Reforma de casa não acaba, você é que desiste dela. A ideia era reformar a sala, mas por que não aproveitar e mexer também no banheiro? Todos sabem que o “já que…” pode acabar indo longe demais.
Leonardo Sá/Agência Senado
Há quem diga que o mesmo princípio se aplica a outro tipo de reforma, a política. Cláusula de barreira, reeleição, sistema eleitoral, divisão das sobras, tempo de mandato. Uma coisa leva a outra e uma hora é preciso parar e votar antes que se reconstrua toda a República.
A PEC 12/2022, apresentada pelo senador Jorge Kajuru (PSB-GO), tinha um objetivo claro: vedar a reeleição para os cargos executivos, aumentando o mandato de quatro para cinco anos. Mas “já que” se discute reeleição, porque não falar também de outros temas de uma reforma política?
No último dia 21/05/2025, a CCJ do Senado aprovou o relatório do senador Marcelo Castro à PEC 12/2022, promovendo outras alterações além da contida na proposta original: aumento do tempo do mandato de vereadores e deputados de quatro para cinco anos; unificação das eleições gerais e municipais; renovação total do Senado a cada legislatura; e intrincadas regras de transição.
Um dos pontos que mais chamou a atenção foi o tempo de mandato dos senadores. A valer a regra atual, o mandato deveria valer por duas legislaturas, conferindo a cada senador um mandato de dez anos. E era isso o que estava contido no parecer do relator. Mas o número pareceu assustar a muitos e a discussão na comissão teve por fim um acordo para reduzir o mandato dos senadores a cinco anos, igual ao dos demais cargos eletivos.
Por que um mandato maior para os senadores?
A vitaliciedade tem sido a regra temporal do primeiro Senado do mundo moderno, a Câmara dos Lordes britânica. Também foi a regra de nossa primeira Constituição, em 1824, que pensava no Senado como a representação política da aristocracia, arquitetada para frear e moderar os impulsos populares da Câmara Baixa.
Ao delinear as instituições políticas dos Estados Unidos, os pais fundadores americanos buscaram se afastar da aristocracia hereditária e do risco de uma tirania monárquica, erigindo o princípio representativo, separando os poderes e criando freios e contrapesos. Mas a ideia de uma segunda câmara para o parlamento nacional não era de toda ruim. Afinal, Montesquieu já mostrara como tal engenharia havia contribuído para a estabilidade do Reino Unido.
O Senado americano foi concebido como o fórum de representação igualitária dos estados, mas também funcionaria com outros objetivos. John Jay, um dos autores federalistas, afirmava que a segunda câmara seria formada não por uma aristocracia nobiliárquica, mas uma “aristocracia natural”, daqueles que alcançaram a proeminência pela virtude ou riqueza.
Já para James Madison [1], outro federalista, o Senado proporcionaria um ganho de eficiência e qualidade da legislação, seria uma barreira institucional contra os irrefletidos impulsos populares e, mais importante, seria o órgão de continuidade institucional em um contexto onde tanto o Executivo quanto a câmara baixa estariam sujeitos ao ciclo eleitoral.
Para tanto, o Senado foi desenhado com três regras específicas: mandato maior que o dos deputados (três vezes maior, no caso americano), renovação parcial da Casa (um terço a cada eleição) e idade mais elevada para os senadores.
Esses mesmos princípios também se aplicam ao modelo da nossa Constituição de 1988. Na configuração do nosso bicameralismo, o constituinte desejava um parlamentar mais experiente, menos suscetível aos ciclos eleitorais, e também uma Casa mais estável — uma espécie de âncora institucional em mares revoltos.
Tal desenho institucional, aliás, está em linha com outros arranjos bicamerais mundo afora, com a mesma previsão de mandatos mais longos para os senadores [2].
Argumentos pela igualdade
O parecer aprovado na CCJ altera o modelo constitucional do bicameralismo brasileiro como quem muda o projeto no meio da obra.
Alguns argumentos foram levantados para defender a igualdade do tempo de mandato entre deputados e senadores: “austeridade com o dinheiro do contribuinte” (o que, aliás, não faz qualquer sentido, já que tempo de mandato não interfere no custo por senador), processo de “envelhecimento dos senadores com um mandato longo”, “risco à alternância de poder” e “pressão popular contra o mandato de uma década”.
O relator mostrou vários casos bicamerais em que o mandato dos senadores é maior do que o dos deputados. Mas no final prevaleceu o acordo pelo mandato reduzido de cinco anos. Como reformas não terminam, a gente é que desiste delas, esse parece ter sido o ponto em que os senadores acharam melhor tirar os pedreiros da sala e seguir com a vida normal, mesmo sem ter ajeitado todos os cômodos.
