

Seja em razão das discussões sobre sua natureza objetiva, dos efeitos decorrentes da aplicação da teoria do risco integral ou, ainda, da amplitude da solidariedade entre os responsáveis, a responsabilidade civil ambiental continua gerando diversas dúvidas e controvérsias quanto à sua aplicação prática.
Fundação Renova

Esse cenário de incerteza foi agravado com a edição da Súmula nº 623 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) — “As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor.” —, cuja redação genérica e pouco aderente à jurisprudência que a precedeu tem comprometido a segurança jurídica, especialmente em operações que envolvem, direta ou indiretamente, a transferência de imóveis.
Súmula nº 623 do STJ e Tema 1.204
Em 2018, o STJ editou a Súmula nº 623, cujo enunciado foi construído a partir da análise de nove acórdãos proferidos entre 2009 e 2017. Esses julgados trataram de forma recorrente da responsabilidade civil por danos ambientais, especialmente quanto à natureza propter rem das obrigações ambientais e à possibilidade de sua imputação a diferentes titulares de direitos sobre o imóvel. Dentre os entendimentos consolidados nessas decisões, destacam-se:
- a preservação das áreas de preservação permanente (APPs) e das áreas de reserva legal (ARLs) constitui obrigação propter rem, sendo irrelevante se (e a que título) a propriedade foi transmitida a outrem;
- a obrigação de conservação é automaticamente transferida do alienante ao adquirente, independentemente de este ter contribuído para o dano ambiental. Ou seja, o novo proprietário que adquire imóvel sem cobertura florestal recebe a coisa em estado de permanente violação da legislação ambiental, de modo que, até que a cobertura vegetal nativa seja recomposta, há descumprimento renovado e a cada instante das disposições do Código Florestal;
- a obrigação de demarcar, averbar e restaurar ARL constitui limitação administrativa ao uso da propriedade privada a fim de tutelar, defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações; e dever jurídico, que se transfere automaticamente com a transferência de domínio, podendo, por isso, ser imediatamente exigível do proprietário atual, independentemente da boa-fé do adquirente ou de outro nexo causal.
Mais recentemente, em 2023, o STJ afetou os recursos especiais nº 1.953.359/SP e nº 1.962.089/MS ao rito dos recursos repetitivos (artigo 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil), inaugurando o Tema nº 1.204. As discussões culminaram na proposição da tese que isenta de responsabilidade civil ambiental o alienante que não tenha contribuído direta ou indiretamente com a origem do dano e cujo direito real sobre o imóvel tenha cessado antes de iniciado referido dano.
Assim, textualmente, houve mero esclarecimento acerca da aplicação Súmula 623 — “As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente”.
Controvérsias em torno da Súmula 623 e da natureza propter rem das obrigações ambientais
O artigo 926, caput do Código de Processo Civil estabelece que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência, assegurando sua estabilidade, integridade e coerência. Uma das formas de concretizar essa diretriz é a edição de súmulas, que devem refletir as circunstâncias fáticas dos precedentes que as originaram, conforme disposto no §2º do mesmo artigo. Contudo, a Súmula 623 suscita controvérsias por sua generalidade, que parece desviar-se dessa exigência.
A análise dos nove julgados que fundamentaram a Súmula 623 revela que, com exceção do AgRg no REsp 1.254.935-SC, que aborda as obrigações ambientais de forma genérica, e do REsp 1.090.968/SP, que remete ao REsp 650.728/SC — este reconhecendo a natureza propter rem das obrigações ambientais decorrentes do depósito ilegal de resíduos no solo —, os demais casos versam, em maior ou menor grau, sobre obrigações relacionadas às APPs e às ARLs. Apesar disso, a redação ampla da Súmula 623 sugere que toda obrigação ambiental, independentemente, de sua natureza, possui caráter propter rem, sendo transmissível ao adquirente do imóvel em caso de alienação.
Spacca

Essa generalidade gera incerteza jurídica. Por exemplo, seria possível afirmar que o adquirente de um imóvel sucede o alienante em qualquer obrigação ambiental de fazer ou não fazer, como, por exemplo, a obrigação de descontaminar solo contaminado por substâncias químicas ou resíduos industriais? Embora a redação da súmula endosse tal interpretação, a predominância de casos ligados a APPs e ARLs nos precedentes sugere uma aplicação mais restritiva, criando incertezas.
Obrigações ambientais
Também se questiona se o fato de apenas um julgado — o AgRg no REsp 1.254.935-SC — abordar obrigações ambientais de forma genérica possibilita a ampliar o alcance da Súmula 623 para englobar todas as obrigações ambientais, tais como as obrigações de indenização por danos materiais e indenização por danos morais coletivos. Julgados do STJ posteriores à Súmula 623 (AgInt no AREsp 2.559.925/SC e REsp nº 1.877.192/PR) sugerem que tais obrigações indenizatórias também possuem caráter propter rem, equiparáveis às obrigações de fazer e não fazer. Essa ampliação, porém, carece de maior embasamento nos precedentes originais.
Outro ponto de reflexão refere-se às obrigações de manejo de resíduos sólidos, atualmente regulamentadas pela Política Nacional de Resíduos Sólidos. Embora o REsp 650.728/SC, mencionado no REsp 1.090.968/SP, tenha tratado de depósito ilegal de resíduos, ele não integra os precedentes da Súmula 623, e o enunciado não faz menção explícita a esse tipo de obrigação. Assim, permanece incerto se obrigações como reciclagem ou destinação adequada de resíduos sólidos estariam abarcadas pela natureza propter rem.
Embora a Súmula 623 e o Tema Repetitivo 1.204 do STJ busquem conferir previsibilidade à responsabilidade civil ambiental, persistem incertezas interpretativas. A falta de clareza quanto ao alcance das obrigações propter rem, especialmente no que tange à solidariedade entre adquirente e alienante e à inclusão de obrigações indenizatórias, evidencia que a matéria ainda está em construção. Novos delineamentos jurisprudenciais serão necessários para harmonizar a aplicação da súmula e garantir a segurança jurídica no âmbito da responsabilidade ambiental.