Quinze anos da Lei da Ficha Limpa e nem sinal do omelete


Direito Eleitoral

A despeito do juramento de Hipócrates, o Dr. Osmundo, veterinário lá nos campos de Lages, deixou falecer a vaca premiada de seu cunhado, por vingança, mercê de uma dívida de jogo. Desgostoso com um amor não correspondido, Jonas alternava suas ausências do fastio diário da vida na repartição com a presença ébria e alegre na mesinha de sua sala, cuja primeira gaveta escondia uma garrafa de licor. Os militares Cecília e Afonso, voluptuosamente abraçados, foram surpreendidos se beijando no quartel, inúmeras vezes.

O Dr. Osmundo teve cassado o seu exercício profissional (artigo 17, Decreto nº 44.045/58). Jonas foi demitido pelo cometimento de falta grave pela inassiduidade habitual e conduta escandalosa na repartição (artigo 132, III e V, Lei n. 8.112/90). Os amantes flagrados, ao ferirem o pundonor militar, foram condenados pela prática de vários atos libidinosos (artigo 235, Código Penal Militar), excluídos da Força e considerados indignos do oficialato (artigo 120, inciso I, Lei nº 6.880/80).

Todos os nossos heróis cometeram condutas que podem ser consideradas infrações à famigerada Lei da Ficha Limpa (LFL), cuja consequência é inelegibilidade por oito anos: proíbe-se o sujeito de ser candidato e veda-se que as pessoas votem nele em uma restrição absoluta do exercício da soberania popular, este último aspecto sempre esquecido no debate.

O leitor atento deve estar se perguntando a relação dessas condutas com a administração pública ou com a normalidade do pleito e porque essas pessoas ficariam inelegíveis por oito anos. A verdade é que ninguém sabe.

No afã de melhorar a democracia por decreto marcial, uma monstruosidade foi criada com a mais pura intenção de melhorar a qualidade dos candidatos pela imposição de filtros morais acerca de condutas passadas para garantir a pureza futura de atuação dos eleitos.

Os ovos precisam ser quebrados para fazer um omelete e a LFL importava em salvar a democracia e o país dos candidatos maculados pelo passado. Até a redenção católica a LFL afastou. A quebradeira foi parida com pressa para salvar a pátria e veio a famigerada LFL que representa a maior violência contra os direitos políticos desde o AI-5.

As urgências legislativas raramente trazem boas novidades e o novo Código Eleitoral que já nasce velho vai pelo mesmo caminho.

Os jabutis e consequências passaram desapercebidos ou simplesmente ignorados.

A LFL trouxe um modelo de inelegibilidade da ditadura militar inaugurado pela EC 4/94 que traiu a fundamentalidade dos direitos políticos da redação original da Constituição com uma compreensão equivocada da democracia [1].

Ao longo dos 15 anos da famigerada LFL escrevi livros e artigos [2] e hoje só me resta a blague e a insistência do grave prejuízo desse diploma legal ao próprio funcionamento do regime democrático.

Em primeiro lugar, o Direito Eleitoral não é instrumento de combate à corrupção. O Direito Eleitoral é ramo do Direito que visa possibilitar a transmissão do poder, a preservação dos direitos políticos, pela realização de eleições livres e justas. A definição ou a melhoria da qualidade dos eleitos é tarefa precípua do eleitor. Não cabe ao Estado ou ao legislador apor filtros morais para o universo dos candidatos, ao argumento de que pretende combater isso ou aquilo, porque a história demonstra que a criação de inelegibilidades sempre serviu para a perseguição de minorias como no caso Hunter vs. Underwood [3] e de desafetos do poder da ocasião como Deltan Dallagnol [4].

Essa é uma lição universal que rege as democracias maduras no mundo e é acolhida pelos tratados internacionais de direitos humanos [5].

Visão aristocrática

Noutra dimensão, quando o Estado escolhe o universo dos candidatos, há uma infantilização do eleitor, tutelado e protegido para melhor fazer suas escolhas com a imensa perda da experiência advinda do processo de eleição dos seus preferidos. No fundo, há um medo do povo considerado incapaz de escolher e carente de parâmetros para uma escolha adequada e pura.

