Aplicação da Lei Magnitsky, dos EUA, às autoridades brasileiras


Tem ocorrido recente interesse no Brasil a respeito da Global Magnitsky Human Rights Accountability Act, ou Lei Magnitsky. O tema fervilha nas últimas semanas, logo após a imprensa noticiar possíveis sanções a autoridades brasileiras. É preciso, todavia, notar que a aplicação quanto a pessoas residentes no Brasil não é sequer uma cogitação “nova”. Alexandre Vuckovic [1], em 2020, publicou artigo sobre como uma lei dos Estados Unidos poderia alcançar os “intocáveis” no Brasil.

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Agora o tema ressurge, e precisa ser avaliado sem as paixões políticas, e os wishful thinking de quem tenta tornar simplório um debate complexo. Com todo o respeito ao senhor ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira [2], sua recente manifestação, em reunião da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, parece mais ser um desejo do que um fundamento válido. Ele teria declarado que a lei americana não se aplica ao Brasil.

Vejamos se a coisa é tão simples assim, se ao enfiar a cabeça num buraco tipo um avestruz, a coisa toda estaria resolvida. Ou se argumentos meramente semânticos, mas despidos de racionalidade, seriam suficientes para evitar a imposição de sanções contra pessoas naturais ou entidades brasileiras.

Sínteses de casos de aplicação da lei

Na referida Lei Magnitsky há uma autorização de imposição de diversas e severas sanções pelos Estados Unidos. Em geral, o presidente americano pode impor as sanções descritas na legislação com relação a qualquer pessoa (física ou jurídica) estrangeira que o presidente determinar que tenha praticado, com base em evidências confiáveis, violações de direitos descritas na legislação. Por exemplo, violações de direitos humanos como grupos de extermínio, torturas, ou atividades ilegais realizadas por funcionários do governo.

Ainda é utilizada para defender ou promover direitos humanos e liberdades internacionalmente reconhecidas, como as liberdades de religião, expressão, associação e reunião, e os direitos a um julgamento justo e a eleições democráticas. Ou ainda, caso seja um agente público, ou um associado de tal agente, que seja responsável por, ou cúmplice de, ordenar, controlar ou de outra forma dirigir atos de corrupção significativa. Ou outras situações descritas na legislação.

Dois exemplos recentes de aplicação da lei em casos de possível lawfare

Em 2023, Elena Anatolievna Lenskaya [3] foi sancionada por ser uma pessoa estrangeira potencialmente responsável ou cúmplice de, ou que tenha se envolvido direta ou indiretamente em, graves abusos de direitos humanos. Lenskaya é uma juíza do Tribunal Distrital de Basmannyy, em Moscou, que supervisionou a audiência de prisão preventiva de Kara-Murza.

Lenskaya ordenou que Kara-Murza fosse mantido em prisão preventiva por acusações baseadas em seu exercício do direito à liberdade de expressão.

Sayma Syrenius Cephus [4], foi sancionado em 2022 por ser uma pessoa estrangeira responsável ou cúmplice de corrupção, ou que tenha se envolvido direta ou indiretamente em corrupção, incluindo a apropriação indevida de bens do Estado, a expropriação de bens privados para ganho pessoal, corrupção relacionada a contratos governamentais ou à extração de recursos naturais, ou suborno. Cephus era o procurador-geral e procurador-chefe da Libéria.

Teria recebido subornos de indivíduos em troca do arquivamento de seus casos; teria trabalhado nos bastidores para estabelecer acordos com sujeitos de investigações de lavagem de dinheiro para interromper as investigações a fim de se beneficiar financeiramente; teria utilizado sua posição para impedir investigações e bloquear o processo de casos de corrupção envolvendo membros do governo; e foi acusado de adulterar e reter propositalmente provas em casos envolvendo membros de partidos políticos da oposição para garantir a condenação.

Spacca

Nota-se dos exemplos acima que a Lei Magnitsky já foi aplicada em casos de proteção das liberdades — inclusive a de expressão — e para casos de perseguição de oponentes políticos. Ou, como poderíamos falar: lawfare.

Sanções

As sanções possíveis são devastadoras, apesar de a redação da lei ser singela. Primeiro, dar-se-á a inadmissibilidade para ingresso nos Estados Unidos. Tratando-se de um indivíduo sujeito às sanções da lei, ocorrerá a inelegibilidade para receber um visto de entrada nos EUA ou para ser admitido no país. E, caso o indivíduo já tenha recebido um visto ou outra documentação, haverá sua revogação, seja do visto ou de outra documentação correlata.

