Opinião
A infração ambiental como causa de resilição dos contratos agrários que tratam do uso e posse da terra e do exercício de atividade pecuária, agrícola, extrativa, agroindustrial ou mista é relevante questão que nos deparamos nessa área da advocacia e que muito pouco é enfrentada.
Tânia Rêgo/Agência Brasil
Sabemos que o contrato é um negócio jurídico de manifestação de vontade que gera efeitos jurídicos e é normatizado a partir do artigo 104 do código civil (2002). Já a Constituição, o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64) e a regulamentação pelo Decreto nº 59.566/66 são bases legais das relações agrárias.
O contrato agrário, ou rural, em linhas gerais, é um acordo que legalmente regula as relações entre proprietários rurais e terceiros, como arrendatários, parceiros ou trabalhadores rurais, estabelecendo direitos e obrigações. São contratos utilizados para diversas finalidades, como arrendamento de terras, comodato rural, parceria agrícola, entre outros.
Dentre os princípios do direito contratual destacamos a autonomia de vontade e a liberdade contratual. Maria Helena Diniz, à página 40 do Curso de Direito Civil Brasileiro (2011), [1] conceitua autonomia da vontade como “o poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontade, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica”. Para Orlando Gomes, à página 28 da obra Contratos (2008) [2], o princípio da liberdade de contratar consiste “no poder que os indivíduos têm de declarar sua vontade e suscitar efeitos reconhecidos e tutelados pela ordem jurídica, sendo as partes capazes de provocar o nascimento de um direito ou de uma obrigação”.
Contrato de uso e posse da terra
O ponto aqui ventilado é no caso de inexistência de disposição específica contratual em contratos de uso e posse da terra. Adianto que, na ausência de cláusula sobre resguardo ao meio-ambiente, tenho que o contrato não pode ser rescindido de forma independente e exclusiva por alegada infração ambiental (ou ausência de cautela aos recursos naturais). E mais: a validade do contrato deve ser analisada, haja vista que a legislação referente aponta obrigatoriedade de cláusulas específicas.
O Estatuto da Terra [3] assevera, no artigo 96, que “a posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agro-industrial e extrativa, nos termos desta Lei”.
Aduz o artigo 13 do Decreto nº 59.566/66 [4] que “nos contratos agrários, qualquer que seja a sua forma, contarão obrigatoriamente, clausulas que assegurem a conservação dos recursos naturais e a proteção social e econômica dos arrendatários e dos parceiros-outorgados a saber”. Ou seja, é obrigatória a existência de cláusulas que visem resguardar os elementos do meio-ambiente, como água, vegetação e minerais, e a sua ausência pode acarretar nulidade (o que tratarei em uma próxima oportunidade).
Spacca
O artigo 27 do mesmo decreto supracitado aponta: “O inadimplemento das obrigações assumidas por qualquer das partes, e a inobservância de cláusula asseguradora dos recursos naturais, prevista no art. 13, inciso II, letra “c”, dêste Regulamento, dará lugar facultativamente à rescisão do contrato, ficando a parte inadimplente obrigada a ressarcir a oura das perdas e danos causados (art. 92, § 6º do Estatuto da Terra)”.
Portanto, inexistindo cláusulas específicas, à luz do ordenamento citado, não há justa causa, direta, para rescisão do contrato rural por infração ambiental.
Função social do contrato rural
Mas e quanto à função social da propriedade e do contrato rural e os seus reflexos ambientais, eles podem levar à rescisão direta mesmo em caso de inexistência de cláusulas obrigatórias estipuladas pelas partes envolvidas?
Antes, diga-se que podemos tratar como cláusula penal o dano ambiental que gere uma notícia de distrato, por assunção lógica do artigo 408 do CC/2002 [5]. Ocorre que, como já assentou o STJ no REsp 1.691.008 [6], “a cláusula penal não resulta automaticamente da lei, tampouco da natureza do contrato, dependendo a sua exigência de prévia pactuação entre as partes”. Entendimento qual me filio, que sem pena convencional pactuada não há como se requerer o cumprimento dela.
Algum estudioso e crítico operador do direito poderá levantar a figura da função social à atrair a rescisão contratual por dano ambiental mesmo em caso de inexistência de cláusulas previamente pactuadas sobre o fato. E já enfrentando a pergunta acima, a função social não tem o condão de forma autônoma levar ao distrato por existência de dano ambiental.