Convive-se, desde essa famigerada lei, com uma grave violação do direito de votar e de escolha dos cidadãos, tolhidos de fazer valer suas opções — por piores que pareçam a quem quer que seja.

Ora, essa é uma visão profundamente aristocrática, pois a democracia é o regime do domínio do povo e não dos candidatos cândidos.

A história recente da legislação e da jurisprudência eleitoral se firma na mitigação dos direitos políticos: menos propaganda, mais inelegibilidades, menos meios de propaganda, menos meios de financiamento da política. E agora avança sobre a liberdade de expressão para a proteção da democracia em níveis alarmantes de intervenção e intensidade com a imposição do silenciamento digital absoluto dos seus alvos [6].

O direito eleitoral passa a girar, portanto, em torno da ideia da periculosidade do homem político – uma espécie de um direito eleitoral do inimigo, uma criminalização da política para o combate da corrupção e agora para o combate à desinformação e/ou defesa da democracia. Tudo isso sobre o corpo concreto dos candidatos e realizado pela via judicial.

A fundamentalidade dos direitos políticos, a reverência à soberania popular e a própria função da Justiça Eleitoral perdem o seu significado nessas “lutas”…

Nas eleições de 2020, 23.864 candidatos foram considerados “inaptos”, sendo a Ficha Limpa responsável pelo indeferimento de 2.354 candidaturas ou 12.97%.  Nas eleições majoritárias de 2018 foram 168 (6,52%) candidatos a presidente, governador, senador e deputados afastados do pleito.  Nas eleições de 2.016, os “inaptos” pela Lei das Inelegibilidades chegaram a 2.116 (11,09%) [7] pessoas.

Não há democracia no mundo que casse/indefira o registro de tantos candidatos. Cassamos mais candidatos em cada eleição que em toda a ditadura militar. Foram 168 deputados foram cassados de 1964 a 1985 [8].

O pior é que não tem funcionado. O Brasil, segundo dados da Transparência Internacional, mantém o pior patamar da série histórica do índice de percepção da corrupção [9]: “Em 2024, o Brasil registrou 34 pontos e a 107ª posição, entre 180 países, no Índice de Percepção da Corrupção. Estas são a pior nota e a pior colocação do país na série histórica do índice, iniciada em 2012. O resultado de 2024 significa uma queda de dois pontos e três posições em relação ao ano anterior. E de nove pontos e 38 posições em comparação com as melhores pontuações do país na série histórica — em 2012 e, novamente, em 2014”.

O Poder Legislativo, acuado, vê a soberania popular ser negada, votos e candidatos cassados com receio de não se aliar ao “combate à corrupção”, ao mesmo tempo que se beneficia do “terceiro turno” judicial em que grande parte da soberania é moldada em acórdãos dos tribunais.

Por outro lado, vê-se a exorbitância das atribuições do Poder Judiciário eleitoral, um aceno para a autocracia judicial [10], a partir do TSE e STF, armando-se para o combate à corrupção, dentre outras pautas, e se convertendo em atores do jogo político-partidário. Mira-se hoje o rompimento da autonomia dos subsistemas do Direito e da Política com a politização do Poder Judiciário e judicialização do fenômeno político, o que parece tem sido a tônica na América Latina [11].

A LFL tornou-se, sem razão de ser, uma vaca sagrada e perversa mugindo contra a soberania popular e influenciando a produção normativa e a jurisprudência — cada vez mais retrocessivas na lida dos direitos políticos fundamentais.

Como lembra Isaiah Berlin: “A única coisa da qual podemos ter certeza é a realidade do sacrifício, dos moribundos e dos mortos. Mas o ideal pelo qual eles morrem permanece irrealizado. Os ovos são quebrados, e o hábito de quebrá-los cresce, mas a omelete permanece invisível”.

