Responsabilidade subsidiária da tomadora na terceirização


Opinião

Embora exista previsão legal em súmula e, desde 2017, em lei, de que a responsabilidade patrimonial da tomadora de serviços, na terceirização, seria automática pela inadimplência simples da prestadora, em relação a direitos trabalhistas, será que seria realmente justo e até mesmo constitucional responsabilizar indiscriminadamente toda e qualquer tomadora de serviços?.

Na terceirização de serviços, uma empresa denominada de “contratada” transmite suas atividades para outra empresa denominada de “tomadora”, por meio de um contrato de prestação de serviços de natureza civil/comercial na forma prevista pelo artigo 730, do Código Civil.

Essa espécie de terceirização dos serviços pode ser relativa às atividades-meio da empresa que terceiriza ou às atividades principais (atividades fim), conforme já autorizado pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário (RE) nº 958.252, Tema 725, uma vez que, pela antiga redação da  Súmula 331, do TST, era proibida esta segunda espécie de terceirização.

Ou seja, ambas as hipóteses de terceirização são admitidas atualmente e podem estar previstas e reguladas, através de um contrato de prestação de serviços de natureza civil, firmado entre a contratante e a tomadora, desde que as partes sejam maiores, capazes e o objeto da contratação lícito ou não defeso em lei.

No entanto, embora o contrato de terceirização seja considerado como legal, surtindo efeito entre as partes contratantes, desde 2017, com a denominada reforma trabalhista, existe uma hipótese legal que relativiza tais efeitos, mormente no caso de a prestadora dos serviços terceirizados tornar-se simples devedora de obrigações trabalhistas de seus empregados, dívida esta que poderá ser cobrada da tomadora dos serviços, mesmo que esta última não tenha dado causa ao inadimplemento, responsabilidade esta denominada de subsidiária, conforme preconiza o artigo 5-A, § 5º, da Lei 6.019/1974.

Segundo a redação do artigo 5-A, § 5º, da Lei 6.019/1974, nesta modalidade de responsabilidade, a tomadora dos serviços responderá automaticamente pelas dívidas trabalhistas contraídas pela prestadora dos serviços, somente pelo fato de esta última tornar-se inadimplente.

Inconstitucionalidade na Lei 6.019

Isto significa que, mesmo havendo cláusula contratual imputando eventual dívida trabalhista como de responsabilidade exclusiva da prestadora contratada, a tomadora contratante responderá pelo simples inadimplemento daquela.

Isto torna tal cláusula letra morta e sem qualquer efeito perante o credor trabalhista (e até mesmo entre as próprias partes signatárias), ficando a tomadora desprotegida e sujeita a responder por uma dívida de terceiros adquirida por outra empresa (a prestadora) somente pelo liame contratual comercial existente  entre ambas, a despeito de serem duas pessoas jurídicas absolutamente  independentes e do contrato presumir-se como válido e lícito.

Spacca

Tal situação nos leva a questionar acerca da inconstitucionalidade do artigo 5-A, § 5º, da Lei 6.019/1974 que prevê essa responsabilidade subsidiária de forma indistinta entre particulares, diante de provável violação do princípio constitucional da livre iniciativa insculpido pelo 1º, inciso IV, e 170 da CF/88.

Ademais, a responsabilidade subsidiária da tomadora dos serviços por dívida trabalhista contraída pela prestadora é objetiva, da forma como prevista no texto legal do artigo 5-A, § 5º, da Lei 6.019/1974, independente de culpa in eligendo in vigilando da tomadora, diferentemente do que ocorre quando o tomador dos  serviços é o poder público, o que fere o princípio constitucional da isonomia previsto no artigo 5º, caput, da CF/88 e até mesmo o da segurança jurídica da relação entre particulares, inciso XXXVI do artigo 5º, da CF/88.

Isso porque, enquanto a simples inadimplência do prestador é motivo para responsabilizar o tomador dos serviços enquanto particular (responsabilidade objetiva), quando a tomadora é a administração pública, o credor trabalhista deverá comprovar a culpa na escolha e na fiscalização da prestadora de serviços contratada (responsabilidade subjetiva), acarretando um tratamento desigual injustificado e manifestamente inconstitucional.

