Vantagens estruturais da Defensoria Pública sobre o modelo dativo


Opinião

A assistência jurídica gratuita no Brasil tem sido, recentemente, palco de intenso debate, polarizado entre o fortalecimento institucional da Defensoria Pública e a implantação e ampliação do sistema de advocacia dativa. As análises convencionais tendem a se concentrar em dimensões jurídicas e sociopolíticas [1], como a conformidade constitucional, a legitimidade dos modelos, sua eficiência operacional, a capilaridade (alcance territorial) e o impacto orçamentário. No entanto, uma perspectiva fundamental tem sido subexplorada: o papel transformador da tecnologia e sua capacidade de otimizar o acesso à justiça e aprimorar a qualidade dos serviços jurídicos.

Lucimar (Ingrid Gaigher) de “Vale Tudo”

Um exemplo emblemático dessa potencialidade tecnológica ficou demonstrado em 13/05/2025, quando uma cena na novela Vale Tudo, da TV Globo, retratou a personagem Lucimar (Ingrid Gaigher) acessando informações e agendando atendimento através do aplicativo da Defensoria Pública [2]. Imediatamente após, o aplicativo passou a registrar cerca de 4500 acessos por minuto e, durante a hora seguinte, mais de 270 mil pessoas já tinham buscaram informações sobre o direito à pensão alimentícia [3]. Essa representação cultural não reflete apenas a crescente penetração social de tais ferramentas, mas também sinaliza como a tecnologia é um vetor indispensável para a modernização e a expansão da Defensoria (e do próprio acesso à justiça).

Nesse contexto, o presente artigo visa a aprofundar a análise sobre o impacto e as vantagens que a incorporação de inovações tecnológicas proporciona ao modelo público de assistência, em contraponto ao modelo dativo. Busca-se, assim, evidenciar como o investimento estratégico em soluções tecnológicas próprias da institucionalidade pública pode fomentar um serviço público mais eficaz, acessível e democrático.

Infraestrutura tecnológica robusta

Tudo se inicia por uma infraestrutura sólida. As Defensorias Públicas possuem seus próprios data centers [4] e sua própria rede corporativa instalada e interligada entre as diferentes sedes. Isso permite o armazenamento, o processamento e o tráfego de grandes volumes de dados de forma mais segura e eficiente. Além disso, a centralização dos dados garante padronização, facilita o acesso remoto e possibilita a construção de plataformas digitais unificadas. A maior parte das Defensorias já possui, inclusive, infraestrutura em nuvem, o que garante alto nível de disponibilidade e escalabilidade [5].

Spacca

Como consequência desse investimento, é possível à Defensoria Pública implantar múltiplos canais de atendimento (aplicativos, videochamadas, WhatsApp, centrais telefônicas e o atendimento presencial tradicional), ampliando significativamente o acesso aos serviços. Essa diversidade de canais promove a inclusão digital, especialmente para populações vulneráveis ou residentes em áreas remotas, e reforça o compromisso da Instituição com a universalização do acesso à justiça.

Especificamente sobre o aplicativo da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, retratado na telenovela, foi lançado em outubro de 2020 [6], durante o período mais grave da pandemia de Covid-19, permitindo agendamento e atendimento remotos de milhares de cidadãos fluminenses com suas vulnerabilidades agravadas pelo contexto sanitário da época. Enquanto isso, a advocacia sofria as agruras impostas a quase todas as profissões liberais e cada advogado precisava reinventar seu modo de trabalhar, de atender seu cliente e de ser alcançado por quem o buscava. Essas dificuldades foram enfrentadas mesmo no exercício privado da advocacia, impondo-se ainda mais rigidamente sobre o atendimento dativo.

Mesmo em situação de normalidade, fora de um evento tão imprevisível quanto uma pandemia, os cidadãos enfrentam corriqueiramente inúmeras barreiras para acessar atendimento presencial. Distância da residência, do trabalho, transporte caro e trânsito lento são dificuldades diárias. Novamente voltando à personagem Lucimar, foi em um pequeno intervalo entre os dias corridos de faxina que conseguiu baixar o aplicativo e enviar sua demanda. Somente o investimento institucional em tecnologia pode proporcionar a capilaridade necessária do serviço para a população que mais precisa e que mais sofre com as dificuldades para alcançar seus direitos.

Por não contar com uma estrutura centralizada, a advocacia dativa não pode alcançar tal nível de eficiência e modernização. Na realidade, cada advogado designado fica à mercê unicamente dos equipamentos próprios disponíveis, gerando grande disparidade entre os diversos profissionais. Essa heterogeneidade de recursos tende a resultar em dificuldades em manter a oferta de um serviço jurídico uniforme.