Segundo, haverá o bloqueio de bens de conforme a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional. São afetadas todas as transações em todos os bens e interesses em bens de uma pessoa estrangeira se esses bens e interesses em bens estiverem nos Estados Unidos, entrarem nos Estados Unidos ou estiverem, ou entrarem na posse, ou controle de uma pessoa dos Estados Unidos.

Afeta o sistema Swift?

Muito se fala, por exemplo, do impacto da Lei Magnitsky quanto às relações financeiras de uma pessoa ou entidade atingidas, por conta do sistema Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (Swift). Vejamos como os impactos da Lei Magnitsky são devastadores.

A lei sequer precisa afetar “diretamente” o sistema Swift. É uma rede global usada por bancos para facilitar transações financeiras internacionais. Ocorre que as sanções da lei têm impactos indiretos significativos nas relações bancárias de uma pessoa sancionada, influenciando como o Swift e as instituições financeiras operam. Por exemplo, a Lei Magnitsky bloqueia transações em dólar. Como a maioria das transações globais em dólar passa pelo sistema financeiro dos EUA, bancos que usam o Swift para processar essas operações são pressionados a bloquear qualquer transação ligada à pessoa sancionada.

Podem objetar: “o sistema Swift em si não bloqueia contas ou pessoas”. Isso não quer dizer que alguém esteja imune a impactos reais. Os bancos participantes, temendo sanções secundárias dos EUA (multas ou perda de acesso ao sistema financeiro americano), recusam-se a processar pagamentos ou transferências envolvendo o/a sancionado/a e pessoas relacionadas a ele/ela.

Agora, espraie tais efeitos para “pessoas associadas” àquela autoridade atingida pela sanção direta da Lei Magnitsky. Potencialize os efeitos sobre sócios, assessores, parentes e assim por diante. É devastador.

Nenhuma instituição do sistema bancário mundial desejará o risco de não estar em conformidade. Caso contrário, sofrerá o isolamento bancário. E isso levará ao efeito cascata no sistema financeiro global. Sendo o Swift amplamente usado para transferências internacionais (não só em dólar, mas também em euro, libra, etc.), a pessoa sancionada certamente enfrentará problemas para outras transações não relacionadas aos EUA.

E no Brasil, como ficam os bancos? Lógico que os bancos brasileiros seguem legislações locais. Ocorre que, na prática, acaba havendo um alinhamento às sanções dos EUA para a proteção de suas operações internacionais.

Por isso, argumentos simplórios como “lei americana não se aplica no Brasil” acabam não resistindo aos impactos financeiros. Afinal, não é sequer caso de “ultratividade” da lei americana fora de seu território, mas, dos efeitos internacionais de uma sanção aplicada.

Conclusões

O caso da possível aplicação da Lei Magnitsky às autoridades brasileiras parece estar padecendo de um “efeito torcida”. De um lado e de outro, argumentos alentadores de suas posições são sacados. Desde uma tentativa de justificar uma aplicação irrestrita, ao extremo de argumentar que “leis americanas não se aplicam aqui”, é preciso refrear as paixões.

Partindo do pressuposto mais lógico, em tese a lei pode ser aplicada para casos de violação da liberdade de expressão ou perseguições políticas de oponentes. Já houve casos recentes. Isso não implica em um “cheque em branco”, sendo o governo americano criterioso na análise.

E, caso o governo americano entenda pela aplicação, não são os “efeitos da lei americana no território brasileiro” que estarão em jogo. O efeito destruidor da lei se opera com as restrições internacionais para o sancionado e para quem com ele transacionar. Bravatas não salvarão os atingidos pelo impacto da lei.

Notem que mesmo a Rússia precisou criar um sistema próprio em substituição ao Swift. Mas o sistema é limitado em alcance e em eficiência.

Resta saber o que o futuro nos reserva.

 


[1] Vuckovic, Alexandre. (2020). “MAGNITSKY ACT”: COMO ESTA LEI DOS ESTADOS UNIDOS PODE ALCANÇAR OS ‘INTOCÁVEIS’ NO BRASIL?.

[2] aqui

[3] aqui

[4] aqui


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