Opinião
A PEC 12/22 propõe extinguir a possibilidade de reeleição para a chefia do Poder Executivo e a ampliação do mandato para cinco anos; aumento dos mandatos de deputados e vereadores para cinco anos e de senadores para dez anos; culminando com a unificação das eleições para todos os cargos de representação em todos os entes federativos em uma mesma a data, realizando-se o pleito eleitoral a cada cinco anos. A proposta deixa claro o desconhecimento daqueles que a defendem a respeito da história do nosso país e do que a democracia brasileira necessita para desenvolver-se.
É importante conhecer e compreender a nossa história para impedir retrocessos.
De forma resumida, apresentaremos a história das Constituições brasileiras e a estrutura de Estado em cada passo histórico, para assim podermos analisar com clareza o teor da PEC à luz dessa trajetória [1].
A primeira Constituição brasileira, de 1824, foi outorgada pelo Imperador que não teve paciência para aguardar os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte instaurada em 1823. Uma série de conflitos entre seus membros e o Imperador fez com que este a dissolvesse seis meses depois de sua instalação. O Brasil adotava uma forma de Estado unitária, ou seja, não havia divisão de poder em relação às decisões política, que se concentravam nas mãos do Imperador. Os presidentes das Províncias eram escolhidos pelo Imperador. E mesmo com a criação das Assembleias Provinciais que tratavam de questões administrativas e tributárias, a autonomia destas era mínima.
A forma de governo, à época, era monárquica, mas não uma monarquia absolutista que concentrava todas as funções do Estado na figura do monarca. A Constituição de 1824 consagrou a quadripartição dos poderes. Havia a previsão dos três Poder: Legislativo, Executivo e Judiciário, e o Imperador exercia também, além da Chefia do Poder Executivo, a função de Poder Moderador – um órgão responsável por apaziguar disputas entre os três Poderes.
Em relação ao sistema de governo há diferentes nomes adotados pela doutrina. Há quem defina essa época como um sistema presidencialista (não nos mesmos moldes do presidencialismo atual), outros nominaram como executivismo clássico ou de governamentalismo [2]. Em 1847, foi criada a função de presidente do Conselho de ministros e assim a estrutura de funcionamento das relações entre os Poderes passou a ser mais próxima a um parlamentarismo.
Em relação ao regime, de forma alguma poderia ser considerado uma democracia visto que o voto era censitário, ou seja, as pessoas precisavam comprovar uma renda mínima para poder votar e até 1883 o voto era indireto. As mulheres não votavam. E, como sabemos, neste período ainda havia escravidão, ou seja, uma parcela imensa das pessoas sequer era considerada indivíduos dotados de direitos.
Em 1891, após dois de anos de discussão e sob a responsabilidade de Rui Barbosa, foi promulgada a primeira Constituição Republicana do Brasil. O Estado brasileiro transplantou toda a estrutura de Estado estadunidense. Passamos de uma monarquia para uma república. De uma forma de Estado unitário para uma federação. De um sistema parlamentarista para um presidencialista. E o Estado se declarava democrático, mas ainda vigia um forte controle político dos votantes, o fenômeno que a doutrina descreve como “voto de cabresto” ou “coronelismo”.
Spacca

O país viveu um longo período sob o comando de coronéis e oligarquias que se alternavam no poder. A crise mundial de 1929 repercutiu na economia brasileira. As elites esperavam algum motivo para derrubar a ordem vigente. João Pessoa foi assassinado na Paraíba e essa foi a motivação para, em 1930, eclodir a Revolução que derrubou o presidente Washington Luiz e passou o governo para Getúlio Vargas.
Em 1932, São Paulo lidera a Revolução Constitucionalista, exigindo a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. Getúlio cede às pressões e, em 1933, a Assembleia é instalada. Em 1934, uma nova Constituição foi promulgada.
O texto manteve a forma de Estado federativa, introduzindo a ideia de federalismo cooperativo, ou seja, abrindo espaço para que a União atuasse em conjunto com estados e municípios. A forma de governo continuou sendo a República, com um sistema de governo presidencialista e com um regime democrático, agora mais qualificado trazendo alguns diretos sociais, a criação da Justiça Eleitoral, alistamento eleitoral para mulheres, dentre outros avanços.
Contudo, a Constituição de 1934 durou apenas três anos. Em 1937, Getúlio Vargas dá um golpe de Estado e outorga a Constituição de 1937 com claras inspirações nos regimes autoritários que floresciam na Europa naquele momento histórico [3].
Em que pese, a forma de Estado tenha se mantido textualmente como uma federação, era uma espécie de “federalismo de integração”, com uma forte concentração de poder no Poder Executivo federal. O sistema de governo era o presidencialista, mas com a predominância do Executivo em relação aos demais Poderes. A respeito da forma de governo, a Constituição mencionava que o país seria uma República, mas não houve eleições para a presidência, nem respeito ao prazo do mandato.
Não havia nenhuma menção ao termo democracia no texto constitucional e terminantemente foi um período marcado por um regime autocrático, uma ditadura populista que perdurou por 8 anos.
