O que é o prazo de cura nas concessões

Quem milita no setor de concessões comumente se depara com cláusulas como as seguintes:

35.1. Somente será caracterizado o inadimplemento da CONCESSIONÁRIA para todos os fins previstos neste CONTRATO, se tal descumprimento não for inteiramente sanado ou não tiverem sido adotados todos os atos voltados ao seu equacionamento no prazo de 15 (quinze) dias contados do inequívoco conhecimento do descumprimento pela CONCESSIONÁRIA.

35.1.1 O prazo de 15 (quinze) dias poderá ser prorrogado por igual período mediante pedido justificado da CONCESSIONÁRIA, permitindo-se ainda concessão de prazo adicional para correção das irregularidades a ser estipulado a critério do PODER CONCEDENTE.”

Tais tipos de cláusula decorrem da expressa dicção da Lei de Concessões (Lei nº 8.987/1995) que em seu artigo 38, § 3º estabelece que “não será instaurado processo administrativo de inadimplência antes de comunicados à concessionária, detalhadamente, os descumprimentos contratuais referidos no § 1º deste artigo, dando-lhe um prazo para corrigir as falhas e transgressões apontadas e para o enquadramento, nos termos contratuais”.

Aludido dispositivo legal estabelece o chamado “período” ou “prazo de cura” nas concessões, instituto esse que, segundo André Saddy, Matheus Alves Moreira da Silva e Ketlyn Gonçalves Fernandes [1] é, inclusive, uma prerrogativa do concessionário:

A Lei nº 8.987/1995, em seu artigo 38, §3º, prevê que, antes da instauração de processo administrativo de inadimplência, a Administração Pública deve comunicar ao concessionário detalhadamente os descumprimentos contratuais, dando-lhe o ‘prazo de cura’. Trata-se de uma prerrogativa do concessionário e uma concretização do direito de ampla defesa, além de revelar a consensualidade na ação administrativa, inclusive, em matéria sancionatória (…).”

Para Luís Roberto Barroso [2], a lógica de tal dispositivo grifado é bastante intuitiva, visto que “os contratos de concessão são, em geral, complexos, de longa duração e frequentemente demandam do concessionário grandes investimentos iniciais, que serão amortizados ao longo do tempo. A rescisão ou a caducidade, além do risco de paralisação da prestação do serviço e da necessidade de realizar-se nova licitação, poderá impor ao poder concedente o dever de indenizar a concessionária pelos investimentos realizados. Nesse contexto, parece evidente que, sendo possível a correção de eventuais irregularidades, a manutenção do ajuste atenderá melhor ao interesse PÚBLICO”.

Observância do período/prazo de cura como condição prévia de validade para a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais

Considerando que o caput do artigo 38 da Lei de Concessões dispõe que a inexecução total ou parcial do contrato acarretará, a critério do poder concedente, a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais, fica claro que o processo administrativo de inadimplência mencionado no § 3º do mesmo artigo 38 (e que só será instaurado após a concessionária ser detalhadamente comunicada dos descumprimentos contratuais e lhe ser deferido um prazo para corrigir as falhas e transgressões apontadas) abrange a declaração de caducidade como a aplicação de sanções contratuais.

Ou seja, a observância do período/prazo de cura é uma condição prévia de validade para a instauração do processo administrativo de inadimplência quer ele tenha por objeto a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação de sanções contratuais (na prática, muitas vezes, o poder concedente instaura um processo administrativo que, a depender da instrução, pode redundar na aplicação de sanções contratuais e/ou na declaração de caducidade.

Spacca

Citando Rafael Carvalho Rezende Oliveira, Egon Bockmann Moreira [3] explica que, num geral, o artigo 38 da Lei de Concessões “abre duas alternativas diante da inexecução contratual: ela ‘acarretará, a critério do poder concedente, a declaração da caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais’. A depender das circunstâncias factuais, e em prestígio à continuidade do serviço público e à proporcionalidade, o concedente poderá optar pela aplicação da sanção administrativa ao invés de decretar a caducidade. Por isso que, como anota Rafael Carvalho Rezende Oliveira, mesmo antes ‘da instauração do processo de verificação da inadimplência, o poder concedente fixará prazo (‘prazo de cura’) para que a concessionária corrija as supostas falhas e descumprimentos contratuais’. Tal período vem expresso no §3º do mencionado art. 38 da Lei nº 8.987/1995, de obediência cogente, eis que é condição de validade do processo”.

Ou seja, o autor paranaense entende que a observância do período/prazo de cura é uma condição prévia de validade para a declaração de caducidade da concessão ou a aplicação das sanções contratuais.

E, muito embora seja um tema árido no âmbito do Judiciário, diga-se que, no REsp nº 1.987.546/PR, o STJ corroborou entendimento do TJ-PR no sentido de que a rescisão do contrato de concessão somente pode ocorrer por meio de ação judicial intentada pela concessionária do serviço público.

