Bacharelado em Direito na reforma tributária do consumo


Opinião

“The art of taxation consists in so plucking the goose as to procure the largest quantity of feathers with the least possible amount of hissing” [1]

“O homem não é nada além daquilo que a educação faz dele” [2]

“Educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele” [3]

Sendo você uma pessoa que vive no Brasil, certamente já percebeu como é difícil viver no país, sob diferentes aspectos. Isso não é diferente quando o assunto é Direito Tributário. Nossa Constituição de 1988, verdadeiramente cidadã (no sentido de definir um horizonte axiológico e hermenêutico elegendo igualdade formal e um mundo de princípios e planos programáticos), não conseguiu vencer, do ponto de vista prático, as mazelas de um país historicamente paradoxal, culminando em efetivo manicômio jurídico-tributário [4].

Dito isso, digamos que você caro(a) leitora(a) deseje estudar mais sobre esse incrível mundo, mormente pelo fato de ter-se aprovado uma Emenda Constitucional (EC nº 132 de 2023) com o intuito, justamente, de melhorar o sistema acima, trazendo simplicidade, menos burocracia, segurança jurídica, isonomia tributária, dentre outros.

Assim, se matricula em uma das mais de 1.240 faculdades de Direito do Brasil [5], acreditando que terá um verdadeiro ensino de qualidade, na medida que estudaria o:

– sistema tributário nacional;
– Regras de competência para instituição destes tributos, sem prejuízo de lógica envolvendo o conceito de Tributo;
– As inúmeras espécies tributárias;
– No que consiste uma obrigação tributária (sujeito passivo, sujeito ativo, como recolher, onde recolher, dentre outros), da mesma forma dos problemas advindos do não recolhimento, do recolhimento fora do prazo, do preenchimento incorreto…

Acontece caro(a) leitor(a) que essa não é a realidade do Brasil, inclusive por regulamentação do Ministério da Educação (MEC), de modo que sem alterarmos a forma de estudo do Direito no Brasil, certamente não formaremos profissionais e pessoas para lidar adequadamente com o horizonte de mudanças que teremos. Façamos, portanto, um estudo regulatório, antes de ingressar na importância da EC nº 132.

Quem regula o bacharelado em Direito no Brasil

Embora estejamos cada vez mais com o common law ganhando força no ordenamento jurídico, fato é que vivemos em um sistema de civil law, com supremacia da Constituição sobre as demais normas, isto é, dela deve surgir a lógica do sistema e, subsidiariamente, aquilo que for infraconstitucional e for compatível com esta, será recepcionado pela ordem vigente.

Essa introdução é importante, pois como ensina Kelsen, em sendo a norma fundamental pressuposto para validade do ordenamento, seus parâmetros devem ser respeitados e seguidos [6].

Alexandra Martins/Universidade de Brasília

Animado com essa ideia, você procura na Constituição detalhes do ensino jurídico ou, subsidiariamente, de como ela vê a Educação como um todo. Aqui nasce então um problema prático da Constituição em 1988. Doutrinariamente a chamamos de analítica, pois ela fala extensamente de múltiplos assuntos, ora sendo muito extensa, ora escrevendo aquém do que iríamos esperar dela (no sentido ontológico – histórico de saímos de um regime militar com princípios de liberdade e direitos fundamentais de 3º e 4º geração). É justamente a situação da Educação.

Grosso modo, temos apenas o Capítulo III, Seção I, artigos 205 até 214 que tratam especificamente – pormenorizadamente da Educação. Os mais importantes são:

– 205 – Educação direito de todos, dever do Estado e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade;
– 206 – Ensino ministrado com base em vários princípios, dentre eles, liberdade de ensinar;
– 207 – Universidades gozam de autonomia didático-científica;
– 209 – Ensino livre à iniciativa privada, atendidos os cumprimentos das normas gerais da educação nacional, autorização e avaliação de qualidade pelo poder público;
– 214 – Lei definirá o plano nacional de educação, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração, objetivos, metas e estratégias de implementação para manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis.

Dito isso, é aqui que acaba a Constituição e tem-se a legislação infraconstitucional assumindo protagonismo. Dentre elas, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB Lei nº 9.394/1996) e as Diretrizes Curriculares Nacionais (Resoluções do Conselho Nacional de Educação), quais sejam, CNE/CES nº 9 de 2004, nº 5 de 2018 e nº 2 de 2021.

