PEC do Calote ataca credibilidade do sistema


Opinião

Longe de ser uma mera formalidade administrativa, o precatório judicial representa, na arquitetura constitucional brasileira, um sofisticado mecanismo de equilíbrio. Sua função primordial é harmonizar a imperatividade das decisões judiciais com a necessária estabilidade financeira do Estado, sempre sob a égide da separação dos Poderes.

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A Constituição de 1988, em seu artigo 100, não apenas instituiu um rito ordenado para a quitação dos débitos da Fazenda Pública, mas também consagrou a submissão do poder público à autoridade da coisa julgada, exigindo a previsão orçamentária para saldar essas obrigações. Essa vinculação orçamentária é a manifestação concreta do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (artigo 5º, XXXV, Constituição), transformando a sentença definitiva em um comando inafastável para o gestor público.

A previsibilidade — a clareza sobre o montante, o prazo e o destinatário do pagamento — constitui a espinha dorsal desse sistema. Qualquer ruptura nessa cadeia de certeza, seja por meio de moratórias, parcelamentos ou subterfúgios legislativos, não configura apenas uma falha de gestão orçamentária, mas sim um esvaziamento do próprio direito material reconhecido pela Justiça. Nesse sentido, a saúde do regime de precatórios funciona como um termômetro da seriedade com que o Estado encara suas próprias obrigações e a força normativa da Constituição.

Erosão progressiva: da exceção à regra do inadimplemento

A integridade do sistema desenhado em 1988 começou a ser minada ainda nos anos 2000, com a EC nº 30, que introduziu a possibilidade de parcelamento. Contudo, foi a EC nº 62/2009 que representou a grande virada, ao instituir um “regime especial” que permitia aos entes federados em mora parcelar suas dívidas judiciais por até 15 anos. Sob o pretexto de solucionar um passivo histórico, essa emenda acabou por normalizar o descumprimento das ordens judiciais, tratando-o como ferramenta de gestão fiscal.

O Supremo Tribunal Federal, ciente da gravidade da situação, interveio por meio das ADIs 4.357 e 4.425, declarando inconstitucionais diversos aspectos desse regime especial. A Corte, nas palavras dos ministros Ayres Britto e Luiz Fux, reconheceu a afronta a princípios basilares como a separação dos Poderes, a segurança jurídica, o devido processo legal e a razoável duração do processo, sublinhando a natureza singular da dívida judicial como corolário da autoridade do Judiciário [1, 2].

A resposta do Legislativo, entretanto, não foi a de restaurar a sistemática original, mas sim a de buscar alternativas para perpetuar a flexibilização. As ECs nº 94/2016 e 99/2017 não apenas recriaram mecanismos do regime especial, mas também estenderam seus prazos (até 2024), consolidando uma cultura de postergação e transformando o adimplemento de sentenças em moeda de troca política, distanciando-se cada vez mais da intenção constituinte originária.

Aperto de 2021: teto, prazos e complexa realidade dos regimes

O cenário se agravou em 2021. A EC nº 109 estendeu novamente o prazo do regime especial, agora até 2029. Pouco depois, a EC nº 114/2021 impôs um teto de pagamentos para a União (válido até 2026, conforme artigo 107-A do ADCT) e, crucialmente, antecipou a data limite para a apresentação de precatórios a serem incluídos no orçamento seguinte, passando de 1º de julho para 2 de abril (artigo 100, §5º, Constituição). Essa alteração, justificada pela necessidade de alinhamento ao teto de gastos, possui implicações distintas dependendo do regime aplicável ao ente devedor.

Spacca

Para os entes que seguem o regime geral (adimplentes), a apresentação até 2 de abril assegura, em tese, o pagamento até o final do exercício subsequente. Contudo, para aqueles submetidos ao regime especial do artigo 101 do ADCT (diversos estados e municípios), a realidade é outra. O pagamento se dá por meio de repasses mensais calculados sobre a receita corrente líquida, e a inscrição até 2 de abril apenas garante um lugar na fila cronológica, sem assegurar o pagamento integral no prazo ordinário.

Essa dualidade de regimes, somada à mudança da data de corte, acentua a incerteza para os credores e demonstra como a engenharia fiscal pode operar para diluir obrigações constitucionais. A crítica de Ravi Peixoto sobre o uso do “espaço fiscal” gerado pelo teto da União para financiar outras despesas ilustra bem essa instrumentalização [3].

PEC 66/2023: risco da constitucionalização do default

Se as reformas anteriores representaram flexibilizações crescentes, a Proposta de Emenda Constitucional nº 66/2023 sinaliza um passo além: a possível inscrição do próprio inadimplemento como regra permanente na Constituição, ao menos para os municípios. Apelidada de “nova PEC do calote”, a proposta visa limitar o pagamento anual de precatórios municipais a percentuais da receita corrente líquida, criando uma escala onde entes mais endividados teriam prazos ainda mais longos para quitar seus débitos [4].

