Empreender no Brasil é, por si só, um exercício de coragem. Em meio a uma das cargas tributárias mais pesadas e a um emaranhado de exigências regulatórias, empresários se desdobram para manter suas atividades funcionando. Nesse contexto, ser surpreendido com a inaptidão do CNPJ, sem aviso prévio ou chance de defesa, representa não apenas um golpe duro à operação da empresa, mas uma afronta direta à segurança jurídica e ao ambiente de negócios.
A ausência de um procedimento formal e claro que permita ao contribuinte apresentar defesa antes da imposição de uma medida tão grave revela uma falha estrutural do sistema: a fragilidade do cidadão perante a administração pública. Em tempos em que o Brasil busca atrair investimentos e fomentar a atividade econômica, é inadmissível que princípios constitucionais como o contraditório e a ampla defesa sejam tratados como meras formalidades.
Recentemente, decisões judiciais têm reforçado essa visão. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), por exemplo, tem reiterado que a Receita Federal não pode declarar a inaptidão de um CNPJ de forma sumária. Isso porque essa medida, além de ser praticamente irreversível, causa impactos imediatos e profundos nas operações comerciais, inviabilizando a emissão de notas fiscais e afastando parceiros comerciais e financeiros.
Ainda que a Lei nº 9.430/1996 autorize a Receita Federal a declarar a inaptidão de CNPJs em determinados casos, como nos casos de omissão reiterada de obrigações acessórias, essa prerrogativa não é absoluta. A administração pública está vinculada ao respeito ao devido processo legal, previsto no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição, e não pode, sob nenhum pretexto, sacrificar direitos fundamentais em nome da eficiência arrecadatória.
É nesse sentido que o artigo 42 da Instrução Normativa RFB nº 1.863/2018 também estabelece que a inaptidão somente pode ser declarada após a devida intimação da empresa para que regularize sua situação. Em uma decisão recente do TRF-3, uma magistrada determinou a reativação de um CNPJ que havia sido declarado inapto sem que o contribuinte tivesse sido previamente notificado. Para ela, a Receita Federal não apresentou prova alguma de que o empresário fora alertado sobre a irregularidade, violando, assim, garantias constitucionais basilares.
Morte da empresa
O precedente, aliás, é acompanhado de outros julgados da mesma corte, que reconhecem a nulidade de atos administrativos que decretem a inaptidão sem oportunizar ao contribuinte o exercício pleno de sua defesa. Em casos analisados, ficou claro que, ao tornar inapto um CNPJ sem prévia comunicação e antes de finalizado o processo administrativo, a Receita não apenas afronta o devido processo legal, como também impõe uma sanção política disfarçada de medida administrativa, restringindo indevidamente a liberdade econômica.
A inaptidão do CNPJ não é uma mera advertência: ela representa, na prática, a morte civil da empresa. Sem CNPJ ativo, é impossível emitir documentos fiscais, abrir contas bancárias, assinar contratos ou participar de licitações. Trata-se de uma sanção de gravidade extrema, que precisa ser precedida de todas as garantias previstas no ordenamento jurídico.
Spacca

É preciso destacar ainda que a liberdade de iniciativa, prevista no artigo 1º, inciso IV, e no artigo 170 da Constituição, é um dos fundamentos da República. Medidas administrativas que coloquem essa liberdade em risco, sem o adequado procedimento, atentam contra o próprio pacto constitucional.
A Receita Federal, como órgão de Estado e não de governo, deve ser guardiã da legalidade, e não protagonista de arbitrariedades. Quando ultrapassa os limites da sua atuação e desconsidera direitos fundamentais, compromete não apenas a legitimidade de seus atos, mas todo o ambiente de negócios do país.
Não se trata de defender a inadimplência ou a desorganização fiscal. O empresário que não cumpre suas obrigações deve, sim, ser responsabilizado. Contudo, essa responsabilização precisa ocorrer dentro dos limites do Estado democrático de Direito, com respeito às garantias processuais e observância das normas vigentes.
O fortalecimento da segurança jurídica é condição imprescindível para o crescimento econômico sustentável. Em um país onde abrir e manter uma empresa já exige tanto esforço, não se pode admitir que o próprio Estado atue como obstáculo adicional. O respeito ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal não é uma concessão ao contribuinte: é a expressão mais pura da civilização jurídica que buscamos construir.
É urgente que a Receita Federal revise seus procedimentos internos para garantir que nenhuma empresa seja penalizada sem que lhe seja dada a oportunidade de se defender. Mais do que uma obrigação legal, trata-se de um imperativo ético e institucional.
Apenas com um ambiente de negócios previsível, transparente e respeitador dos direitos fundamentais conseguiremos construir um Brasil mais próspero, inovador e justo para todos.