Nesse sentido, você, após se deparar com esse panorama, não se assusta, em um primeiro momento, pois acredita então que irá estudar o Direito Tributário de forma pormenorizada. Assim, passado alguns semestres, espera-se ser introduzido ao Direito Tributário. Ato contínuo, surgem mais problemas.

Sua faculdade, especificamente, não possui um conteúdo programático, isto é, embora tenha genericamente coisas como “Direito Tributário I”, não há uma matriz curricular efetiva, mostrando-se os tópicos a serem estudados, com ementa, bibliografia básica, complementar e outras informações essenciais. Pior que isso, você percebe que ela não está classificada no OAB Recomenda [7].

Assim, tentando entender o motivo desse próprio programa existir e sua Faculdade não estar nele, procura por respostas. Com isso, percebe que o Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 8.906/1994), a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman Lei Complementar nº 35/1979), a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº 8.625/1993) não abordam, mesmo no sentido de servirem como consultores formais – informais do MEC, como deve ser feita a estruturação do Curso de Direito, até mesmo em razão das diretrizes da Constituição e da LDB mencionadas acima.

Inconformado com a situação acima, volta a legislação de regência da educação supracitada e faz uma descoberta.

O que um curso em Direito precisa ter obrigatoriamente?

Primeiramente, ao reler a legislação infraconstitucional, você constata que a LDB repete a Constituição, no sentido de que se define a autonomia universitária e os princípios para a organização dos cursos de graduação, ao mesmo tempo que prevê a necessidade de diretrizes curriculares nacionais para os cursos superiores.

Ocorre que como o conhecimento humano e suas áreas são amplíssimos, isso se dá via resolução do Conselho Nacional de Educação, existindo 3 para o Bacharelado em Direito.

A Primeira Resolução (CNE/CES nº 9 de 2004) sobre as Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Direito (Bacharelado) assim dispôs em seus eixos de formação profissional:

– “conteúdos essenciais” sobre Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual.

Posteriormente, a segunda (CNE/CES nº 5 de 2018) atualizou o eixo acima, passando a constar:

– “conteúdos essenciais” sobre Teoria do Direito, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional, Direito Processual; Direito Previdenciário, Formas Consensuais de Solução de Conflitos.

Ato contínuo, a última que se tem notícia (CNE/CES nº 2 de 2021) assim dispõe:

– “conteúdos essenciais” sobre Teoria do Direito, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional, Direito Processual; Direito Previdenciário, Direito Financeiro, Direito Digital e Formas Consensuais de Solução de Conflitos.

Como pode perceber, caro(a) leitor(a), as resoluções a todo momento usam o termo “conteúdo essencial”, porém,  não existe uma definição precisa, mas sim imprecisa, na medida que estabelece como conteúdo essencial “Formação técnico-jurídica, que abrange, além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo a sua evolução e aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais”.

Em outras palavras, ao deixar nesse sentido, não se fere a Constituição ou LDB, pois as Faculdades mantêm sua autonomia didático-científica, da mesma forma que seguem um “horizonte normativo” regulatório.

Isso gera o ciclo que se percebe ao longo deste artigo de que de um lado se criam Faculdades de Direito com matriz curricular efetiva, mostrando-se os tópicos a serem estudados, com ementa, bibliografia básica, complementar e outras informações essenciais, ao mesmo tempo que Faculdades de Direito que visam, ao fim, mercantilizar o ensino (no sentido de expansão do acesso), independente de qualquer compromisso efetivo com o desenvolvimento do(a) aluno(a) [8].

Ao fim de todo esse estresse, você se pergunta: e a Emenda Constitucional (EC nº 132 de 2023)?

E a Emenda Constitucional nº 132 de 2023?

A EC nº 132 de 2023, promulgada sob o discurso da simplificação, da eficiência arrecadatória e da justiça tributária, alterou radicalmente o sistema de tributação sobre o consumo no Brasil.

Em linhas gerais e a grossíssimo modo, substituiu-se cinco tributos (ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI) por dois: o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) e a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), bem como introduziu um Imposto Seletivo e redesenhou, de maneira significativa, a lógica de arrecadação e repartição federativa.

Em outras palavras, trata-se de uma mudança estrutural, de complexidade gigantesca como se nunca antes viu na ordem tributária brasileira desde a promulgação da Constituição de 1988. E o que isso tem a ver com o ensino jurídico? Absolutamente tudo.

