Ocultação de cadáver não é crime permanente, dizem criminalistas


pressuposto controverso

O Plenário do Supremo Tribunal Federal se prepara para decidir se a Lei de Anistia também alcança os delitos de ocultação de cadáver cometidos por agentes da ditadura militar — muitos dos quais permanecem sem solução. A ideia é estabelecer se a anistia se aplica a um crime entendido pelos ministros como permanente, mas uma corrente de advogados criminalistas considera que a corte parte de um pressuposto equivocado: segundo esse grupo, a ocultação de cadáver é, na verdade, um crime instantâneo.

Crânio desenterrado

Para criminalistas, STF parte da premissa equivocada de que a ocultação de cadáver é um crime permanente

Em fevereiro, o STF reconheceu que a discussão tem repercussão geral, ou seja, a tese estabelecida servirá para situações semelhantes nas demais instâncias da Justiça. O julgamento, que ainda não tem data marcada, trata da “possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência”.

A Lei de Anistia, de 1979, perdoou delitos cometidos por militares durante o regime de exceção. Ela abrange crimes políticos e a eles conexos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Crimes permanentes, no entanto, iriam além do período acobertado pela norma, uma vez que eles continuam sendo cometidos.

“No crime permanente, a ação se protrai no tempo. A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei de Anistia”, disse o ministro Flávio Dino na sessão em que o Supremo reconheceu a repercussão geral do caso.

Escondeu, acabou

Porém, na visão de Fernanda Tórtima, mestre em Direito Penal pela Universidade de Frankfurt, na Alemanha, a ocultação de cadáver, embora tenha efeitos permanentes, é um crime instantâneo — ou seja, é praticado em um único instante e não se prolonga no tempo.

Ela explica que o Código Penal descreve a conduta de ocultar o cadáver, e não de mantê-lo oculto. Assim, uma vez que o corpo é escondido, o autor do crime não está mais praticando a conduta.

Helena Regina Lobo da Costa, professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), tem a mesma interpretação: “O crime é instantâneo de efeitos permanentes. Ocultar é a conduta proibida, ou seja, esconder. Não é manter oculto”.

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já entendeu dessa forma em 2020. Na ocasião, o ministro Joel Ilan Paciornik, relator do caso analisado, afirmou que a intenção da ocultação é esconder o corpo de forma temporária. Assim, considerá-la um crime permanente iria de encontro à finalidade da lei.

“Afirmar que a ação de ocultar cadáver é permanente somente seria possível quando se depreendesse que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o objeto jurídico venha a ser encontrado”, afirmou o magistrado.

A ocultação está prevista no artigo 211 do Código Penal, junto aos delitos de destruição e subtração de cadáver. Segundo Paciornik, não há dúvida de que essas outras duas condutas são crimes instantâneos.

Fernanda Tórtima destaca que quem oculta um cadáver pode, ao menos em determinados casos, indicar onde está o corpo. Pela lógica adotada pelo Supremo, a permanência do crime está relacionada à vontade do autor de não indicar onde está o cadáver.

No entanto, de acordo com a advogada, por essa interpretação, os crimes patrimoniais — como roubo, furto e estelionato — também deveriam ser considerados permanentes, pois o patrimônio permanece subtraído enquanto o autor do delito não o devolve.

Nesses casos, o criminoso pode, mas não quer devolver o que tomou de outra pessoa. Mas isso não torna permanente o crime de furto, por exemplo. Os delitos patrimoniais, em regra, são considerados instantâneos.

Ao reconhecer a repercussão geral do julgamento, os ministros do STF também se basearam em documentos e normas de Direito Internacional que tratam o desaparecimento forçado como crime permanente. Mas Fernanda Tórtima ressalta que essa conduta é diferente da ocultação de cadáver e sequer é criminalizada no Brasil.

O problema da anistia

Em entrevista recente à revista eletrônica Consultor Jurídico, o criminalista Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), também defendeu que “não é possível tratar o crime de ocultação de cadáver como um crime de natureza permanente, como aponta a importante doutrina do professor Juarez Tavares”. Segundo ele, “é, na verdade, um crime instantâneo”.

