

Opinião
A sub-representação feminina nos espaços de poder e decisão no Brasil é um fenômeno persistente que revela um grave déficit democrático. Apesar de avanços legislativos e constitucionais direcionados à promoção da igualdade de gênero, o cenário político-eleitoral brasileiro ainda se mostra resistente à inserção efetiva das mulheres nos parlamentos e no Executivo. Nesse contexto, o debate sobre o novo Código Eleitoral enseja preocupações legítimas quanto ao risco de retrocesso institucional e violação dos compromissos constitucionais assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de igualdade e não discriminação.
Freepik

A história do Direito brasileiro, quando observada sob o prisma de gênero, revela um passado marcado por normas que institucionalizaram a subalternidade feminina. O Código Civil de 1916, por exemplo, conferia ao marido a condição de chefe da sociedade conjugal e à mulher o status de relativamente incapaz, reafirmando a lógica patriarcal herdada das Ordenações Filipinas. Essa exclusão jurídica se estendia ao campo político, cabendo rememorar que até 1932 as mulheres estavam formalmente alijadas do direito ao voto, que só foi constitucionalizado em 1934.
Essa tradição de silenciamento é reiterada por Mary Beard em Mulheres e Poder, ao demonstrar, a partir de referências clássicas como a Odisseia, que a voz feminina foi sistematicamente suprimida ao longo dos século, uma cultura de apagamento que reverbera até hoje nos espaços políticos.
Embora as mulheres representem 52,5% do eleitorado brasileiro e componham cerca de 46% do total de filiados a partidos políticos, elas ocupam apenas 18% da Câmara dos Deputados e um percentual ainda inferior no Senado. O Brasil está em 136º lugar no ranking mundial de representação feminina no parlamento, atrás da maioria dos países latino-americanos.
Esse descompasso configura uma disfunção democrática estrutural. Se a Constituição da República de 1988 consagra, em seu artigo 5º, inciso I, o princípio da isonomia, e determina no artigo 3º, inciso IV, como objetivo fundamental da República, a promoção do bem de todos “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, a sub-representação feminina nos cargos eletivos é não apenas inaceitável, como inconstitucional.
A representatividade feminina não é uma concessão política, tampouco um capricho ideológico. Trata-se de instrumento de qualificação da democracia e de aperfeiçoamento dos processos decisórios. Pesquisas de mercado e estudos produzidos por organismos multilaterais e instituições privadas demonstram que organizações com maior diversidade em seus quadros decisórios produzem melhores resultados, têm maior lucratividade e desenvolvem políticas mais aderentes às necessidades da sociedade.
O mesmo raciocínio se aplica ao setor público. A ausência de mulheres em instâncias de poder compromete a formulação de políticas públicas adequadas às demandas femininas. Casos emblemáticos como a ausência de mamógrafos acessíveis a mulheres com deficiência, a precariedade de banheiros femininos em parlamentos e a evasão escolar decorrente da pobreza menstrual demonstram a invisibilização de necessidades específicas também em razão da baixa participação feminina na política.
O ordenamento jurídico brasileiro contempla uma série de normas voltadas à promoção da igualdade de gênero no processo eleitoral, a exemplo da Lei nº 9.504/97, artigo 10, § 3º que exige que os partidos e coligações preencham no mínimo 30% e no máximo 70% das candidaturas proporcionais para cada sexo; da legislação que assegura 30% do tempo de propaganda partidária para promoção da participação feminina e aplicação efetiva dos fundos partidário e do especial de financiamento de campanha; da Lei 14.192/21 que tipifica a violência política de gênero, compreendida como qualquer ação destinada a impedir, restringir ou dificultar a participação da mulher na política.
Essas medidas, ainda que comprovadamente insuficientes, representam conquistas civilizatórias mínimas. Retroceder nesse arcabouço é inadmissível sob a ótica constitucional e contraria pactos internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw).
Descompasso
O relatório do senador Marcelo Castro (MDB-PI), na proposta do novo Código Eleitoral, propõe substituir a cota de 30% de candidaturas por uma reserva de 20% das cadeiras legislativas para mulheres, válida por 20 anos. Embora essa medida possa representar um avanço em termos de ações afirmativas de resultado, preocupa a proposta paralela de suspender, pelo mesmo período, as sanções aos partidos que não cumprirem a cota de candidaturas femininas.
Spacca