Sistema único de atendimento e continuidade do serviço

Um dos maiores avanços proporcionados pela estrutura tecnológica da Defensoria Pública é a possibilidade de desenvolver e utilizar um sistema único de atendimento, funcionando como um verdadeiro prontuário jurídico do cidadão. Todas as informações relativas a casos, atendimentos, orientações e demandas anteriores ficam centralizadas e disponíveis em um só lugar, independentemente da unidade, do canal de atendimento utilizado ou do profissional responsável.

Esse histórico detalhado garante que, mesmo em caso de mudança de defensor(a) ou de equipe, ou até de cidade, o atendimento se dê de forma contínua, personalizada e eficiente, sem perdas de informação ou retrabalho. Além disso, a manutenção desse “prontuário” permite maior e melhor compreensão das demandas recorrentes e das necessidades específicas de cada pessoa, o que contribui para diagnósticos mais precisos e atendimento mais holístico e humanizado.

Já no modelo dativo, tal funcionalidade é praticamente impossível de ser praticada, pois cada advogado atua de forma isolada, sem acesso ao histórico completo da parte e do contexto em que aquele atendimento específico se insere, o que prejudica a continuidade, a efetividade e, inevitavelmente, a qualidade integral do serviço prestado.

Ciência de dados e adoção de inteligência artificial

Com a já citada infraestrutura potente, é possível realizar análise de dados massivos, inclusive com a utilização de tecnologias avançadas, como inteligência artificial (IA) preditiva e generativa.

No modelo dativo, cada advogado pode, no máximo, constituir sua própria base de dados, o que seria absolutamente inexpressivo frente à totalidade dos casos de assistência. Nada, ou muito pouco, poderia ser extraído dessa quantidade de dados, pulverizados e, assim, por essência, desorganizados.

Já o modelo institucional tem a vantagem de agregar, tratar e uniformizar todos os dados recebidos e produzidos de forma adequada para serem consultados, analisados e interpretados. Somente assim é possível identificar tendências, tomar decisões baseadas em evidências e subsidiar políticas públicas e opções orçamentárias de maneira mais eficaz.

Através dos painéis do Verde em Dados, sistema utilizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, é possível observar, por exemplo, que, no ano de 2024, foram recebidas um total de 1.994.898 intimações processuais, das quais a competência mais significativa foi justamente Direito de Família, com 722.701 [7]. No mesmo período, verifica-se que foram distribuídas 138.873 [8] petições iniciais utilizando o Sistema Verde, com pensão alimentícia sendo disparado o principal assunto abordado. Não poderia ter sido escolhido um tema melhor para ser tratado em “Vale Tudo”.

Governança e proteção de dados

Essa modernização na produção, no armazenamento e na análise de dados vem acompanhada pela implementação de governança rigorosa e, ainda, pela adoção de ferramentas que garantem a segurança [9] das informações pessoais dos usuários do serviço, tudo em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

A assistência jurídica lida essencialmente com dados pessoais, inclusive dados sensíveis, de pessoas em situação de vulnerabilidade (e das demais partes dos processos judiciais). Investir em tecnologias de ponta para garantir a segurança cibernética e a privacidade desses dados é mais uma vantagem do modelo institucional, com o estabelecimento de protocolos de proteção, criptografia e controle de acesso.

Ademais, o respeito à LGPD pode ser mais facilmente monitorado e auditado em uma estrutura centralizada, o que aumenta a confiança dos cidadãos no serviço público, uma vez que a Defensoria Pública está sujeita à legislação sobre transparência e acesso à informação.

Os advogados, por sua vez, não possuem a pujança financeira necessária para investir tão fortemente em segurança e compliance, além de esses aspectos serem praticamente impossíveis de serem fiscalizados e auditados individualmente.

Desenvolvimento de políticas públicas e integração institucional

A Defensoria, por ser uma instituição pública, sobretudo voltada ao atendimento de parcelas da população que se encontram em alguma vulnerabilidade social, está também comprometida com o desenvolvimento de políticas públicas, o que não ocorre na advocacia dativa.

Desse modo, a quantidade numerosa de informações arrecadadas, tratadas e analisadas credencia a Instituição a um papel de fonte de informação de qualidade para, a partir do cruzamento de dados com outros órgãos estatais e universidades, garantir maior capacitação dos profissionais, formular estudos, pesquisas e políticas públicas mais acertadas.

