Inadequação do termo ‘educação sexual’


Opinião

No campo das políticas públicas voltadas à infância, especialmente durante o “maio laranja” — campanha que, em tese, busca conscientizar sobre o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes — tem-se promovido com insistência a “educação sexual” nas escolas como estratégia de prevenção.

Mas é necessário, do ponto de vista jurídico e lógico, questionar com rigor essa terminologia. Seu uso indiscriminado, sobretudo quando dirigido a crianças e pré-adolescentes, representa uma ruptura frontal com a doutrina da proteção integral, basilar em nosso ordenamento jurídico.

O primeiro ponto que precisa ser evidenciado é a contradição jurídica entre a concepção da criança como sujeito em peculiar condição de desenvolvimento — consagrada pelo artigo 227 da Constituição, pelo artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelo artigo 19 da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) — e a ideia de que seria admissível implementar políticas públicas voltadas à “educação sexual” para menores de 14 anos.

O Código Penal, em seu artigo 217-A, estabelece com clareza que qualquer relação sexual com pessoa menor de 14 anos configura estupro de vulnerável, independentemente de consentimento. A presunção de incapacidade, nesse ponto, é absoluta — não se discute, não se relativiza.

Já a Lei 13.431/2017, em seu artigo 4º, inciso III, amplia o conceito de violência sexual para abarcar condutas que envolvam até mesmo a exposição da criança a atos libidinosos ou imagens com conotação sexual. Ou seja: não se pode admitir, sob qualquer pretexto, que essa faixa etária seja submetida a conteúdos que naturalizem ou antecipem experiências sexuais.

Por isso, quando se fala em “educação sexual” para menores de 14 anos [1] — especialmente na forma em que vem sendo implementada, com instruções sobre métodos contraceptivos, zonas erógenas, orientação sexual, expressão de gênero e práticas seguras — o que temos não é uma política de prevenção, mas uma pedagogia do consentimento precoce travestida de instrução cidadã.

Essa aberração jurídica revela não apenas um descompasso entre discurso e norma, mas uma deliberada desconsideração da doutrina da proteção integral, consagrada na Constituição e replicada no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Spacca

A criança e o adolescente, ali, são reconhecidos como sujeito de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. Não é um adulto em miniatura, tampouco um corpo disponível para ser moldado conforme as cartilhas ideológicas do momento.

Aliás, ensinar sobre o exercício da sexualidade àquele que não possui sequer capacidade jurídica e biopsicológica para consentir não é educação: é incentivo. É, para usar a linguagem do próprio ECA, uma violação do direito ao respeito e à dignidade (artigo 17), que assegura à criança a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral.

Isso porque a educação é um processo que, ainda que não prescritivo, é formativo: educar implica direcionar, orientar, preparar. E preparar alguém para o exercício de algo que ele não pode legitimamente exercer é, no mínimo, uma forma simbólica de legitimação indireta de uma conduta que o direito se propõe a combater com rigor.

Violação frontal a princípio

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 99.710/1990, é categórica ao afirmar, em seu artigo 14, que os Estados-parte devem respeitar os direitos e os deveres dos pais de orientar seus filhos conforme a evolução de sua capacidade. Tal princípio é reforçado e assegurado pelo artigo 229 da Constituição, que reconhece que é dever dos pais assistir, criar e educar os filhos menores.

No mesmo sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, ao afirmar a dignidade da pessoa e a universalidade dos direitos fundamentais, reconhece expressamente, em seu artigo 26, que “os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos”.

Portanto, o Estado, nesse contexto, não substitui a família, mas a auxilia, jamais a usurpa.

Mais ainda: o artigo 53, § único, do ECA é categórico quando dispõe que “é direito dos pais ou responsáveis ser informados sobre o processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais”.

Assim, qualquer política pública educacional que incida diretamente sobre a formação moral e sexual da criança sem consulta, ciência ou concordância dos pais, é ilegítima e inconstitucional. Trata-se de violação frontal ao princípio da proteção integral em sua dimensão familiar, pedra angular do Estatuto da Criança e do Adolescente, e ainda, de conduta que pode ser caracterizada como ato de alienação parental, haja vista a ingerência indevida sobre a formação psicológica e emocional do menor, mediante afastamento arbitrário do papel parental legítimo.

Não se trata aqui de ignorar a importância de medidas preventivas contra a exploração sexual, mas de apontar que a forma e a linguagem com que isso tem sido conduzido, em especial por meio do termo “educação sexual”, é tecnicamente inadequada e juridicamente perigosa.