Ora, se não se pode presumir a culpa da administração pública, enquanto tomadora dos serviços, do mesmo modo não se poderia presumir a culpa do tomador de serviços quando este é um particular, pela simples inadimplência.  A presunção é de legalidade e não o contrário, sob pena de todo e qualquer contrato  de prestação de serviços terceirizados ser considerado sem efeito – menos para o poder público.

Lógica principiológica constitucional

Vale ressaltar que o STF vem revendo posicionamentos, muitos deles na área de direito do trabalho, assegurando princípios constitucionais aplicáveis à espécie, notadamente no que tange a livre iniciativa, a presunção de legalidade e  da autonomia da vontade em relação às relações de trabalho, a exemplo do que ocorreu no julgamento do Tema 725 e na ADPF 324, em que a questão central  consistiu na possibilidade da terceirização da atividade-fim e da responsabilidade  solidária/subsidiária do tomador de serviços (Súmula 331 do TST).

No Tema 725, ainda em debate no STF, há o entendimento assentado pela Suprema Corte acerca da licitude da “terceirização de atividade-fim e meio” e da denominada terceirização por “pejotização”, uma espécie de presunção lógica e absoluta sobre a legalidade desse contrato, seguindo uma tendência de  relativização e flexibilização das normas trabalhistas e de garantia do efeitos do  princípio da mínima intervenção do poder estatal nas relações entre particulares, conforme voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes, abaixo transcrito:

Dessa forma, os únicos produtos da aplicação da então questionada  súmula 331/TST, no contexto da distinção entre atividade-meio e  atividade-fim, mostrou-se ser a insegurança jurídica e o embate  institucional entre um tribunal superior e o poder político, ambos  resultados que não contribuem em nada para os avanços econômicos e  sociais de que temos precisado. Registrei, ainda, que o que se observa  no contexto global é uma ênfase na flexibilização das normas  trabalhistas.”  

Não foi outro o entendimento assentado no voto condutor do Tema 725,  rel. min. Luiz Fux, segundo o qual os valores constitucionais do trabalho  e da livre iniciativa são intrinsecamente conectados, em uma relação 

dialógica que impede seja rotulada determinada providência como  maximizadora de apenas um desses princípios, porquanto é essencial  para o progresso dos trabalhadores brasileiros a liberdade de  organização produtiva dos cidadãos, entendida essa como balizamento  do poder regulatório para evitar intervenções na dinâmica da economia  incompatíveis com os postulados da proporcionalidade e da  razoabilidade.  

No mesmo sentido, cito o julgamento da ADI 5.625, no qual esta  Suprema Corte, por maioria, julgou improcedente o pedido,  reconhecendo a validade dos contratos de parceria formalizados entre  trabalhador do ramo de beleza (profissional-parceiro) e o  estabelecimento (salão-parceiro). Confira-se a ementa do julgado: No  mesmo sentido, cito o julgamento da ADI 5.625, no qual esta Suprema  Corte, por maioria, julgou improcedente o pedido, reconhecendo a  validade dos contratos de parceria formalizados entre trabalhador do  ramo de beleza (profissional-parceiro) e o estabelecimento (salão parceiro).

O princípio da autonomia da vontade confere às partes a liberdade de estipular as cláusulas contratuais e o tipo de contrato que lhes favorecer, conforme  dispõe o parágrafo único do artigo 421 do Código Civil: “Nas relações contratuais  privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer  dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional“.

E como fundamento ao princípio da autonomia da vontade, temos o “Princípio da Intervenção Mínima do Estado”, que minimiza a interferência dos três poderes do Estado nas relações contratuais privadas, segundo o qual seria defeso a revisão judicial do contrato, salvo em casos excepcionalíssimos para se fazer cumprir os princípios da supremacia da ordem pública, da função social do contrato e da boa-fé objetiva.

Ademais, em que pese a obrigatoriedade dos contratos e a intervenção mínima do Estado, muitos juízes são contrários a essas premissas e decidem pela revisão contratual, modificando cláusulas previamente pactuadas pelas partes, o que leva a uma insegurança jurídica que deveria ser combatida e não patrocinada pelo Poder Judiciário.

A Lei nº 13.874/19 introduziu a denominada “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, estabelecendo normas de proteção à livre iniciativa, ao livre  exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador para dar eficácia ao artigo 170 da CF/88 e aos princípios  da ordem econômica contidos no artigo 174 do texto constitucional, alterando  inclusive o texto do artigo 421, parágrafo único, do Código Civil que passou a assim vigorar:

“Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função  social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019).