Compartilhamento de dados e convênios interinstitucionais

Novamente por sua característica intrínseca de se tratar de uma estrutura pública, a Defensoria tem a possibilidade de integrar seus sistemas a outros bancos de dados e cadastros governamentais. A comparação, a validação, o cruzamento e a correção de informações têm o condão de potencializar o impacto e a eficiência do serviço prestado.

No Rio de Janeiro, por exemplo, o sistema da Defensoria Pública valida o CPF do usuário utilizando diretamente a base de dados da Receita Federal, captando, assim, os demais dados cadastrais e de contato daquele cidadão. Garante-se, pois, maior completude, veracidade e atualidade para cada atendimento. Da mesma forma, há possibilidade de realizar consultas ao Sistema Estadual de Identificação do Detran, o que ajuda em casos de identificação e de sub-registro. O acesso à Central de Informações de Registro Civil permite consultar o registro e solicitar a emissão de certidão eletrônica de qualquer cartório do país.

Esses são apenas três exemplos entre tantos outros que ou são inacessíveis ou são excessivamente custosos aos advogados considerados individualmente, já que estes não fazem parte do próprio aparato estatal.

Controle e fiscalização por órgãos externos

Por fim, igualmente por ser uma instituição pública, a Defensoria está sujeita ao controle e à fiscalização de órgãos externos, como os Tribunais de Contas. Isso garante maior confiança e transparência em relação ao gasto do dinheiro público destinado à prestação do serviço de assistência jurídica gratuita.

O controle externo contribui para a melhoria contínua e dá maior legitimidade da Defensoria, diferentemente de modelos privados, que não passam pelo mesmo nível de escrutínio.

Conclusão

Diante da análise apresentada, fica evidente que, também do ponto de vista tecnológico, a prestação da assistência jurídica através do modelo de Defensoria Pública oferece vantagens substanciais em relação ao da advocacia dativa. A combinação de uma infraestrutura robusta, do uso inteligente de dados e de governança eficiente potencializam a capacidade de atendimento e, inexoravelmente, a qualidade dos serviços prestados, além de garantir maior transparência e controle.

Em contraste, a advocacia dativa não consegue acompanhar o mesmo nível de integração tecnológica e eficiência sistêmica, oferecendo, por conseguinte, um serviço que frequentemente se revela mais limitado em sua capacidade de promover a uniformidade de teses, a tutela coletiva de direitos e o acompanhamento holístico dos casos, podendo ficar aquém do ideal de assistência jurídica inscrito na Constituição, que não é apenas gratuita, mas também é integral e eficiente.

Assim, a Defensoria Pública se reafirma como a melhor alternativa para garantir um acesso à justiça capaz de alcançar com maior amplitude e equidade toda a população destinatária de seus serviços, transformando os avanços tecnológicos em resultados concretos para a coletividade que busca a efetivação de seus direitos fundamentais, com o reconhecimento demonstrado pelo folhetim.

 


[1] HIGÍDIO, José. Gasto com advogados dativos permitiria instalar Defensoria em todas as comarcas do país. Conjur, 20/02/2025. Disponível aqui.

[2] SOUZA, Adrielly. Cena de ‘Vale Tudo’ faz buscas por pensão alimentícia dispararem na Defensoria Pública. F5 (Folha de São Paulo), 19/05/2025. Disponível em: aqui.

[3] SELVATTI, Patrick. Ingrid Gaigher: Lucimar de “Vale tudo” inspira 270 mil mulheres em uma hora. Correio Braziliense, 17/05/2025. Disponível aqui.

[4] Data centers são instalações físicas que abrigam a infraestrutura de tecnologia da informação essencial para armazenar, processar e disseminar dados e aplicações.

[5] Disponibilidade é a garantia de que um sistema está operacional e acessível quando necessário, enquanto escalabilidade é a capacidade desse sistema de crescer e se adaptar para lidar com o aumento de demanda.

[6] DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Aplicativo da Defensoria já está disponível no Google Play. Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 15/10/2020. Disponível aqui.

[7] VERDE EM DADOS. Painel de Intimações. Tableau Public / Defensoria Pública do Rio de Janeiro, 2024. Disponível aqui.

[8] VERDE EM DADOS. Painel Público de Distribuições Iniciais. Tableau Public / Defensoria Pública do Rio de Janeiro, 2024. Disponível aqui.

[9] Governança de dados é o conjunto de processos, políticas, padrões e controles que garantem o uso eficaz, seguro e ético dos dados de uma organização, certificando sua qualidade, conformidade e valor.



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