

Opinião
Uma sala de aula não é feita apenas de carteiras e quadros; ela vive do encontro humano de ideias, da troca viva entre mestre e estudantes. Na era digital, esse encontro pode se dar mediado por telas e plataformas, ampliando fronteiras e democratizando o acesso, mas também suscitando temores de desumanização do ensino.

O recente Decreto n° 12.456, de 19 de maio de 2025, que institui a Nova Política de Educação a Distância (EaD) no ensino superior, trouxe esse debate para o mundo jurídico ao proibir a oferta de cursos de graduação em direito na modalidade exclusivamente a distância. A medida, que abrange também medicina, odontologia, enfermagem e psicologia, foi saudada por uns e questionada por outros, reativando a reflexão sobre como conciliar qualidade acadêmica e inclusão educacional.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já alertava para os riscos de um “boom” de graduações em direito via EaD sem a devida estrutura: falta de interação real com professores, ausência de vivência forense e estágio supervisionado efetivo, e um possível “ensino bancário” no sentido freireano de educação meramente depositária de informações. Para o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, a expansão do formato à distância representaria um retrocesso na formação jurídica, constituindo-se em “mais uma ferramenta de precarização do ensino jurídico”. Não por acaso, a OAB celebrou publicamente a edição do Decreto nº 12.456/2025, identificando nele um compromisso com a qualidade acadêmica e a proteção do futuro advogado.
A importância do ensino presencial do direito revela-se ainda mais evidente quando se consideram as singularidades socioterritoriais das regiões onde os cursos jurídicos se encontram inseridos. Em consonância com as diretrizes nacionais, os projetos pedagógicos de curso (PPC) são elaborados pelas instituições de ensino superior de modo a refletir as projeções sociais, econômicas e ambientais do entorno imediato.
É o caso do curso de direito ofertado em Diamantina, pela UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais), cujo PPC incorpora, como componente curricular estruturante, a disciplina “Proteção Ambiental e Mineração”, em razão da relevância histórica e econômica da atividade minerária na região. A presença física de docentes e discentes locais, imersos em tal realidade, favorece o debate qualificado sobre os impactos jurídicos da mineração, os mecanismos normativos de proteção ao patrimônio histórico e os conflitos ambientais, contribuindo não apenas para a excelência formativa, mas também para a promoção da justiça ambiental e do desenvolvimento regional sustentável.
Integração entre academia e sociedade
Nesse cenário, torna-se fundamental a centralidade do corpo docente local na construção de uma teoria pedagógica que articule organicamente o saber jurídico abstrato à práxis forense e às mazelas sociais concretas da localidade. Professores enraizados detêm maior sensibilidade para as demandas específicas — como os litígios fundiários amazônicos, as disputas territoriais indígenas no Centro-Oeste ou os dilemas do direito agrário no interior paulista —, mas também operam como vetores de integração entre a academia e a sociedade.
São eles que fomentam projetos de extensão voltados à assessoria jurídica popular, estimulam grupos de pesquisa vocacionados aos problemas regionais e contribuem para o fortalecimento institucional dos entes públicos e comunitários. O engajamento docente transcende a função acadêmica, assumindo relevância constitucional ao colaborar com os objetivos fundamentais da República, consagrados no artigo 3º da Constituição: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Ademais, as atividades de extensão universitária e a produção acadêmica territorialmente orientadas desempenham papel insubstituível no adensamento do vínculo entre o curso jurídico e a comunidade em que se insere. Cursos de direito localizados em regiões costeiras, por exemplo, tendem a privilegiar a investigação em direito marítimo e ambiental marinho, enquanto aqueles sediados no semiárido nordestino podem orientar suas ações para o estudo jurídico da escassez hídrica e da desertificação.
O vínculo presencial entre estudantes, docentes e coletividades locais propicia, assim, não apenas a aplicação contextualizada do conhecimento jurídico, mas sobretudo a formação de um operador do direito dotado de consciência social e apto a intervir transformativamente em sua realidade. Trata-se, em última instância, de conferir concretude à função social da universidade pública, integrando ensino, pesquisa e extensão na construção de uma cidadania plena, enraizada e emancipadora.