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o  princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.”

Isso significa que, em regra, os contratos devem ser cumpridos exatamente como foram firmados, e qualquer revisão ou ingerência do Estado deve ocorrer apenas em casos excepcionais, como quando há abuso de uma das partes  ou quando o contrato não cumpre sua função social.

A ideia central desse princípio no âmbito contratual é que os indivíduos são livres para estabelecer as condições de seus acordos, desde que respeitem os  limites da lei e os princípios da boa-fé e da função social. Isso dá mais previsibilidade às relações contratuais e evita que decisões externas prejudiquem os interesses legítimos das partes envolvidas.

E essa mesma lógica principiológica constitucional, que se aplica aos  contratos em geral e aos contratos de autônomo ou “PJ”, como recentemente aplicado pelo Supremo deveria funcionar para a preservação da legalidade e eficácia dos contratos de terceirização, inclusive.

Da mesma forma, como o STF já reconheceu que a terceirização é lícita  para todas as atividades empresariais, inclusive as chamadas atividades-fim, certamente deverá reconhecer que a contratação entre tomadora e prestadora de serviços é válida e eficaz entre as partes contraentes e alcança o credor trabalhista,  que deve comprovar a ilegalidade ou fraude desta contratação.

Comparativo

Para além do debate, tracemos um paralelo com empresas públicas e sociedade de economia mista que funcionam em uma estrutura organizacional  idêntica às empresas particulares ou pessoas jurídicas de direito privado.

Sob este aspecto, o TST compreendeu que para responsabilização subsidiária da Petrobras “…depende de prova robusta e inequívoca da ausência  sistemática de fiscalização, quanto ao cumprimento das obrigações trabalhistas  pela prestadora, ônus que incumbe ao empregado” (TST–7ª Turma –Processo nº AIRR 0000497-63.2011.5.02.0255 – Decisão: 5/3/2018 – Tipo: AIRR–Partes Agravante: Petróleo  Brasileiro S/A -Petrobras–Petrobras –1º Agravado: Lucivalto José de Sousa – 2º Agravado:  Intertechma Tecnologia LTDA. Ministro relator: Cláudio Brandão).

Ora, se para Petrobras, uma gigante do setor, vale a presunção de validade do contrato de prestação de serviços ou de terceirização de serviços dependendo de prova de culpa para a sua relativização, por que essa presunção não valeria para empresas do setor privado, funcionando também para o particular  comprovar culpa in eligendo in vigilando na execução do contrato de prestação de  serviços?

Sob o pálio do princípio constitucional da isonomia, assim como a Petrobras, pensamos que as tomadoras dos serviços não podem assumir automaticamente os riscos da atividade a que se destina a prestadora dos serviços,  pela simples aplicação do artigo 5-A, § 5º, da Lei 6.019/1974 que se reputa  inconstitucional.

Veja que a simples inadimplência do prestador dos serviços não é suficiente para caracterizar a responsabilidade subsidiária do ente público e a mesma lógica deveria ser utilizada ao ente particular quando também na posição de tomador dos serviços, cabendo verificar se a contratação foi lícita e se as partes  contratantes, seja ela órgão público, seja ela o particular, exerceram o dever de  fiscalização no ato da contratação.

Assim como funciona para as empresas públicas, autarquias e sociedade de economia mista, deveria incumbir a quem propõe a responsabilidade subsidiária de uma tomadora dos serviços da iniciativa privada, o ônus de comprovar não apenas a ilicitude trabalhista alegada, como demonstrar a ilicitude  na contratação pela ausência de fiscalização do contrato firmado entre a  prestadora de serviços e a tomadora de serviços.

Portanto, a responsabilização subsidiária da tomadora dos serviços não deveria ser automática, quando a terceirização ocorre entre empresas da iniciativa privada, pela mera inadimplência da prestadora de serviços, visto que não se pode presumir a ilegalidade ou fraude na contratação de serviços terceirizados,  conforme a dicção do artigo 5-A, § 5º, da Lei 6.019/1974, que se reputa, como  inconstitucional, por conflitar com o artigo 1º, inciso IV e XXXVI, do artigo 5º, caput, artigo 170 e artigo 174, todos da CF/88, bem como pela antinomia face ao artigo 421,  parágrafo único, do Código Civil.



Postagens recentes
Converse com um advogado