Melchior ressaltou que isso não significa concordância com a anistia: “O fato de essa anistia ter sido aprovada é uma das causas pelas quais o povo brasileiro não superou, como deveria, o seu passado autoritário. Nunca deveria ter sido feita”.

Mas “não é torturando a dogmática que vamos alcançar nossos objetivos”, completou ele. Na visão do advogado, o fato de uma anistia equivocada existir “não deveria ser enfrentado com teses jurídicas de consistência questionável”.

O caso concreto levado ao STF diz respeito a uma denúncia feita em 2015 pelo Ministério Público Federal contra dois tenentes-coronéis do Exército por homicídios qualificados e ocultação de cadáveres durante a Guerrilha do Araguaia — movimento armado organizado por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) nas proximidades do Rio Araguaia na década de 1970. Um dos militares já morreu.

A primeira instância da Justiça Federal do Pará rejeitou a denúncia com base na Lei de Anistia. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região manteve a decisão, e o MPF recorreu.

Do cadáver ao dinheiro

A principal preocupação de Fernanda Tórtima é com a possível “transposição” do entendimento do Supremo sobre a ocultação de cadáver para a lavagem de dinheiro, um crime que também envolve o ato de ocultar.

A Lei de Lavagem de Dinheiro criminaliza a conduta de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Segundo a criminalista, vários tribunais já tratam a lavagem de dinheiro como um crime permanente, o que, na sua visão, é equivocado. Ela vê perigo no precedente a ser estabelecido pelo STF, pois teme que qualquer pessoa possa ser presa em flagrante se estiver “na posse do bem ‘lavado’”.

Assim, alguém poderia ser preso em flagrante ao ser acusado, por exemplo, de comprar um apartamento com dinheiro “lavado”. Isso dificultaria a defesa.

Em precedente de 2017, a 1ª Turma do Supremo já reconheceu a lavagem de dinheiro como um crime permanente. No caso em questão, houve movimentações do dinheiro de origem ilegal em contas no exterior durante o período da ocultação.

Por outro lado, Helena Lobo da Costa acredita que não há como “transmutar” esse raciocínio para a ocultação de cadáver, pois, nesse crime, o autor não segue checando se o corpo continua escondido.

“Não tem nada que a gente possa equiparar por analogia a uma movimentação de conta bancária”, diz a professora. “São situações que têm as suas particularidades.”

Premissa insuperável?

Embora o STF já tenha tratado a ocultação de cadáver como um crime permanente ao reconhecer a repercussão geral da discussão, o constitucionalista Ademar Borges, professor da pós-graduação em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), explica que isso pode ser revisto no julgamento de mérito.

“Os ministros têm ampla liberdade, seja para revisar a premissa adotada no reconhecimento da repercussão geral, como também para eventualmente fixar uma tese geral ampla (de que os crimes permanentes estão fora do alcance da Lei da Anistia), mas deixar de aplicá-la ao caso concreto (por entender que o crime específico não é permanente)”, esclarece.

Apesar disso, Borges entende que a revisão da premissa já adotada pelos ministros “parece pouco provável nesse contexto específico”.

Diferentes visões

A premissa do STF encontra respaldo em outra corrente de interpretação. Guilherme de Souza Nucci, desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), defende que o verbo “ocultar” diz respeito a condutas permanentes.

Para ele, enquanto o agente estiver escondendo algo, é possível “perpetuar a consumação” do delito.

A ocultação de cadáver significa esconder o corpo e ferir o “sentimento de respeito aos mortos”, pois a sociedade tem interesse em garantir a conduta ética de enterrar ou “dar um fim digno” aos mortos, segundo Nucci. Enquanto o corpo estiver oculto, não há enterro digno.

O ministro aposentado Celso de Mello, ex-presidente do Supremo, também já defendeu à ConJur que, “enquanto não se descobrir o local do sepultamento”, o crime continua “projetando-se no tempo, precisamente ante o seu caráter de permanência”.



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