A tentativa de suspender por duas décadas os efeitos das sanções aos partidos que não respeitarem a proporcionalidade de gênero viola os efeitos concretos já validados pela jurisprudência eleitoral, como as decisões que (1) garantiram repasses proporcionais do Fundo Partidário e do FEFC às candidaturas femininas; (2) reforçaram a obrigatoriedade de cumprimento efetivo das cotas de gênero, como requisito de validade do registro das chapas proporcionais.
Trata-se, portanto, de uma proposta que enfraquece os pilares de controle, fiscalização e equidade eleitoral, colocando o país em descompasso com os padrões democráticos internacionais, como os recomendados pela ONU Mulheres, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pelo Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Idea).
Essa suspensão, por óbvio, compromete a eficácia da norma, desestimula os partidos políticos a incrementar seus estatutos em busca de dinamizar e formar lideranças femininas e abranda os mecanismos de controle institucional. Além disso, a proposta legislativa representa um retrocesso jurídico e político frente ao estágio normativo atual. O Brasil possui um conjunto de obrigações constitucionais e internacionais que impõem ao Estado um dever de progressividade no campo dos direitos fundamentais, especialmente os ligados à igualdade de gênero e participação política.
Ademais, a proposta contida no novo Código Eleitoral deve ser analisada à luz do princípio da proibição do retrocesso em matéria de direitos fundamentais, consagrado pela jurisprudência do STF e reconhecido como decorrência lógica do Estado Democrático de Direito e da cláusula do núcleo essencial dos direitos fundamentais (artigo 5º, § 2º, da CF).
A substituição da política de cotas por uma reserva de cadeiras, isoladamente, poderia ser considerada legítima. No entanto, condicionar essa substituição à suspensão de sanções, na prática, aniquila o regime normativo de incentivo à paridade de gênero vigente desde 2009, atrasando, ainda mais, o processo histórico de construção da equidade política no Brasil.
Afrontas
Além disso, essa proposta contraria frontalmente os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro em tratados de direitos humanos com força supralegal, nos termos do entendimento firmado no RE 466.343/SP (rel. min. Gilmar Mendes), a exemplo da já mencionada Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), especialmente seu artigo 7º, que obriga os Estados-partes a adotar medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mulheres na vida política e pública; e da Convenção de Belém do Pará, que trata da prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, incluindo a violência institucional e política.
A proposta legislativa também afronta as Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, que orientam os Estados latino-americanos à adoção de mecanismos específicos de correção de desigualdades estruturais, com enfoque interseccional.
A proposta fere, portanto, os princípios da proibição do retrocesso social, da igualdade material e da democracia representativa. O Supremo Tribunal Federal já consolidou entendimento no sentido de que a vedação ao retrocesso em direitos fundamentais é uma limitação ao legislador infraconstitucional, sobretudo quando envolvem cláusulas pétreas e compromissos internacionais do Estado brasileiro.
Revogação velada
A Constituição de 1988 impõe ao Estado o dever de promover a igualdade de gênero, inclusive por meio de ações afirmativas. Qualquer tentativa de enfraquecer mecanismos normativos já consolidados, como as cotas de gênero e o financiamento proporcional, afronta a ordem constitucional e aprofunda as distorções do sistema político.
O novo Código Eleitoral não pode servir de instrumento de revogação velada de políticas afirmativas que estão em fase de consolidação jurisprudencial e cultural. A suspensão das sanções não corrige distorções. Em verdade, desmonta mecanismos de avanço e consolidação da equidade de gênero, comprometendo a construção de uma democracia plural, inclusiva e substancial.
Mais que um equívoco legislativo, essa proposta constitui um retrocesso institucional incompatível com a Constituição de 1988, que consagra o pluralismo político, a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a vedação à discriminação como fundamentos da República.
A verdadeira reforma eleitoral deve fortalecer a participação das mulheres com candidaturas competitivas, recursos adequados e apoio institucional. A reserva de cadeiras pode e deve ser debatida e implementada, desde que não se converta em troca de garantias ou em moeda de troca para neutralizar sanções e perpetuar desigualdades.
Não há democracia sem representatividade. E não há representatividade autêntica quando mais da metade da população permanece à margem do poder.