Em 1945, o presidente foi derrubado. Convocada uma Assembleia Nacional Constituinte, em 1946 foi promulgada uma nova Constituição.
A Constituição restaurou o federalismo cooperativo, devolvendo a autonomia plena aos entes federativos. A forma republicana de governo é mantida, estabelecendo a eleição para o presidente e outra para o vice e fixa o mandato presidencial em 5 anos.
O regime de governo claramente era voltado a ideia de uma democracia social, assegurando vários direitos aos trabalhadores, firmando pela primeira vez a ideia de inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário de qualquer lesão à direito individual, ou seja, protegendo liberdades individuais e coletivas. Neste período foi criada a Justiça do Trabalho. Brasília passou a ser a capital da República.
O sistema de governo voltou a ser o presidencialismo, que funcionou até a crise de 1961, que fez nascer a Emenda Constitucional nº4, que instituía o parlamentarismo. Resolvida parcialmente a crise, em janeiro de 1963 foi restabelecido o sistema presidencialista.
Mas, em 1963 foi publicado um Ato Institucional sem número que declarava derrubada a ordem institucional em nosso país. Em 1964, efetivamente instaurado um regime de exceção, a Constituição de 1946 foi sendo desfigurada através de emendas e atos institucionais.
Em 1967, foi decretada uma nova Constituição com notório viés autoritário. Nos mesmos moldes de 1937, apenas de forma nominal o país se manteve uma federação, mas novamente um federalismo de integração [4], com mitigação da autonomia dos entes federativos.
Muitos autores elencam o Ato Institucional nº 1, de 1969 como um nova Constituição. Esse texto trouxe profundas modificações na estrutura de Estado brasileiro.
A forma de governo era textualmente uma república, mas o povo não tinha ingerência alguma no Poder. As eleições foram organizadas de forma indireta, através de colégios eleitorais compostos por membros do Congresso e de representantes das Assembleias Legislativas dos Estados.
O sistema de governo era uma espécie de presidencialismo exacerbado, no qual o Executivo detinha muito mais poder que os demais ramos do Estado, podendo interferir e colocar os agentes públicos que compunham o Legislativo e o Judiciário em posição de submissão.
O regime de governo por óbvio era uma autocracia. O período ditatorial se manteve de 1963 a 1985. Foi o mais longo sob um regime de exceção da história do nosso país. Sufocadas as liberdades de expressão e de opinião, o direito ao voto popular e toda sorte de violência institucional foi praticada durante esse período nefasto da sociedade brasileira.
Ambientação democrática
Esse resumo político da história do Brasil é importante para entender que foi apenas a partir da promulgação da Constituição Cidadã, de 1988, que efetivamente passamos a viver uma democracia plena, com instituições fortes e independentes. São apenas 37 anos de experiência verdadeiramente democrática. É um nada, sob o ponto de vista de processo de amadurecimento político.
Dos 201 anos de constitucionalismo brasileiro, 144 anos excluíram o povo da participação nas decisões políticas do país. É natural a desconfiança popular em relação aos políticos e às instituições. Só a prática de decisões coletivas, a aproximação do povo à vida pública e a construção do senso de comunidade, que se dá principalmente através do processo de participação nas eleições, trará o amadurecimento e o aperfeiçoamento necessários à nossa democracia.
De todos objetivos da PEC o mais nocivo é a proposta de concentração das eleições a cada cinco anos. A realização do processo eleitoral em intervalos curtos é extremamente importante porque o povo brasileiro ainda está aprendendo a votar, compreendendo a sua importância dentro da governança pública, se apropriando de seu valor dentro da nossa jovem democracia. Manter as pessoas afastadas das discussões políticas por cinco anos seria algo extremamente prejudicial a esse processo de ambientação democrática que ainda estamos vivenciando como nação.
E, a história conta que quanto mais tempo as pessoas ficam no poder, mais se apegam a ele. Precisamos de períodos regulares de alternância no poder. Quatro anos é o suficiente para manter a estabilidade das decisões políticas. Com mandatos mais longos, seja um ano ou dois (como é o caso dos senadores) a possibilidade de colocar a nossa democracia em risco, será imensa!
Manter ou não reeleição para os chefes do Poder Executivo é uma decisão que precisa ser tomada com amplo debate popular. E o que resta perceptível, ao ler as manifestações das pessoas nas notícias referentes à PEC, é que a extinção da reeleição para o Poder Legislativo tem um apoio maior do que para o Executivo. Ao menos, uma limitação em relação à quantidade de reeleições possíveis, por certo, seria algo saudável.
Enfim, a PEC é uma soma de equívocos com potencial de causar danos severos à democracia brasileira.
[1] O artigo toma como base os estudos do professor Cezar Saldanha Souza Jr a respeito da história do constitucionalismo brasileiro.
[2] Souza Jr, Cezar Saldanha. CONSTITUIÇÕES DO BRASIL. 2022. Editora Sagra Luzzato: Porto Alegre, pag. 29.
[4] Nomenclatura cunhada pelo professor Alfredo Buzaid. Segundo o professor Manoel Gonçalves, o Ato Institucional de 69, na verdade, tornou o Estado brasileiro praticamente um Estado unitário.