Ulrich Beck, ao pensar o conceito de “sociedade do risco”, nos auxilia a compreender as complexas interações entre decisões institucionais e suas consequências não totalmente previsíveis no campo educacional. Em especial, Beck destaca que vivemos sob a égide de “incertezas fabricadas”, em que escolhas civilizacionais podem gerar consequências imprevisíveis, exigindo novas formas de controle e regulação. O campo da educação jurídica não escapa a essas reflexões: ao mesmo tempo em que a tecnologia apresenta possibilidades democráticas e inclusivas, também introduz riscos de uma formação tecnocrática, desumanizante e desvinculada do ethos jurídico-crítico tradicional.
Controle de expansão acelerada da EaD
A decisão regulamentar tomada pelo Decreto 12.456/2025 não emerge isolada. Antes constitui-se como uma resposta institucional coerente com movimentos regulatórios anteriores, como as Portarias MEC nº 2041/2023 e nº 528/2024. Ambas representam esforços no sentido de controlar uma expansão acelerada da EaD, visando a garantir padrões mínimos de qualidade e evitar o crescimento indiscriminado e comercial dos cursos jurídicos. O objetivo declarado é preservar um espaço humanizado, em que o professor se mantém como protagonista ativo, enquanto o estudante se engaja na tessitura de construção crítica do conhecimento, distanciando-se, portanto, do ensino meramente “bancário”, denunciado por Paulo Freire.
Spacca

O reforço regulatório encampado pelo Decreto 12.456/2025 traz consigo importantes questões jurídicas. Equilibrar a ampliação do acesso educacional com a garantia de qualidade envolve considerar diversos princípios constitucionais basilares. O direito à educação (artigo 205 da Constituição) impõe ao Estado não apenas ofertar vagas, mas assegurar que a educação propicie “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Ou seja, expansionismo vazio, sem qualidade, contraria a própria razão de ser desse direito; formar “diplomados de papel”, sem aprendizado real, seria trair a promessa constitucional.
O desafio está em harmonizar quantidade com qualidade, inclusão com excelência. A nova regulação não nega o papel democratizante e inclusivo que a EaD pode exercer, desde que orientada por parâmetros pedagógicos rigorosos. A criação do modelo semipresencial evidencia o esforço governamental de explorar, de maneira prudente e equilibrada, as potencialidades tecnológicas disponíveis, ao mesmo tempo em que reconhece os riscos pedagógicos intrínsecos ao ensino remoto irrestrito.
Riscos de ensino automatizado e a democracia da tecnologia
Contudo, ao refletirmos a partir da perspectiva de Beck, uma questão se impõe: como lidar com a inevitável tensão entre o controle regulatório, que visa à qualidade pedagógica, e a necessidade premente de expandir o acesso educacional? Em outras palavras, como harmonizar a prevenção dos riscos associados ao ensino automatizado com as potencialidades democratizantes e territoriais que as tecnologias digitais oferecem?
Nesse cenário, o Decreto 12.456/2025 pode ser interpretado como um marco regulatório prudente, que reconhece tanto as potencialidades como os riscos da EaD. Ao estabelecer as condições para a oferta dos cursos jurídicos, a norma convida as instituições educacionais a um exercício contínuo de responsabilidade pedagógica e ética. A EaD não deve ser concebida como um mero instrumento econômico ou administrativo, mas sim como uma ferramenta potencialmente emancipadora e inclusiva, condicionada sempre a uma rigorosa qualidade educacional.
Uma aula de direito, seja no anfiteatro de uma velha faculdade, seja em videoconferência, ganha vida quando há interação genuína, debate orientado, provocação intelectual e acompanhamento próximo das atividades discentes. O bom professor de direito não é um “gravador de vídeo”; ao contrário, é um mentor que traduz a letra fria da lei em reflexão crítica sobre a justiça e a realidade social. Por isso, um curso jurídico a distância só cumprirá sua função se escapar do automatismo padronizante.
