto, cabe ao Estado brasileiro reafirmar seu compromisso com os direitos fundamentais da dignidade humana, da liberdade e da autonomia familiar, especialmente quando exercidos por seus cidadãos em outros territórios. A resistência injustificada à homologação de decisões legítimas e processualmente regulares constitui uma afronta à própria ideia de justiça globalizada e funcional.
Finalizamos, portanto, com a convicção de que a homologação de divórcio estrangeiro não é uma ameaça à soberania nacional, mas sim uma expressão da maturidade institucional do Estado brasileiro diante dos desafios jurídicos do século 21. Reconhecer, validar e respeitar o que foi legitimamente decidido por outros países é, em última análise, respeitar os próprios brasileiros que ali constituíram suas vidas, suas famílias e suas histórias.
Entendimento do autor
Pela vivência prática com demandas envolvendo homologação de divórcios estrangeiros, é de se concluir que esse procedimento vai muito além de uma exigência burocrática. Ele representa, na verdade, o ponto de encontro entre o Direito e a realidade de pessoas que reconstruíram suas vidas fora do Brasil e precisam, aqui, do respaldo jurídico para seguir a vida. É uma medida de justiça, de respeito à liberdade individual e ao direito de recomeçar.
Assim, o papel do STJ nesse tipo de processo deve ser técnico e responsável, mas nunca insensível. O juízo de delibação não existe para refazer o julgamento estrangeiro, mas para garantir que o básico do devido processo legal tenha sido respeitado. Isso exige equilíbrio: proteger a ordem pública brasileira sem transformar o tribunal em um filtro ideológico ou moralista diante de decisões legitimamente tomadas no exterior.
Com base na experiência, fica evidente que negar a homologação de forma infundada é fechar os olhos para a vida real. Famílias, patrimônios e projetos de futuro não podem ficar presos à insegurança jurídica. Por isso, a homologação é um instrumento que reafirma a maturidade institucional do Brasil, um país que respeita sua soberania, sim, mas também valoriza o cidadão que vive, ama e decide além das fronteiras.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível aqui. Acesso em: 3 jun. 2025.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível aqui.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Resolução nº 9, de 4 de maio de 2005. Dispõe sobre o processamento de homologação de sentença estrangeira e de concessão de exequatur a carta rogatória. Diário da Justiça, Brasília, DF, 5 maio 2005. Disponível em: Acesso em: 3 jun. 2025.
DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Homologação de sentenças estrangeiras e a soberania nacional. In: MENEZES DIREITO, Carlos Alberto. Ensaios de direito internacional privado. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 85-102.
TEPEDINO, Gustavo. Segurança jurídica e reconhecimento de sentenças estrangeiras. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Temas de direito civil: estudos em homenagem a Caio Mário da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 233-247.
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 105, I, “i”.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Resolução nº 9, de 4 de maio de 2005.
[3] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Arts. 960 a 965.
[4] DIREITO, Carlos Alberto Menezes. Ensaios de direito internacional privado. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 90.
[5] STJ. Corte Especial. Sentença Estrangeira Contestada nº 6.793 – IT. Rel. Min. Raul Araújo. Julgado em 21 fev. 2025.
[6] TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil: estudos em homenagem a Caio Mário da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 237.