Direito da Insolvência
Dentre os muitos institutos que foram afetados pela alteração promovida pela Lei nº 14.112/2020 no sistema de insolvência — Lei nº 11.101/2005, Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF) —, outrora relegada a segundo plano, a regularidade fiscal da devedora ganhou contornos de destaque e, sobretudo, certa celeuma quanto à sua exigibilidade.
Entretanto, não se pretende aqui discutir a necessidade de observância irrestrita do artigo 57 da LREF pelo devedor, da apresentação das certidões negativas de débitos fiscais ou daquelas positivas com efeito negativo, extraídas dos diversos entes tributantes; as mais recentes decisões pretorianas – depois de marchas e contramarchas a respeito da aplicação do artigo 57 da LREF – cuidaram de consolidar essa obrigatoriedade, como pressuposto da concessão da recuperação pelo juízo.
Ressalte-se, ademais, que o cerne deste trabalho não diz respeito, unicamente, à satisfação do requisito previsto no artigo 57 da LREF pelo devedor em recuperação judicial; o intuito é derivar a discussão para a recuperação extrajudicial que, antes olvidada, atualmente se mostra um tanto revigorada.
Desde a promulgação da lei a utilização de institutos menos contenciosos para resolução dos problemas do devedor em crise eram enfatizados como anota Fabio Ulhoa Coelho:
“…até a entrada em vigor da nova Lei de Falências, o direito brasileiro não estimulava soluções de mercado para a recuperação das empresas em estado crítico. Isto porque sancionava como ato de falência qualquer iniciativa do devedor no sentido de reunir seus credores para uma renegociação global das dívidas(…). Com a nova lei, muda-se substancialmente o quadro. Ao prever e disciplinar o procedimento da recuperação extrajudicial, ela cria as condições para a atuação da lógica do mercado na superação de crises nas empresas em crise” [1].
No mesmo sentido, o ilustrado Daniel Carnio Costa:
“Trata-se, portanto, de ferramenta alternativa e prévia à recuperação judicial, que permite a negociação direta e extrajudicial da devedora com seus credores e cujo acordo pode ser submetido à homologação judicial. A grande vantagem do instituto consiste no fato de que, preenchidos os requisitos legais, o acordo aceito pela maioria dos credores de uma determinada categoria ou classe (3/5) vinculará a todos os credores pertencentes à mesma categoria ou classe” [2].
Comente-se que o tema a ser esgrimido no presente, e sem qualquer ambição de esgotá-lo, versa o atualmente propalado requisito da comprovação da regularidade fiscal, mas em sede de recuperação extrajudicial, ou seja, se imprescindível a vinda das certidões para a homologação da negociação quando trazida a juízo.
Antes de proceder à análise, cabe um registro: a indagação que deu azo ao presente surgiu em face de caso concreto; ao encaminhar o acordo firmado em recuperação extrajudicial para análise prévia do órgão do Ministério Público, o juízo sinalizou a incumbência de satisfazer o requisito contido no artigo 57 da LREF ao devedor. Esse dado vem reforçar o assentado em artigo pretérito, de que o Direito positivo só se materializa quando levado à dinâmica da vida e da vida forense [3].

Nilton Belli Filho, promotor
Assim, sabe-se que a recuperação extrajudicial é um dos mecanismos dispostos na LREF para permitir a reestruturação de devedores em crise, por meio de acordos celebrados com parte de seus credores, sem que isso implique o ajuizamento do pleito na forma contenciosa.
Virada jurisprudencial
Conforme já alvitrado, a promulgação da Lei nº 14.112/2020 produziu consideráveis modificações na então vigorante LREF e, assim, novas exigências foram incorporadas ao sistema de insolvência; contudo, a necessidade de regularidade fiscal da empresa requerente prevista no artigo 57 da LREF permaneceu intocada e, até pouco tempo, passava despercebida.
Isso porque prevalecia o entendimento da incompatibilidade entre a comprovação da regularidade fiscal e o princípio da preservação da empresa, cânone ínsito ao sistema recuperacional [4] [5].