Estamos diante de uma das mais profundas reforma, com base eminentemente constitucional (não estamos nem tratando dos pormenores trazidos pela Lei Complementar nº 214 de 2015 e do Projeto de Lei Complementar em andamento que Institui o Comitê Gestor do IBS), com impactos diretos sobre interpretação de competências, repartição de receitas, incidência, não cumulatividade, regimes especiais e formas de contencioso administrativo.

Apesar de todas essas mudanças em muitas outras, o curso de Direito, em sua maioria, segue absolutamente descolado desse processo.

A EC nº 132 é norma constitucional. Logo, irradia efeitos sobre todo o ordenamento. Isso, por si só, impõe uma reorganização didático-pedagógica, especialmente nas disciplinas de Direito Tributário, Financeiro e Constitucional. No entanto, a ausência de conteúdo mínimo obrigatório em resoluções do CNE permite que cursos simplesmente não incluam, ou apenas tangenciem, essas discussões.

Temos, então, uma contradição insuperável: enquanto a Constituição fala em simplificação tributária, o ensino jurídico segue simplista, na grande maioria do país (do contrário não existiria o selo OAB Recomenda e tentativas de utilizar-se o Enade como parâmetro de qualidade, quando na realidade não é).

Essa contradição revela, com precisão, a distância entre o Brasil que tributa e o Brasil que forma quem vai operar a tributação. E aqui voltamos ao ponto de partida (às epígrafes que abrem este texto).

Colbert nos ensinou, com brutal honestidade, que a arte da tributação consiste em depenar o ganso com o menor número possível de grasnidos. No Brasil, o sistema é tão caótico que o ganso não só grasna, como não entende sequer de onde vem a mão que o depena. E parte dessa desorientação nasce na graduação, pois formamos o operador jurídico sem que ele compreenda o sistema que sustenta financeiramente o Estado.

Kant nos lembra que o homem não é nada além daquilo que a educação faz dele. Logo, se o ensino jurídico ignora o conteúdo da EC nº 132 (mais do que isso, ignora o próprio Direito Tributário como ciência estruturante), então o bacharel em Direito não será apenas um sujeito mal preparado. Será um operador descolado da realidade, incapaz de compreender ou transformar o mundo normativo em que atua.

Por fim, Hannah Arendt nos recorda que educar é assumir responsabilidade pelo mundo. Diante das transformações constitucionais promovidas pela EC nº 132/2023, talvez seja o momento oportuno para que as diretrizes curriculares nacionais do curso de Direito sejam objeto de reflexão serena e colaborativa.

Sem prejuízo da autonomia universitária, parece legítimo ponderar se os parâmetros atuais de formação têm sido suficientes para preparar operadores jurídicos capazes de compreender e acompanhar as mudanças estruturais do sistema tributário. Trata-se, em última análise, de fortalecer a conexão entre ensino, realidade normativa e compromisso público, em benefício da própria democracia fiscal.

Do contrário, uma formação jurídica que silencia sobre o sistema em que vivemos forma bacharéis que também silenciam sobre o Estado, gerando um Estado sem operadores qualificados e vulnerável, confuso e, acima de tudo, injusto.

 


[1] MCKECHNIE, William Sharp. The State & the Individual: An Introduction to Political Science, with Special Reference to Socialistic and Individualistic Theories. Glasgow: James MacLehose and Sons, 1896. p. 77. Tradução Livre: A arte da tributação consiste em depenar o ganso de modo a obter a maior quantidade possível de penas com o menor número possível de grasnidos

[2] KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora Unimep, 1996. p. 15.

[3] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 247.

[4] FELCONT, Contabilidade Finanças e Auditoria. Gestão de tributos: Receita Para se Livrar do Manicômio Tributário Brasileiro. Disponível aqui.

[5] JORNAL DE BARRETOS. Brasil tem mais faculdades de Direito do que todos os países juntos. Disponível aqui.

[6] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 217

[7] CONSULTOR JURÍDICO. 8ª Selo de Qualidade OAB: confira os cursos de Direito recomendados. Disponível aqui.

[8] Para uma visão uma pouco mais aprofundada de como surge uma Instituição de Ensino Superior, com possibilidade de abertura de curso em Direito e temas relacionados, ver LEMOS FONTES, Luís Fernando Rocha. Cursos de direito, modalidade EaD e sobrestamento do MEC. Disponível aqui.



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