Como lidar com conflito entre coisas julgadas no processo civil


A coisa julgada é uma garantia constitucional, conforme artigo 5º, XXXVI da Constituição. Nesse sentido, a existência da coisa julgada estabelece uma objeção processual, qual seja a proibição de repetição de julgamento de um mesmo objeto já decidido anteriormente.

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Seguindo este diapasão, a coisa julgada, prevista no artigo 502 do Código de Processo Civil, assegura a imutabilidade e a indiscutibilidade das decisões de mérito transitadas em julgado, sendo de suma importância para a estabilidade das relações jurídicas.

Outrossim, o artigo 6º, §3º, da Lindb traz que a coisa julgada ou caso julgado é a decisão judicial de que já não caiba recurso [1].

Em outras palavras, a coisa julgada é uma das formas de estabilizar o passado, gerando uma proteção jurídica ao direito de ação [2].

Ocorre que, na existência de duas — ou mais — decisões contraditórias, com força de coisa julgada, levantam-se questões processuais sobre qual decisão deve prevalecer e como o sistema processual vigente deve lidar com tais conflitos.

No Código de Processo Civil de 1973, a ação rescisória seria o instrumento apto a solucionar o conflito entre decisões transitadas em julgado referente à objetos idênticos. O artigo 485 do Código Processual revogado, em seu inciso IV, dispusera que “a sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: […] IV – ofender a coisa julgada”.

Desse modo, vê-se que no artigo 966, inciso IV, do CPC/15, de forma parelha, aduz que “a decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: […] IV – ofender a coisa julgada”.

À luz do artigo 371 do Código de Processo Civil [3], o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento. A partir da interpretação lógica deste dispositivo, vê-se que o processo civil brasileiro adotou o sistema de valoração das provas e o da persuasão racional, chamado de princípio do livre convencimento motivado do magistrado.

Segundo Marinoni [4], em relação à problemática do conflito entre coisas julgadas, os principais aspectos que levam à formação de coisas julgadas contraditórias são:

  1. a maioria dos casos de ofensa à coisa julgada ocorre quando um juiz, ao decidir questão prejudicial ao julgamento da demanda, ofende a coisa julgada que se formou em ação com conteúdo diverso;
  2. a ofensa à coisa julgada, em caso de repetição de demandas idênticas, não só é algo raro, como em regra constitui má-fé de uma das partes e desatenção da outra;
  3. há importante diferença entre coisa julgada que ofende coisa julgada formada em ação idêntica e coisa julgada que ofende coisa julgada formada em ação distinta;
  4. na primeira hipótese existem duas coisas julgadas que se excluem, não ocorrendo o mesmo quando uma coisa julgada, embora incompatível com a primeira, não a exclui;
  5. quando a ação rescisória não é proposta, em uma das referidas hipóteses sobrevivem coisas julgadas antagônicas e na outra passam a existir coisas julgadas que ocupam espaços próprios e diferentes;
  6. não obstante a ofensa à coisa julgada possa se dar mediante rejulgamento de demanda idêntica ou de desconsideração de julgamento de demanda distinta em ação distinta, nada indica que se deva conferir igual sanção para a negação das funções negativa e positiva da coisa julgada

Portanto, em vista do livre convencimento motivado do magistrado, mediante repetição de ações idênticas — seja por má-fé ou falta de cuidado —, há a possibilidade de existirem e/ou coexistirem duas ou mais decisões de mérito que versem sobre o mesmo objeto.

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Além disso, a competência concorrente, a mutação jurisprudencial e, também, a falta de comunicação processual podem levar a decisões conflitantes, ensejando, futuramente, em coisas julgadas conflitantes.

Assim, as consequências práticas e visíveis entre conflitos de decisões de mérito transitadas em julgado são: a insegurança jurídica com a coexistência de decisões incompatíveis e a inviabilidade da execução com determinações antagônicas.

Solução para conflitos de coisa julgada

A tese firmada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do julgamento do EAREsp 600811/SP, definiu que, no conflito entre sentenças, prevalece aquela que por último transitou em julgado, enquanto não desconstituída mediante ação rescisória.

Tal posicionamento da Corte Especial do STJ seguiu o entendimento majoritário dos doutrinadores processualistas, como Barbosa Moreira [5], que expôs que:

Em regra, após o trânsito em julgado (que, aqui, de modo algum se preexclui), a nulidade converte-se em simples rescindibilidade. O defeito, arguível em recurso como motivo de nulidade, caso subsista, não impede que a decisão, uma vez preclusas as vias recursais, surta efeito até que seja desconstituída, mediante rescisão.

De todo modo, o legislador, no artigo 966, IV, do Código de Processo Civil, destacou expressamente o cabimento da ação rescisória contra a segunda decisão conflitante. Assim, decorrido o prazo da propositura da ação rescisória, fica superado o vício da segunda decisão, destituindo-se o primeiro julgado.

O posicionamento do STJ reflete os efeitos da segurança jurídica, tendo em vista que o próprio Código Processual em vigência dispõe de mecanismos para sanar os conflitos de coisa julgada.

Remédios processuais disponíveis para resolver o conflito entre decisões transitadas em julgado

Conforme demanda o artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição, a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Porém, conforme visto no artigo 966 do CPC, inciso IV, quando for ofendida a coisa julgada, a decisão de mérito poderá ser rescindida.

Efetivamente, o STJ entende que a 2ª decisão de mérito prevalece em face da 1ª decisão, até que a última seja rescindida. Esta também é a posição majoritária dos processualistas.