Evidente que a grossa maioria dos devedores em crise possui pendências com o Fisco e, como este não participa do concurso recuperacional, privilegiava-se o soerguimento da atividade empresarial em detrimento do requisito contido no artigo 57 da LREF [6]; incompossíveis a regularidade fiscal com a preservação da atividade do devedor, e sua cabal reestruturação [7] [8].
No entanto, o panorama jurisprudencial se modificou e a comprovação da regularidade fiscal se tornou obrigatória; a falta de comprovação desse requisito pelo devedor em recuperação pode ensejar a suspensão do processo ou, até mesmo, imediata convolação em falência [9].
Com efeito, se o devedor não comprovar sua regularidade fiscal, o processo de recuperação pode ser suspenso e isso resulta na retomada das execuções individuais e até de pedidos de falência [10]; tal exigência, relembre-se, veio reforçada com a promulgação da Lei 14.112/2020, que ampliou o prazo de parcelamento dos débitos tributários para dez anos, a facilitar a regularização fiscal das pessoas jurídicas em recuperação.
Noutro flanco, da leitura dos dispositivos do Capítulo VI da LREF que abrange o instituto da recuperação extrajudicial (artigos 161 a 167) não se identifica tópico atinente à regularidade fiscal, tampouco remissão ao citado artigo 57 da LREF; sequer por interpretação sistemática da legislação se verifica.
Em certeiro ensinamento, Paulo Dourado de Gusmão fornece o caminho para essa interpretação normativa:
“Interpretar o direito é, a nosso ver, estabelecer o sentido atual da norma, não o sentido retrógrado e nem aquele que de forma alguma poderia dela ser inferido, mas o que se depreende do texto ajustado à realidade social. Para descobri-lo, o intérprete deve pensar como homem de sua época, e não como homem do tempo em que a lei foi sancionada. Assim, o sentido da lei deve ser atual, e não retrógrado e nem revolucionário.
Mas o sentido atual da norma dado pelo intérprete tem de ser compatível com o texto interpretado e com o sistema jurídico. Portanto, a letra da lei interpretada e o sistema jurídico a que ela pertence limitam a liberdade do intérprete. Há um momento em que o intérprete não pode ir além, momento em que não pode mais modernizar, sob pena de abandonar o direito constituído, para criar direito, a pretexto de interpretá-lo. Isto porque a norma tem potencialidades literárias limitadas e esgotáveis” [11].
Como se sabe, a recuperação extrajudicial distingue-se da judicial por sua natureza mais célere e consensual. Porém, mesmo nesse modelo simplificado, o legislador impôs requisitos que visam garantir a boa-fé e a viabilidade do plano apresentado.
E nessa esteira, nada obstante a proteção do interesse público na arrecadação de tributos e a preservação da isonomia entre os credores a evitar que o Fisco seja preterido em relação aos demais, em quaisquer dos prismas observados, a apresentação de certidões negativas de débitos tributários, ou certidões positivas com efeitos de negativas, afigura-se despiciendo.
De imediato não se constata a necessidade de comprovação da regularidade fiscal do devedor que pleiteia a recuperação extrajudicial. À semelhança da recuperação judicial, na extrajudicial também não a integram os créditos fazendários; os respectivos entes tributantes conservam intactos seus direitos e o mecanismo da execução fiscal subsiste em prol do credor público, cuja tramitação não fica sobrestada (v. artigo 163, §8º, da LREF).
Do ponto de vista da estrita legalidade, ou da interpretação sistemática dos dispositivos da LREF, a comprovação da regularidade fiscal não se justifica para a homologação, em que pese o juízo – no apontado caso concreto – assim tenha sufragado.
Em oposição à recuperação judicial que, como aduzido, demanda certidões negativas (ou positivas com efeitos negativos) dos débitos fiscais, a recuperação extrajudicial não impõe tal obrigação. Essa conclusão se deflui tanto da literalidade da lei quanto do próprio sistema de insolvência; ademais, os créditos fiscais não ficam sujeitos ao ajuste a ser entabulado entre devedor e credores.