O legislador pátrio institui função social ao contrário agrário, corolário da função social da propriedade rural, na Constituição e no Estatuto da Terra, regulamentada pelo Decreto nº 59.566/66. Entre as condições que englobam a função social da propriedade rural está a proteção ao meio-ambiente, como assevera o artigo 186, II, da Constituição [7], complementando o artigo 5º, XXIII do mesmo diploma:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
Também o Código Civil aduz sobre a função social do contrato, no artigo 421: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.” Eis aqui a exceção, o limite à autonomia da vontade contratual, exigindo que os contratos não se limitem a atender apenas aos interesses individuais, mas também que respeitem os interesses sociais, entre eles o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, esculpido no artigo 225 da Constituição.
Ocorre que a função social da propriedade é um conceito jurídico indeterminado, sujeito a interpretações, já que os regramentos detém critérios genéricos, como os citados artigo 5º, XXIII, e 186 da Constituição, artigo 421 do Código Civil e também do artigo 2º, §1º, “c”, do Estatuto, que aduz:
Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
Veja-se que o §1º do artigo supracitado meramente passa a elencar algumas situações quanto à propriedade desempenhar a sua função social, sem propriamente conceituar “função social”. Já a alínea “c” trata que deve ser “assegurada”, ou garantida a conservação dos recursos naturais.
Dano ambiental
As partes envolvidas em um contrato rural podem aplicar esforços para conservação de recursos naturais e mesmo assim haver ocorrência de dano ambiental — sem deixar de ser desempenhada a função social. Não, não trata-se posição paradoxal.
Isso porque, por exemplo, no caso de conversão de campo nativo em lavoura sem autorização do órgão ambiental, o fato pode (possibilidade e não certeza) ter um impacto significativo na conservação de recursos como solo e água como também a conversão pode não imprimir nenhum efeito prático danoso aos recursos naturais. Logo, não haveria mácula à função social do contrato rural e da propriedade. E por concatenação lógica, não geraria autorização da intervenção do Estado sobre o contrato particular.
O Estado não tem ingerência sobre o contrato particular. Há exceção, claro. Em uma interpretação constitucional, democrática e republicana do princípio da intervenção mínima do Estado, tem-se que o Estado não deve interferir na forma como os particulares celebram seus contratos, a menos que haja uma razão legítima para tal.
E se o Estado deve intervir o mínimo possível nas relações contratuais particulares, não há justa causa para declaração de rescisão contratual em cuja convenção não preveja cláusula sobre dano ambiental, a não ser que esse dano tenha comprovadamente potencial lesivo com consequências ambientais extensas e avassaladoras, ante os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Além disso é preciso tratar da prova, da comprovação efetiva da existência e extensão de dano ambiental ou de prática que não assegurou a conservação de recursos ambientais. Entramos portanto em outro campo jurídico — o probatório —, de que o ato ilícito só se confirma existente com a comprovação indubitável pela prova pericial, nos casos ambientais. Afasta-se, portanto, a mera existência de procedimentos investigativos/apuratórios ou processos na esfera penal, cível e administrativa, na tríplice responsabilidade ambiental.
Não se desfoca a poluição, o dano ao meio-ambiente e aos recursos naturais. Aponta-se aqui tecnicamente a relação contratual rural e o reflexo dissolutivo, no sentido que a o dano ambiental por si só não tem o condão de levar à rescisão contratual direta (automática) no caso de inexistência de cláusula contratual específica.
Por fim, cumpre frisar que teremos sempre que adentrar na seara conhecida de que cada caso deve ser analisado pelos advogados dos contratantes, peritos ambientais e julgadores. E assim o direito agrário, ambiental, rural e do agronegócio — áreas que se relacionam junto ao direito civil e penal (entre outros) — continuarão sendo amoldados à luz da prática, dos regramentos e do direito dos envolvidos, com vistas à harmonia social e segurança jurídica.
[1] Curso de direito civil brasileiro / Maria Helena Diniz. São Paulo, Saraiva, 2011. 28 ed.
[2] GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed. Atualizada por Antônio Junqueira de Azevedo e. Francisco Paulo de Crescenzo Marino. Rio de Janeiro: Forense, 2008
[5] Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.
[7] aqui