Humanizar o ensino jurídico significa recolocar o diálogo no centro, mesmo que mediado pela tecnologia. Nessa linha, Paulo Freire lembrava que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua construção”, um alerta contra a educação tecnocrática e autoritária que ecoa neste debate.
EaD não pode ser ensino frio e desconectado
Acerta a Nova Política de EaD ao enfatizar infraestrutura adequada nos polos, qualificação do corpo docente e interação de qualidade. Se essas diretrizes forem levadas a sério, evitarão que a EaD se torne sinônimo de ensino frio e desconectado. Ao contrário, a modalidade poderá revelar-se um instrumento de emancipação se houver metodologia verdadeiramente dialógica e compromisso institucional em acompanhar de perto o desempenho de cada estudante.
Diante de argumentos de parte a parte, é tentador imaginar a educação jurídica diante de uma bifurcação irreconciliável: ou abraçar a tecnologia sacrificando a qualidade, ou preservar a excelência pedagógica ao custo da exclusão de muitos. Entretanto, a experiência e o bom senso apontam um caminho de equilíbrio, uma regulação inteligente que evite os dois extremos. Não se quer a volta a um passado elitista em que só podia cursar Direito quem pudesse mudar-se para os grandes centros ou arcar com altas mensalidades presenciais. Tampouco se deseja um futuro distópico em que juristas se formem sem nunca terem debatido com colegas face a face ou sem o crivo inspirador de um mestre de verdade.
O Decreto 12.456/2025 busca essa mediania ao reconhecer modalidades híbridas e ao refinar as exigências de qualidade para a EaD, sem bani-la por completo do cenário educacional. É crucial que a implementação dessa política venha acompanhada de diálogo contínuo com as universidades, os estudantes e os órgãos de classe. Regulamentação equilibrada não deve significar engessamento, mas sim parceria em prol do aperfeiçoamento do ensino.
A OAB e as entidades acadêmicas podem atuar não apenas como fiscalizadoras críticas, mas como colaboradoras na definição de parâmetros de estágio, práticas simuladas e avaliação dos cursos de direito. Da mesma forma, o MEC precisa manter abertos canais para, se for o caso, permitir projetos pedagógicos inovadores que consigam comprovar equivalente qualidade formativa, sob rigorosa supervisão. Ciência e educação evoluem, e a norma jurídica deve acompanhar esse movimento sem perder de vista seus fundamentos.
Ensino não pode ser conservador ou desprezar humanismo
O ensino jurídico brasileiro está diante de uma mudança necessária: nem um conservadorismo míope que rejeite as ferramentas digitais, nem um tecnicismo deslumbrado que despreze a dimensão humana da aprendizagem. O decreto da Nova Política de EaD, ao impor freios, acena para a construção de um paradigma onde professor e tecnologia atuem em sinergia. Resta-nos, como comunidade jurídica e acadêmica, ocupar esse espaço de construção de forma criativa e responsável. O futuro da educação jurídica não precisa repetir os vícios do passado nem temer os instrumentos do presente: pode abraçar a inovação com espírito crítico, formando advogados conectados com seu tempo e com sua terra, sem abrir mão da sólida base humanística.
Que consigamos, em cada curso de direito preservar a essência do diálogo socrático: o questionamento, a escuta, o debate plural. É aí que se forja o operador do direito comprometido com a Justiça. Ao final, como lembra a poetisa Cora Coralina no verso em epígrafe, ensinar e aprender são faces de uma mesma moeda, um processo coletivo de crescimento. Quando docentes e discentes crescem juntos, mediados pelo respeito e pela troca, não importa se unidos por um campus físico ou por uma plataforma virtual: a educação deixa de ser “bancária” e torna-se emancipadora. Esse deve ser o norte da política educacional, a bússola para navegarmos com segurança e esperança pelas novas fronteiras do ensino jurídico.