Quesitos para a homologação
Mesmo mais flexível, a recuperação extrajudicial possui alguns pressupostos a serem observados para a homologação em juízo: 1) acordo com credores, ou seja, o plano deve ser aceito por pelo menos 60% dos credores de cada classe envolvida; 2) não estar em recuperação judicial, ou seja, o devedor não pode estar simultaneamente em recuperação judicial e submeter-se à extrajudicial; 3) exercer atividade empresarial regularmente há mais de dois anos; 4) não ser falida, ou, se já foi, ter suas obrigações extintas. Porém, dos itens enunciados não se constata a condição da comprovação da equalização do passivo tributário pelo devedor a redundar na homologação judicial de seu plano de reestruturação.
A recuperação extrajudicial permite que o devedor negocie diretamente com os credores, sem as eventualidades de um processo contencioso complexo, a envolver custos, burocracia, delonga, caprichos forenses, entre outros fatores a serem sopesados; portanto, em prol de maior celeridade e intuito de resolver suas pendências, o devedor opta pelo caminho da recuperação extrajudicial que, consabido, lhe confere algumas benesses não previstas na via jurisdicional.
Indubitável que manter a regularidade fiscal pode ser importante para a sociedade em busca do soerguimento, especialmente se houver negociações paralelas com a Fazenda, por intermédio da transação tributária; no entanto, a transação tributária pode ser perseguida paralelamente ao plano de recuperação extrajudicial, ou seja, enquanto o devedor negocia suas dívidas o Fisco, também o faz perante os credores privados [12].
Vale lembrar que a recuperação extrajudicial se amolda ao procedimento de jurisdição voluntária no qual a negociação entre credor e devedor é desenvolvida extramuros e só levado o ajuste ao conhecimento do Poder Judiciário para a chancela oficial. De fato, é “procedimento de jurisdição voluntária cuja finalidade é homologação de acordo privado anteriormente celebrado entre devedor e certo (s) grupo (s) de credores. Observadas certas formalidades legais, a homologação judicial tem o condão de alçar o acordo privado à condição de plano de recuperação extrajudicial (…que) tem, portanto, natureza contratual” [13]
Assim sendo, inserir nesse contexto a obrigatoriedade de apresentação de documentos intrinsecamente públicos, e jungidos a credor extraconcursal que tem à disposição outros mecanismos para exigir seus valores, atenta não só contra a interpretação da legislação em vigor — literal e sistemática — mas também contra a concepção privatística inerente ao instituto da recuperação extrajudicial.
[1] Comentários à lei de falências e de recuperação de empresas, 11 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016 pág..525-526.
[3] aqui
[6] “Respeitado o pensamento ou posicionamento divergente, tenho que se assim não for, efetivamente, não haverá sentido para a existência da lei de insolvência e, especificamente, do instituto da recuperação judicial, mormente porque toda a empresa que se utiliza desse procedimento legal se encontra sempre com passivo tributário como é sabido” (cf. MARCELLO DO AMARAL PERINO e FABIO RODRIGUES GARCIA, A Exigência da Certidão Negativa de Débito para a Concessão da Recuperação Judicial e as Alterações Trazidas pela Lei 14.112/2020 in Recuperação Empresarial e Falência – Aspectos Práticos, 2022, Thoth Editora, pág.257, org. Daniel Carnio Costa, Felipe Herdem Lima e Juliana Bumachar)
[11] Introdução ao Estudo do Direito, 19ª edição, 1996, ed. Forense, pág.240, grifo nosso.
[13] cf. LUIZ FERNANDO VALENTE DE PAIVA e JOANA BONTEMPO, A Reforma da Lei 11.101/2005 e a Nova Perspectiva da Recuperação Extrajudicial in Reforma da Lei de Recuperação e Falência – Lei 14.112/2020, São Paulo, IASP, 2021, pág.1175, org. RONALDO VASCONCELOS e outros.