Opinião
Debates acalorados têm sido travados nas últimas semanas acerca da validade do aumento de IOF promovido pelo Decreto n° 12.466/25, editado pelo governo federal no apagar das luzes do último dia 22 de maio, por meio de edição extra do Diário Oficial.
Um primeiro aspecto que chamou a atenção de todos foi a produção quase que imediata de efeitos da maioria dos dispositivos do referido decreto, que passou a vigorar já a partir do dia seguinte.
A justificativa para tanto é que o IOF é um imposto extrafiscal, que funciona como uma ferramenta de regulação do mercado financeiro e de capitais, razão pela qual a Constituição (artigo 153, §1°) autoriza que mudanças no referido imposto sejam efetuadas por ato do Poder Executivo, com efeitos imediatos.
Há, portanto, uma mitigação dos princípios tributários da legalidade e da anterioridade no que se refere ao IOF, que poderia validar o ato baixado pelo governo federal.
Muitas dúvidas têm sido levantadas, porém, quanto à real motivação do Decreto n° 12.466/25, que, ao ter por finalidade precípua resolver um déficit fiscal do governo, não poderia ter sido aprovado sem a participação do Legislativo. De fato, o uso do IOF como instrumento de arrecadação, e não de regulação do mercado, configura um desvio de sua finalidade, que poderá motivar questionamentos judiciais e até mesmo o Congresso Nacional a aprovar um decreto legislativo tornando sem efeitos o ato do Executivo.
Competência para instituir e regular a cobrança
Sem prejuízo dessas críticas mais amplas à (in)validade das mudanças introduzidas pelo novo decreto, que chegou a sofrer ajustes já na manhã do dia seguinte (pelo Decreto nº 12.467/25), algumas críticas específicas devem ser feitas quanto à nova incidência prevista para as chamadas operações de risco sacado.
O novo decreto passou a tributar essas operações após simplesmente qualificá-las como operações de crédito, parecendo considerar que essa mera qualificação genérica já seria suficiente para autorizar a pretendida cobrança. O que o governo parece não ter se dado conta é que o IOF-Crédito não incide sobre toda e qualquer operação de crédito, mas apenas sobre algumas operações específicas contempladas pelo legislador. Com efeito, ainda que a CF atribua competência à União para a cobrança do IOF sobre operações de crédito, de forma ampla, ela incumbe ao Poder Legislativo a tarefa de instituir e regular essa cobrança, somente autorizando que o Poder Executivo, por ato infralegal, modifique a alíquota do imposto.
Nesse contexto, o que verificamos é que atualmente só há lei, em sentido estrito, instituindo e regulando a cobrança do IOF-Crédito sobre as seguintes operações de crédito: empréstimo sob qualquer modalidade (incluindo mútuos de recursos financeiros), abertura de crédito e desconto de títulos (artigo 2° da Lei nº 5.143/66; artigo 1° da Lei n° 1.783/80; artigo 58 da Lei n° 9.532/97; e artigo 13 da Lei n° 9.779/99). Logo, as operações de risco sacado somente poderiam ser submetidas à incidência do imposto, por ato infralegal, se estivessem compreendidas nos referidos conceitos. E não estão.
Spacca

De maneira geral, operações de risco sacado envolvem, fundamentalmente, um acordo/programa celebrado por empresas (em especial, varejistas) com instituições financeiras para viabilizar a antecipação de valores devidos a seus fornecedores, oriundos de operações celebradas a prazo.
Em tais operações, os fornecedores passam a ter a opção de solicitar à instituição financeira, a qualquer momento, o pagamento antecipado de seus recebíveis, mediante a cessão, com deságio, dos respectivos créditos contra essas empresas.
Tal cessão é realizada de forma definitiva e sem cláusula de coobrigação, permanecendo a empresa como devedora única do crédito em questão.
Ocorre que, nos empréstimos/mútuos de recursos financeiros, o mutuante entrega determinada quantia em dinheiro ao mutuário, que se obriga a restituir o mesmo valor em data futura, geralmente acrescida de juros. Há um fluxo de recursos do mutuante ao mutuário, seguido de um fluxo futuro em sentido inverso.
Já nos contratos de abertura de crédito, há um compromisso por parte do mutuante de disponibilizar recursos ao mutuário até determinado limite, durante certa época, sob cláusulas previamente convencionadas, existindo, subsequentemente, uma efetiva transferência de recursos ao mutuário, que fica obrigado a restituir o montante recebido ao mutuante em data futura. Novamente, verifica-se a existência de recursos que vão e voltam.
Por sua vez, os descontos de títulos são contratos por meio dos quais instituição financeira entrega recursos a seu cliente em antecipação a direitos creditórios por ele detidos contra terceiros (ainda a vencer e geralmente incorporados em títulos de crédito), que são cedidos à instituição financeira com um desconto (ou redução em seu valor de face) correspondente à sua remuneração na operação. Assim, a instituição financeira disponibiliza recursos ao cedente com a expectativa de reaver tais montantes (acrescidos do desconto) quando da realização do pagamento pelo devedor original, que é um terceiro.
Sem equiparação
Não obstante, há nos descontos de título a previsão de responsabilidade solidária ou coobrigação do cedente pelo crédito cedido, de maneira que, em última análise, também nessas operações pode-se dizer que há (juridicamente) uma circulação de recursos do cessionário/mutuante ao cedente/mutuário e em sentido inverso. Tanto é assim que o risco de crédito (credit rating) a ser analisado para fins de determinação da taxa de juros/desconto a ser aplicada é, em grande medida, o do cedente/mutuário, e não o do devedor original do crédito cedido.
As características acima apontadas das operações de empréstimo, abertura de crédito e desconto de títulos não são verificadas nas operações de risco sacado.
O fato de tal operação ser celebrada de forma definitiva e sem cláusula de coobrigação afasta qualquer possibilidade de equiparação da operação a um desconto de títulos. As próprias autoridades fiscais já reconheceram que as operações de cessão sem coobrigação não podem ser caracterizadas como um desconto de títulos (vide, por exemplo, Solução de Consulta de Divergência n° 9/2016).
Da mesma forma, tais operações não podem ser incluídas nos conceitos de empréstimo ou de abertura de crédito, na medida em que não envolvem um fluxo de recursos de ida e volta entre mutuante e mutuário, apenas um pagamento pela instituição financeira ao fornecedor, tendo como contrapartida a cessão de um crédito contra a empresa devedora original, que permanecerá como devedora única do crédito em questão.
Um aspecto adicional a ser destacado é que as operações de risco sacado muitas vezes também envolvem uma subsequente prorrogação no prazo de vencimento da dívida original, acordada com a instituição financeira mediante a cobrança de juros. Tal prorrogação, contudo, igualmente não pode ser equiparada a empréstimo, abertura de crédito ou desconto de títulos, na medida em que não resulta em um fluxo de recursos que vai e volta.
Nesse contexto, entendemos que as operações celebradas no âmbito dos acordos/programas de risco sacado, conforme compreendidas e descritas acima, estão fora do que hoje se define como campo de incidência do IOF-Crédito, sendo ilegal a exigência introduzida por meio de decreto pelo governo federal. Seria possível discutir, até mesmo, a validade da caracterização dessas operações como efetivas como operações de crédito.
O governo tem até legitimidade para propor essa cobrança, mas não de forma atropelada, por ato infralegal. É imprescindível que a matéria seja discutida e aprovada pelo Congresso, sob pena de violação à Constituição e ao princípio da legalidade.