No caso prático, o MP-PR pleiteava, com base na Lei nº 8.666/1993, a rescisão contratual de um contrato de concessão, tendo sido tal pleito negado, dentre outros argumentos, em razão do fato de que “não pode ser declarada a caducidade da concessão por inexecução do contrato sem o atendimento dos requisitos legais previstos para essa medida, mormente no que se refere à prévia notificação da concessionária e ao exercício da ampla defesa em processo administrativo, conforme determina o art. 38 da Lei 8.987/95, especialmente em seu § 2º (‘A declaração da caducidade da concessão deverá ser precedida da verificação da inadimplência da concessionária em processo administrativo, assegurado o direito de ampla defesa’) e § 3º (‘Não será instaurado processo administrativo de inadimplência antes de comunicados à concessionária, detalhadamente, os descumprimentos contratuais referidos no § 1º deste artigo, dando-lhe um prazo para corrigir as falhas e transgressões apontadas e para o enquadramento, nos termos contratuais’), cujo iter deixou de ser observado na espécie”.

Ou seja, mesmo que de forma diagonal, o STJ também apontou para a necessária observância do período/prazo de cura como uma condição prévia de validade para a declaração de caducidade da concessão.

E qual o prazo do período de cura?

Quanto ao prazo a ser conferido ao concessionário, mais uma vez nos socorremos à doutrina, desta feita, fazendo remissão às lições de Renata Rocha Villela [4], que, ao comentar o artigo 38, § 3º da Lei de Concessões, afirmou que “embora o dispositivo não desça a minúcias, é inegável que o prazo para o saneamento deve ser minimamente adequado e exequível, de modo a permitir que as falhas de fato sejam corrigidas”. “Há autores, como Marçal Justen Filho, que defendem que a concessão do prazo de cura é dispensável quando for inviável sanear as transgressões em um prazo razoável [2]. Seja como for, caso se opte pela conferência do prazo, não se pode admitir que este seja incompatível com a natureza do inadimplemento, sob pena de configurar mera aparência de cumprimento do ditame legal.

Veja, na prática, não existe a fixação de um prazo de período de cura legal, existindo apenas a fixação do prazo de período de cura em caráter contratual.

Assim, em que pese ser um prazo fixado no contrato, o período de cura precisa respeitar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Identificado na prática um prazo desarrazoado e desproporcional, recomenda-se, de pronto, que tal condição já seja tratada em sede de impugnação ao edital do certame.

Seria possível afastar a observância do prazo do período de cura?

Em caso de risco iminente, o poder concedente poderia, motivadamente, com base, por exemplo, no artigo 45 da Lei Federal nº 9.784/1999 (mormente replicado em leis locais equivalentes), adotar providências acauteladoras sem a prévia manifestação da concessionária e assim afastar a observância do prazo do período de cura?

Diante da verdadeira “condição de procedibilidade” prevista no artigo 38, § 3º da Lei de Concessões, socorrer-se o poder concedente do poder geral de cautela extraído das leis gerais de processo administrativo é uma medida que esbarra no comando claramente mandatório do dispositivo em foco que, por seu turno, afirma categoricamente que “não será instaurado processo administrativo de inadimplência” antes da concessão do período de cura.

Conclusão

Assim, podemos sumarizar nossas considerações propondo o seguinte axioma: por força do artigo 38, § 3º da Lei de Concessões, a aplicação de penalidades contratuais e/ou a declaração de caducidade da concessão, sob pena de nulidade, precisa ser precedida da concessão de um período de cura (fixado em prazo razoável) por parte do poder concedente para que a concessionária corrija as falhas e transgressões apontadas.

 


[1] Saddy, André; Silva, Matheus Alves Moreira da, e Fernandes, Ketlyn Gonçalves, Processo de Relicitação segundo a Lei nº 13.448/2017: Principais desafios jurídicos na implementação do instituto, Novas leis: promessas de um futuro melhor? Livro do XXXVI Congresso Brasileiro de Direito Administrativo / Maurício Zockun, Emerson Gabardo (coord.), Belo Horizonte: Fórum, 2023, págs. 286/287.

[2] Barroso, Luís Roberto, Tribunal de Contas do Município. Inobservância do devido processo legal e interpretação inadequada da legislação sobre concessões, Revista de Direito Administrativo – RDA, Belo Horizonte: Fórum, ano 2010, n. 254, maio/ago. 2010.

[3] Moreira, Egon Bockmann, Direito das concessões de serviço público: (concessões, parcerias, permissões e autorizações), 2ª. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, pág. 421.

[4] Villela, Renata Rocha, A extinção dos contratos de concessão por caducidade, Conjur, 24.04.2020. Disponível aqui.



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