Ninguém falou dos Federalistas ou discutiu mais a fundo o impacto dos arranjos bicamerais pelo mundo. E nem era isso o que se esperava de um colegiado político. Mas há quem diga que deve-se pensar muito bem antes de fazer uma reforma – no caso, de reformar a própria Casa.
Racionalidade estratégica ou autossacrifício?
Para uma grande tradição da ciência política, legisladores são atores racionais que agem e votam de acordo com suas preferências [3]. Nesse sentido, comportamentos aparentemente irracionais podem ser explicados por uma racionalidade estratégica, que assume derrotas em uma matéria ou arena para ganhar em outras de maior relevo.
Mas no caso em tela, nada parece justificar essa medida espontânea dos senadores brasileiros em reduzir seu próprio papel dentro do sistema político brasileiro.
Não há qualquer tipo de pressão popular contra um Senado supostamente aristocrático, como a crítica que sempre pesa sobre a Câmara dos Lordes [4]. Nem o Senado tem agido como um veto player no presidencialismo, criando impasses legislativos seja com a Câmara, seja com o Executivo, que demandariam um rearranjo de forças para equilibrar o sistema.
O que parece ter havido foi simplesmente um receio de parecer legislar em causa própria e um susto com o tempo de mandato — dez anos — que, sim, é um número grande.
Consequências para o bicameralismo brasileiro
Mas que efeitos a medida traria ao bicameralismo brasileiro? O tempo menor de mandato e a renovação total por certo traria maior oxigenação ao Senado, elevando a rotatividade de seus membros.
Por outro lado, a Casa estaria sujeita, como a Câmara, a ondas eleitorais ou populistas, já que seria renovada totalmente a cada eleição. Hoje, com a renovação parcial, pelo menos um terço do Senado é uma imagem do passado, ou das eleições passadas, o que evita que as tais ondas eleitorais possam dominar a Casa, criando supermaiorias. A dependência do ciclo eleitoral poderia criar um centrão entre os senadores, mais preocupados com emendas e reeleição e mais sujeitos a uma liderança forte e sem controle — exatamente o cenário que Madison procurava evitar com o delineamento do Senado.
Questiona-se, também, a qualidade legislativa dos senadores. O maior tempo de mandato representa maior acúmulo de experiência na vida pública, maior socialização no parlamento e menores custos de transação. Mesmo em situações adversas o papel revisor tem sido cumprido de forma adequada [5]. Não tendo de disputar as eleições seguintes, os senadores estariam menos presos às medidas puramente eleitoreiras e poderiam gastar energia em projetos que demandam esforço e articulação de longo prazo.
Essa perda de estabilidade tem reflexos na imagem da própria Casa como órgão da continuidade institucional. Estando sujeito, como o Executivo e a Câmara, aos ciclos eleitorais, o Senado deixaria de ser o elemento de permanência do sistema político, já que seria totalmente renovado a cada eleição. Em tempos de conflitos entre os três Poderes, quem assumiria esse papel de representante simbólico da continuidade seria o Judiciário — enquanto presidentes, deputados e senadores vêm e vão a cada eleição, quem permaneceria imóvel na Praça dos Três Poderes seria o STF, que poderia assumir de forma mais acentuada um papel de poder moderador.
Quanto mais congruentes Câmara e Senado, mais se caminha para virar a balança do bicameralismo para o lado da Câmara Baixa. Afinal, o Senado deixa de ser o órgão da estabilidade e da moderação e passa a ser apenas o órgão de representação paritária dos Estados. Nesse cenário, é possível que futuramente perca suas atribuições gerais no processo legislativo e passe a se manifestar tão-somente nos assuntos federativos, como já ocorre no Bundesrat alemão e se tentou fazer no Senado italiano em 2016 — uma redução de papel institucional que deixaria à Câmara Alta um papel acessório no teatro político nacional.
Como se vê, a mudança tem repercussões que vão longe. Reformas nunca acabam como se planejava no início. A dúvida que fica é: houve planejamento para essa reforma da Casa?
[1] MADISON, James. Número LII. In: MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. Os artigos federalistas: 1787-1788: edição integral. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 353-357.
[2] LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. Tradução de Roberto Franco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003
[3] SHEPSLE, Kenneth; BONCHEK, Mark. Analyzing Politics: rationality, behavior and institutions. New York: WW Norton & Company, 1997.
[4] MAHONEY, James; THELEN, Kathleen. Explaining Institutional Change: Ambiguity, Agency and Power. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
[5] BEDRITICHUK, Rodrigo Ribeiro; VERONEZE, Guilherme Marques. Casa carimbadora?: a revisão das medidas provisórias pelo Senado Federal. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 60, n. 239, p. 91-114, jul./set. 2023. Disponível aqui.