Defensoria Pública, avanço do ideário neoliberal e privatização


O projeto histórico de criação da Defensoria Pública rejeitou o modelo de um escritório de advocacia, privado e individual. A opção foi priorizar o público, em vez do privado, e o coletivo, em detrimento do individual. Ou seja, a Defensoria Pública faz parte do sistema de justiça pública, de uma assistência jurídica movida pelo interesse público e norteada pelos princípios gerais de política pública.

Divulgação

O atendimento individual dos defensores aos juridicamente vulneráveis se beneficia de uma visão de política pública buscando a erradicação ou, pelo menos, a redução das desigualdades sociais. Muitas vezes, para cumprir seus deveres e levar justiça aos juridicamente carentes, o defensor público tem de enfrentar o poder econômico e político. Por exemplo, na área rural, litigar contra os grandes proprietários. Na área urbana, defender famílias vitimadas pela violência das Polícias Militares em bairros populares.

A Defensoria Pública é uma instituição essencial à garantia dos direitos fundamentais, assegurando o acesso à justiça pela população em situação de vulnerabilidade. Sua função é assegurar que todos, independentemente de sua condição financeira, tenham o direito à defesa legal nos processos judiciais. A atuação da Defensoria está intrinsicamente ligada à promoção dos direitos humanos, com a redução das desigualdades sociais mediante a proteção de grupos historicamente marginalizados. Esse compromisso dificilmente será mantido por prestadores privados, cujo principal objetivo tende a ser o lucro e não a justiça social.

Defensores públicos são servidores de carreira, que ingressaram no serviço público após concurso, e são regulados por rigorosas regras de conduta administradas por corregedoria e ouvidoria. Advogados contratados por meio de convênios ou terceirizações, por outro lado, podem não ter o mesmo preparo, dedicação exclusiva ou independência funcional, o que enfraquece a defesa dos assistidos. E o objetivo de lucro, na lógica do mercado, prepondera sobre o interesse público de defesa dos direitos dos vulneráveis.

Duplicação

É verdade que o modelo público da Defensoria está protegido no âmbito legal e constitucional, mas é bom não esquecer que a essência do neoliberalismo é transformar direitos em mercadoria e privatizar o que é público. As propostas de advocacia dativa e Defensoria Escritório caminham no sentido de abrir espaço para uma futura privatização. Segundo consta, o ministro Gilmar Mendes defende abertamente a advocacia dativa, bandeira permanente da OAB, enquanto o ministro Edson Fachin defende o atual modelo público de Defensoria.

Durante o lançamento da 2ª Semana do Consumidor, em solenidade no Palácio Tiradentes em 10/3/2025, a presidente da OAB-RJ, Ana Tereza Basilio, declarou o seguinte: “Trazemos como proposta o fortalecimento da advocacia dativa para auxiliar a Defensoria Pública, especialmente no interior, onde ela não consegue estar presente de forma tão ampla como ferramenta de apoio ao consumidor”. É interessante observar que a OAB reduziu o cidadão a consumidor e, consequentemente, os direitos de cidadania a direitos do consumidor.

Em 26/4/2025, a OAB-RJ anunciou que fez parcerias com municípios para implantação da advocacia dativa. Além de Resende e Maricá, a OAB-RJ já iniciou conversas com representantes de Rio de Janeiro, Rio das Ostras, Angra dos Reis, Cabo Frio, Volta Redonda, Vassouras, Seropédica, Nova Iguaçu e Quatis (Migalhas, 28/4/2025). Com a proliferação de cursos de Direito, o mercado de trabalho ficou inundado de advogados que não conseguem trabalhar. É importante ter uma estratégia para lidar com essa ofensiva privatizante da OAB, mas até agora a Defensoria Pública, a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) e a Estadual do RJ (Adperj) não se manifestaram.

Spacca

Afinal, recursos públicos municipais que deveriam ser aplicados em saúde, educação, habitação, meio ambiente etc., são desviados para pagar advogados que irão oferecer assistência jurídica aos interessados, numa duplicação do que já é oferecido com eficiência comprovada pela Defensoria Pública. Em Maricá, o projeto de lei que cria a advocacia dativa já foi aprovado. Trata-se de uma agressão à Defensoria Pública e, provavelmente, um passo na direção de uma futura privatização da assistência jurídica sob as bênçãos da OAB.

Por outro lado, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado (CDH) aprovou regras mais duras para acesso à Justiça gratuita. A CDH aprovou em 21/5 passado o projeto da Câmara dos Deputados que estabelece “critérios mais objetivos” para concessão da gratuidade da Justiça. O PL 2.239/2022 segue agora para análise da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Atualmente, o Código de Processo Civil permite que a gratuidade da Justiça seja concedida com base apenas na declaração de hipossuficiência (incapacidade de recursos) do requerente, que é presumida como verdadeira, salvo se houver indícios em contrário. O projeto modifica essa prática ao exigir que a concessão do benefício esteja baseada em “critérios objetivos e em comprovação documental” (Fonte: Agência Senado). Ou seja, o projeto dificulta o acesso à Justiça Gratuita oferecida pelo poder público, numa manobra que esconde o objetivo de fortalecer o privado em detrimento do público.

Se no passado preponderou o público sobre o privado, o social sobre o individual, o comunitário sobre o particular, o avanço do ideário neoliberal nas últimas décadas levou ao fortalecimento do individual e do privado sobre o interesse coletivo. Esperemos que a Defensoria Pública continue sendo uma fortaleza na defesa dos direitos dos oprimidos e dos vulneráveis, abandonados por um sistema que concentra a renda e aumenta a desigualdade social.


Postagens recentes
Converse com um advogado