Todavia, há divergência relacionada à tese firmada. A 3ª Turma do STJ, conforme vê-se no julgamento do RESP nº 1.354.225-RS, entendeu que há ausência de interesse de agir na segunda decisão de mérito transitada em julgado, mesmo após o transcurso da ação rescisória (REsp 710.59/SP). Além disso, pontuou-se que é cabível a alegação da inexistência da segunda decisão de mérito na via de exceção de pré-executividade.

A fundamentação do recurso especial acima deu-se à luz do direito comparado, com referência ao direito português, onde adota-se a solução da prevalência da primeira coisa julgada.

Outro remédio processual citado pelo STJ, em julgamento da 1ª Turma, traz que “não resta dúvida, portanto, que o ajuizamento da presente ação declaratória de nulidade de ato jurídico é um dos meios adequados à eventual desconstituição da coisa julgada” (Min. Relatora Denise Arruda. RESP nº 710.599-SP, Primeira Turma, v.u., data de julgamento 25.3.2008, DJe 17.4.2008).

Contudo, a Corte Especial cessou a divergência, unificando o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, destacando que a ação rescisória é o remédio processual cabível para rescindir a decisão de mérito que ofendeu a coisa julgada.

Problemática com as garantias fundamentais do processo

Prosseguindo, a existência de decisões incompatíveis com a coisa julgada viola garantias constitucionais que orientam todo o sistema processual brasileiro e os princípios processuais.

Conforme já arguido excessivamente neste estudo, o princípio da segurança jurídica, previsto no artigo 5º, XXXVI da Constituição, é a base legal-constitucional da coisa julgada, onde assegura-se aos jurisdicionados que as decisões judiciais serão definitivas.

Portanto, quando há decisões contraditórias essa segurança se esvai, levando à incertezas e inseguranças.

Ainda neste diapasão, o devido processo legal exige que todos os atos processuais sejam praticados em respeito às normas estabelecidas. Porém, quando há uma segunda decisão de mérito conflitante, viola-se o princípio do devido processo legal ao desconsiderar a limitação imposta pela coisa julgada. Nesse sentido, para Talamini, isso representa uma violação estrutural do sistema processual [6].

De forma análoga, fere-se o princípio da duração razoável do processo, previsto no artigo 5º, LXXVIII da Constituição, pois a coexistência de decisões de mérito transitadas em julgado incompatíveis gera litígios prolongados, com disputas intermináveis para decidir qual decisão deve prevalecer. Logo, o conflito entre coisas julgadas fere a garantia de um processo célere e eficiente, sobrecarregando o sistema judicial.

Análise sob olhar crítico

O conflito entre coisas julgadas atinge as garantias fundamentais do processo, comprometendo a segurança jurídica, o devido processo legal e uma justa duração razoável do processo.

Além disso, conforme visto anteriormente, o STJ definiu a prevalência da decisão que por último transitou em julgado, enquanto não rescindida. Todavia, sob um olhar crítico, destaca-se que o definido pelo Superior Tribunal de Justiça não resolve a problemática entre o conflito entre coisas julgadas.

A falta de comunicação entre os tribunais, bem como a falta de penalidade aos litigantes que, de má-fé, sobrecarregam o sistema judicial, levando ações idênticas ao judiciário, culminando — em sua maioria — em decisões de mérito conflitantes, levam à existência desta problemática.

Noutro giro, conforme arguido por Eduardo Talamini, o problema em análise está longe de uma solução. Uma hipótese prevista pelo autor e doutrinador, é o alargamento do prazo para a ação rescisória ou, até mesmo, a sua supressão nas hipóteses de conflito entre coisas julgadas [7], ideia essa que é seguida também por Alexandre Freitas Câmara [8].

Há também a solução portuguesa, que aduz prevalecer a primeira coisa julgada. Solução esta apontada também pela 3ª Turma do STJ, conforme demonstrado anteriormente neste artigo.

Por fim, vê-se que o conflito de coisas julgadas, apesar da pacificação do tema pelo STJ, ainda traz discordância entre doutrinadores e entre os próprios ministros da Corte Especial do STJ que, no julgamento do EAREsp 600811/SP discordaram entre si — e sobre as teses arguidas — para a definição do julgado e da tese firmada.

 


[1] Para fins de esclarecimentos, destaca-se que o art. 6º, §3º, da LINDB traz a coisa julgada tanto material quanto formal, enquanto o Código de Processo Civil relaciona-se com a coisa julgada material.

[2] MARINONI, Luiz Guilherme et al. Novo curso de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, v. 2, p. 619-620. MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. A coisa julgada formal no novo CPC. In: DIDIER JR., Fredie (Org.) Processo de Conhecimento e disposições finais e transitórias. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 618.

[3] Art. 131 do CPC/73. “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe   formaram o convencimento”.

[4] MARINONI, Luis Guilherme. A Questão das coisas julgadas contraditórias. Revista de Processo | vol. 271/2017 | p. 297 – 307 | Set / 2017 DTR\2017\5608.

[5] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil, 5ª ed, Forense: 1985, vol. V, p. 111.

[6] TALAMINI, Eduardo. CONFLITO ENTRE COISAS JULGADAS:PREVALÊNCIA DA SEGUNDA, QUANDO NÃO RESCINDIDA. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife – ISSN: 2448-2307, Edição Comemorativa dos 130 anos da Revista Acadêmica, p. 112-121. Nov. 2021

[7] TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão, op. cit., p. 664.

[8] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, v. 2, p. 28-30.


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