Essa lógica inverte o princípio da responsabilidade: a mora contumaz seria premiada com prazos mais elásticos. O precatório deixaria de ser um título representativo de um crédito judicialmente reconhecido para se tornar um ativo de baixa liquidez, sujeito às flutuações da arrecadação e à vontade política do gestor. A proposta ataca frontalmente a sistemática do artigo 100, §5º (pagamento no exercício seguinte) e a própria ordem cronológica, além de introduzir uma perigosa discricionariedade ao permitir que o gestor pague apenas o piso estabelecido, mesmo havendo recursos.

O que se pretende com a PEC 66 não é mais gerir uma situação excepcional de crise, mas sim normalizar a postergação do pagamento como ferramenta ordinária de administração fiscal. É a consolidação de um “Estado Orçamentário” que se sobrepõe ao Estado de direito, onde a força da coisa julgada cede espaço à conveniência contábil.

Impacto sistêmico: desconfiança na palavra da Justiça

A autoridade do Poder Judiciário se sustenta na crença coletiva de que suas decisões serão, ao final, cumpridas. O descumprimento sistemático das condenações impostas ao próprio Estado, ainda que amparado por sucessivas alterações constitucionais, abala profundamente essa confiança. A mensagem transmitida ao cidadão é corrosiva: ter o direito reconhecido em Juízo pode não significar sua efetiva realização.

A inadimplência estatal institucionalizada, como ameaça a PEC 66/2023, não afeta apenas os credores diretos; ela contamina a percepção social sobre a própria utilidade da Justiça. O enfraquecimento do Judiciário como poder capaz de impor suas decisões ao Estado fragiliza o pacto democrático. A situação é particularmente grave em relação aos precatórios de natureza alimentar, cuja demora no pagamento representa, na prática, a negação de direitos essenciais ligados à dignidade humana e à subsistência, violando também a garantia da duração razoável do processo.

Essa normalização do inadimplemento representa uma perigosa inversão: a Constituição, que deveria garantir a execução das sentenças, passa a ser utilizada para legitimar seu descumprimento, privilegiando a gestão fiscal em detrimento da autoridade judicial.

Defender o cumprimento é defender a democracia

O projeto constitucional de 1988 visava a garantir a supremacia da Constituição e a efetividade dos direitos, inclusive por meio da submissão do Estado às decisões judiciais. O regime de precatórios foi concebido como peça central dessa engrenagem. A trajetória recente, no entanto, revela um desvio alarmante desse propósito original, transformando o dever de pagar em uma variável ajustável às necessidades fiscais.

Reconhecer as dificuldades financeiras dos entes públicos é necessário, mas não pode servir de justificativa para desmontar a estrutura de garantias que sustenta a autoridade das decisões judiciais. A crise fiscal não revoga a Constituição nem a força da coisa julgada. A moralidade administrativa, como lembrou o ministro Luiz Fux, não é mera sugestão ética, mas um princípio vinculante [5].

A eventual aprovação da PEC 66/2023 seria a pá de cal sobre a credibilidade do sistema, consolidando a desconfiança na capacidade do Estado de honrar suas próprias dívidas judiciais. A defesa intransigente do cumprimento das decisões judiciais transcende o interesse dos credores; é, em essência, a defesa do próprio Estado democrático de direito. Sem uma jurisdição efetiva, cujas sentenças possuam força vinculante real sobre todos, inclusive o Estado, a promessa constitucional de Justiça torna-se letra morta.

Resistir a essa tendência de fragilização é um imperativo jurídico, político e cívico. É preciso reafirmar que o precatório simboliza um direito concretizado pela Justiça, e sua satisfação tempestiva é condição indispensável para a vitalidade da nossa democracia.

 


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.425/DF. Relator: Min. Ayres Britto. Relator p/ Acórdão: Min. Luiz Fux. Julgado em 14 mar. 2013. DJe, 19 dez. 2013.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.357/DF. Relator: Min. Ayres Britto. Relator p/ Acórdão: Min. Luiz Fux. Julgado em 14 mar. 2013. DJe, 26 set. 2014.

[3] PEIXOTO, Ravi. A inconstitucionalidade do teto de precatórios da União. Consultor Jurídico, 23 nov. 2023. Disponível aqui.

[4] BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2023. Altera o art. 100 da Constituição Federal, para estabelecer limites percentuais da receita corrente líquida para pagamento de precatórios pelos Municípios. (Verificar status e link atualizado da tramitação).

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.425/DF. Relator: Min. Luiz Fux. Julgado em 25 mar. 2015. DJe, 4 ago. 2015.


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