A terminologia em si carrega uma ambiguidade que compromete o princípio da legalidade e permite que conteúdos impróprios para a idade infantil sejam introduzidos no ambiente escolar com aparência finalidade pública. Sob o manto da educação, institucionaliza-se a possibilidade de um tipo de exposição precoce à sexualidade que viola os princípios básicos da hermenêutica garantista. O Estado — que deveria tutelar a infância com zelo redobrado — assume postura permissiva e até promotora de uma transgressão ontológica: a da inocência infantil.

É aqui que reside o perigo: o termo “educação sexual” opera como uma armadilha semântica. Por fora, proteção; por dentro, doutrina. A expressão é ambígua, escorregadia, e abre margem para que conteúdos inapropriados sejam inseridos no ambiente escolar com aparência de política pública legítima. Nas entrelinhas, legitima-se a quebra da barreira entre a infância e a sexualidade. E o que deveria ser escudo se converte em lança.

Não estamos mais falando de lapsos pedagógicos, mas de um projeto de engenharia social com linguagem higienizada.

Porta aberta

Reprodução

A substituição da abstinência pela “instrução sexual” — ridicularizada pela academia [2] — revela a real intenção por trás desse projeto. Não se trata de impedir a sexualização precoce, mas de aceitá-la, desde que regulamentada, estéril, profilática. A pedagogia dominante grita: ‘Transar, pode. Engravidar, não’. A preocupação não é com o ato sexual precoce em si, mas com suas consequências físicas dele. Um raciocínio tão torpe quanto aquele que defenderia o ensino de mixologia nas escolas como política pública contra o alcoolismo juvenil.

E os arautos dessa mentalidade, com ares de ciência, ainda declaram: “A decisão de começar a vida sexual é uma questão de foro íntimo. As famílias já falam ‘não tenha, não faça [sexo agora]’, as religiões já dizem. O que cabe como política pública é oferecer todos os caminhos para os adolescentes.” Todos os caminhos — menos o da inocência. Menos o da proteção integral.

Ora, se a legislação brasileira proíbe o consentimento sexual antes dos 14 anos, é logicamente inadmissível permitir qualquer instrução pedagógica que normalize, estimule ou antecipe esse comportamento. Existe uma diferença clara e intransponível entre orientar crianças e pré-adolescentes sobre autoproteção contra abusos, o que é absolutamente legítimo e necessário – quando concretizado com participação ativa das famílias – e prepará-los para o exercício da sexualidade, o que é perverso e criminoso.

O uso persistente e institucionalizado do termo “educação sexual”, sem delimitações claras, sem balizas legais claras, sem fiscalização pedagógica, sem a participação das famílias, não é apenas um erro técnico — é uma autorização tácita para a desconstrução da vulnerabilidade. E, sim, estamos falando de uma porta aberta à pedofilia, ainda que disfarçada de política pública. Porque qualquer política que insinue à criança e o pré-adolescente a ideia de que ela é um ser sexual em potencial, passível de “educação” nesse sentido, antes mesmo do despertar natural e biológico da puberdade, está abrindo a margem para que a infância seja sexualizada em nome da prevenção.

Por isso, é preciso afirmar com clareza: o uso da expressão “educação sexual” para políticas públicas voltadas a crianças e pré-adolescentes é tecnicamente impreciso, juridicamente incabível e, na prática, um permissivo para a erosão silenciosa da proteção integral à infância.

É hora de rever, com seriedade e responsabilidade, não apenas as práticas pedagógicas, mas os próprios conceitos que as sustentam. Porque o primeiro passo para proteger a infância é não permitir que se legitime, sob o manto da prevenção, aquilo que a lei repudia como violação.

 


Bibliografia:

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível aqui.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível aqui.

BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 nov. 1990.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.

BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Marco Legal da Primeira Infância. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 mar. 2016.

BUENO, Rita Cássia Pereira; RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. História da educação sexual no Brasil: apontamentos para reflexão. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, [S. l.], v. 29, n. 1, p. 49–56, 2018.

JORNAL DA USP. Abstinência sexual em adolescentes já foi testada e não trouxe resultados. Disponível aqui.

REGINA, P. Corpos, gêneros e sexualidades: questões possíveis para o currículo escolar. Furg.br, 2013.

SUWWAN, Leila. ‘Aluno de 10 anos receberá educação sexual, afirma nova política federal’. Folha de São Paulo, 16 mar. 2005. Disponível aqui.

UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível aqui.

[1] SUWWAN, Leila. ‘Aluno de 10 anos receberá educação sexual, afirma nova política federal’. Folha de São Paulo, 16 mar. 2005. Disponível  aqui.

[2] JORNAL DA USP. Abstinência sexual em adolescentes já foi testada e não trouxe resultados. Disponível aqui.


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