Os ovos continuando sendo quebrantados pela famigerada LFL sem que se apresente o imaginário omelete senão o sacrifício inútil e a morte dos direitos políticos fundamentais ao longo desses 15 anos…

 


[1] Emenda Constitucional 4/94 trouxe a ideia da “moralidade para exercício do cargo” e a “vida pregressa” direto da Constituição de 1967 para alterar a CF/88. A “moralidade para o exercício do cargo” foi inserida pela Emenda Constitucional n. 8, de 14 de abril de 1977, promulgada pelo Pres. Geisel no chamado “Pacote de Abril” para manipular as eleições de 1978 e impedir a ascensão do MDB no Congresso Nacional, dentre outras diatribes como a eleição indireta de governadores, senadores biônicos, sublegenda e a divisão do Estado do Mato Grosso. Curiosamente, no dia do anúncio do Pacote, o Conselho Federal da OAB elegeu Raymundo Faoro, para quem a diminuição do quórum das emendas constitucionais deixava uma “porta entreaberta”, como lembrado por Gaspari. GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo : Companhia das Letras, 2004, p. 367.

[2] O “código (de)Lira” e a “’emenda Moro”: a criminalização dos juízes e promotores. Disponível aqui/; A detração, a condenação criminal e a Lei da Ficha Limpa — a ADI 6.630 Disponível aqui; Ficha Lima e o Caso Petro Urrego: o controle de convencionalidade das inelegibilidades Disponível aqui; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. “Direito Eleitoral do Inimigo” aqui; FARIA, Fernando de Castro; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. “Garantismo Eleitoral”. Empório do Direito. Florianópolis, 29 de maio de 2015. Disponível aqui; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino; MEZZAROBA, Orides. A Lei da Ficha Limpa: o Cavalo de Troia do protagonismo do Poder Judiciário. Revista dos Tribunais [Recurso Eletrônico]. São Paulo, nº 974, dez. 2016; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira. O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: direitos políticos e inelegibilidade. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2019, 3ª edição.

[3] Neste caso concreto foi reconhecida a inelegibilidade pela apresentação de um cheque sem fundos por Appellees Carmen Edwards (negro) e Victor Underwood (branco). No julgamento restou comprovado que a assembleia constituinte estadual visara a supremacia branca pelo afastamento da elegibilidade de negros, mais suscetíveis aquelas condutas. Disponível aqui

[4] A propósito, expliquei o caso em artigo aqui: Disponível aqui.

[5]  As limitações à elegibilidades são raras tanto na Comissão de Veneza e em seu Código de Boas Práticas em Temas Eleitorais (2002), e que rege as restrições aos direitos políticos possíveis de serem impostas aos cidadãos europeus, como em face da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (art. 23) diploma com incidência normativa no Brasil.

[6] É evidente que a democracia precisa enfrentar seus inimigos e que a desinformação turba a normalidade do pleito, mas deve prevalecer uma metodologia própria da restrição dos direitos fundamentais e os parâmetros, por exemplo, da Corte Interamericana (Opinião Consultiva n.5, Caso Rios e outros v. Venezuela, Herrera Ulloa v. Costa Rica, A Última Tentação de Cristo v. Chile”, Ricardo Canese v. Paraguai e Gomes Lund e outros v. Brasil): 1. proibição da censura prévia, exceção espetáculos públicos para proteção da infância; 2. critérios para responsabilidade ulterior (2.1. previsão em lei; 2.2 deve ter um fim legítimo; 2.3. necessidade em uma sociedade democrática); 3. proibição de restrições indiretas.

[7] Disponível aqui

[8] (Link para a reportagem aqui © 2025 |

[9] Disponível aqui

[10] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial: o caso brasileiro no divã. Florianópolis: Habitus. 2020.

[11] Petro Urrego na Colômbia, Lopes Mendonza na Venezuela, a recente inabilitação política de mais 5 opositores do regime ditatorial de Nicolás Maduro (El Hatillo, Elías Sayegh, José Fernandes Lopez, Tomas Guanipa, Carlos Ocariz e Juan Carlos Caldera), o ex-Presidente do Equador, Rafael Correa exilado na Bélgica; a prisão dos sete pré-candidatos presidenciais à sucessão de Daniel Ortega na Nicarágua; todos os ex-presidentes vivos do Peru estão ou estiveram presos, perseguidos ou condenados pelo Poder Judiciário (Alberto Fujimori, Alejandro Toledo, Alan García, Ollanta Humala, Pedro Pablo Kuczynski y Pedro Castillo) – são todos exemplos dos problemas advindos da atuação judicial sobre o fenômeno político.



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